domingo, 18 de dezembro de 2022

O CIPÓ DE AROEIRA

                                          

            Quando o filósofo Friedrich Engels esclareceu, em seu livro, “A origem da família da propriedade e do Estado”, que o Estado nasceu dos antagonismos ente as classes, justamente quando a sociedade chega a um determinado grau de desenvolvimento e se enredou “numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis, que não consegue conjurar”; estava revelando a natureza do Estado capitalista.

            Havia no ano de 1884 quando o livro foi publicado, pelo menos três visões destacadas sobe a natureza do Estado. A primeira visão foi elaborada pelos filósofos antigos, com destaque para Aristóteles, cujo entendimento era que o Estado surgiu naturalmente e, inclusive, funcionava conforme as leis e as hierarquias do poder das demais espécies. Ou seja, os homens, assim que passaram a viver em coletividades, copiaram da natureza o seu sistema político.

A segunda visão foi elaborada por Immanuel Kant, nascido em 1724 e falecido em 1804, na Alemanha. O seu pensamento sobre o Estado evoluiu para além da natureza e instituiu-se pela razão humana. Por esse entendimento, a razão tida como universal e, baseado nisso, poder-se-ia ter uma ordem universal ditada pelo dever de que as vontades se realizassem e, com isso, alcançar-se-ia também a paz universal.

            A terceira visão elaborada por Georg W. F. Hegel, filósofo alemão, nascido em 1770 e falecido em 1831, ateve-se à compreensão de que o Estado é “a realidade da ideia moral”. Essa forma de ver, encantou mais a burguesia. Além de considerar o Estado como o “reino da liberdade”, justamente por ser ele “o espírito absoluto”, servia ele de instrumento concreto para centralizar o poder e garantir a ordem para a “sociedade civil”. Essa sociedade era formada unicamente pelos donos da riqueza e, principalmente no contexto dos ascensos revolucionários na Europa, aquela classe dominante sentiu-se contemplada.

            Engels, em 1884, um ano após a morte de Karl Marx, já havia acumulado todo o entendimento da critica ao capitalismo e as demonstrações históricas do movimento das contradições, davam a ele não apenas os fundamentos filosóficos para identificar as contradições vigentes, como também para pensar a própria superação do Estado.

            Para Engels, esse poder “nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais...”, não pertence a ninguém e, de um certo modo, isto é verdadeiro. Ele pertence à ordem estabelecida e cuida para que esta ordem não seja desfeita pelos conflitos entre as classes. No entanto, o próprio Engels afirma, “...o estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado.” (p.194).

            Na medida que o “estado de direito” deve ser mantido e conduzido pelo princípio de que a lei esteja “acima de todos”, presa-se primeiramente pela ordem estabelecida. A ordem pode ser entendida como lei, mas não totalmente. A ordem acima de tudo é o poder do “estado de coisas”, ou, dito de outra forma, é como estão colocadas as coisas na sociedade.

            Por “coisa”, podemos entender, a propriedade privada, o capital, o dinheiro, o emprego, o salário, o mercado etc. Ou seja, na medida em que essas coisas estão colocadas numa ordem de movimentação e funcionamento, entram a lei e a força policial do Estado para assegurarem que assim permaneça. Com isso se assegura que a sociedade desigual funcione.

            Por isso, parece estranho ver algumas vezes um político, um dono de Banco, comerciantes e outras pessoas tidas como participantes da classe dominante serem presas. Essas ações do Estado não significam que ele mudou a sua natureza e passou a ser favorável aos setores mais pobres da sociedade, mas sim que ele interviu para evitar a desordem instalada por membros da classe dominante. No entanto, nos demais setores em que o “estado de coisas”, como a exploração da força de trabalho, o funcionamento do mercado; a manutenção das taxas de juros; impostos pagos etc., tudo continua normalmente, mesmo que o presidente da República viva a fazer passeatas com motocicletas ou se escondendo silenciosamente por meses após a derrota eleitoral. O sistema funciona pelo conjunto dos ordenamentos.

            Fica mais nítida essa representação, se vincularmos com a situação atual dos acampamentos em frente aos quarteis. Formados por representantes de setores da classe dominante, exigem a intervenção militar, por meio de um golpe de Estado. Contra esse movimento o poder judiciário age rigorosamente, mesmo que os manifestantes sejam adeptos do presidente da República prestes a deixar o governo ou estejam sustentados por empresários golpistas.

            Mas entendamos que, essa reação do poder judiciário, não é a favor da esquerda nem dos trabalhadores. É a favor da ordem. Se as forças de esquerda e progressistas se beneficiam dela, é porque estão comprometidas em manter a ordem das coisas como estão postas. Circunstancialmente é uma situação ruim para as forças da extrema direita e boa para as forças de esquerda, porque estas últimas voltam ao poder governamental e poderão, na margem permitida pela ordem, direcionar as políticas públicas.

            No entanto, a ordem do estado de direito permanece vigente como sempre. Lembremos que no período do golpe de 2016 quando a presidente da República foi cassada, as mesmas formas de luta, repetidas pelos “patriotas” de hoje, a favor do golpe (menos essa de acampar em frente aos quarteis), em grande medida foram utilizadas contra o golpe. E, por incrível que pareça, diante da mesma Corte, ambos os movimentos foram derrotados: nem a presidenta Dilma voltou em 2016, nem o presidente Lula será impedido de tomar posse em 2023.

            Há, de qualquer modo, dois mistérios que assombram, e ambos são oriundos da mesma matriz: o silêncio do presidente genocida, fortíssimo e ovacionado por multidões há poucos meses, mas que deixa o governo como se estivesse de acordo em ser julgado pelos crimes e ir para a cadeia e, o silêncio das ruas, nas quais não se vê as forças contrárias, vitoriosas na eleição para presidente, mas desmobilizadas, como estiveram nos mandatos anteriores de Lula. Reeditaremos a crença de que, um presidente, um juiz ou a própria mídia assegurarão os direitos?

            De outro modo, ecoa nas paredes das melhores consciências o sentenciamento de Engels,  ao terminar o livro declarou esperançosamente que: “As classes vão desaparecer, e de maneia tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado” (p.196).

            Evidentemente que não podemos fazer tudo de uma só vez, mas pelo menos podemos pensar. Será que, com a a reunião entre as classes ou pelo menos setores delas, a ordem e o estado de direito capitalista serão enfraquecidos? Que avanços podem ser construídos em um governo não genocida mas a favor da ordem? É bom pensar porque as consequências são cruéis para ambos os lados, quando a ordem é ameaçada. Castigado é o desordeiro ou alguém que a ordem queira culpar. A exemplo do que retratou o poeta Geraldo Vandré em sua música “Aroeira”: “Marinheiro, marinheiro/ Quero ver você no Mar/ Eu também sou marinheiro/ Eu também sei governar/ Madeira de dar em doido/ Vai descer até quebrar/ É a volta do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar”.

            Por tudo dito, visto e revisto, quando os trabalhadores e as massas empobrecidas estiverem adorando a ordem e o estado de coisas, é porque já chegaram no socialismo ou se entregaram definitivamente ao capitalismo.

                                                                                                             Ademar Bogo                              

domingo, 4 de dezembro de 2022

SONHAR PARA FRENTE

 

O filósofo alemão Ernest Bloch, ao escrever a sua obra “Princípio esperança”, volume I, destacou que, “Quase toda utopia, seja médica, social ou técnica, tem características paranoicas. Para cada autêntico pioneiro, há centenas de fantasiosos, irrealistas e loucos. Se fosse possível pescar alucinações que nadam na aura dos manicômios, seriam encontradas as prefigurações mais admiráveis...”.

Os comparativos metafóricos traçados são interessantes. Apesar do autor remeter-se á Psicose e tomar o delírio como referência, não quer tratar as capacidades imaginativas de distúrbios mentais, senão que, instigar a pensar, e porque não, levar a sério as imensas quantidades de fantasias surgidas ao lado de uma decisão principal. Quando liberamos as ideias, tornamos sujeitos da ação os seus formuladores.

Vista pelo lado imaginário, a política em nosso país é um verdadeiro “manicômio”, não de loucos, mas de sonhadores dominados. Não pensemos que essas mobilizações em frente aos quarteis não tenham sido forjadas pelas inspirações direcionadas fazendo as ideias alucinadas tornaram-se ações. A motivação é fantasiosa, mas as energias, física e mentalmente empregadas, são reais. E, naquele mundo de ilusões as incertezas assemelham-se aos delírios paranoicos que forjam os medos das perseguições, ameaças comunistas, ataques contra a moral conservadora e alienada etc.

De outro lado, há o outro lado que festeja calado e, na sua convicta grandeza, espera pelas realizações da ideia vitoriosa. Esse também é um mundo imaginário, com poucas insinuações do que poderá acontecer. Aparentemente a perseguição deu trégua e o pior foi sufocado nas urnas. Mas, ao contrário dos marchantes mobilizados, o lado vitorioso ainda não transformou o seu querer em ação. E, como se governante e governados fosse um só corpo e uma só cabeça, espera-se pacientemente pela transição e logo em seguida pela posse.

É evidente que ao lado de uma ideia forte existem centenas de ideias imaginárias  fantasiosas expressas nas mensagens virtuais. E, se podemos comparar o atual cenário político brasileiro com um manicômio, veremos que ele está estruturado com duas alas: a ala amarela fixada, alucina-se com a ideia do “golpe militar” e, a ala vermelha, com a ideia da governabilidade. Os primeiros imaginam os comunistas sendo surrados, presos e mortos; as florestas derrubadas e, lá do alto, heróis pilotando aviões, despejando toneladas de semente de capim, para formarem pastagens e, cá em baixo, milicias armadas passeiam livremente pelas ruas para ajudar o Estado  a fazer o trabalho sujo. Os segundos, vislumbram as panelas cheias de comida, as escolas lotadas e o comércio fervilhando de consumidores sem conflito entre as classes.

Por que chegamos a essa pobreza de imaginação? Poderíamos elencar diversas causas, mas, no fundo, elas terminariam em duas que foram se afunilando ao longo dos tempos comandadas pela ideia forte do capital: a ditadura militar e a democracia representativa. Assim, agruparam-se e se fortaleceram os defensores das duas vias: a do golpe e a dos defensores das eleições.  O primeiro, espreita pelo momento mais propício para ser desfechado, pois sem condições internas e externas não há como movimentar os tanques e, a outra, mantém a adoração à democracia representativa, cuja ideia é “manter a ordem” com exploração, mercado e Estado.

Chegamos, portanto, à debilidade mental, causada pela anulação da utopia paranoica da juventude, dos trabalhadores e das massas populares. Ninguém mais imagina nada fora da ideia principal proposta. As imaginações tornaram-se tão minguadas que não alcançam ir além da próxima semana. Já não se pensa no futuro, apenas no consumo do presente. Se fossemos comparar os sonhos diurnos e noturnos, chegaríamos à conclusão que, quando acordamos não lembramos se sonhamos e, acordados, não há tempo para sonhar.

A ideia de sonhar para frente não é alucinação, mas precaução. As gerações mais velhas vivenciamos os tempos dos golpes os das esperançosas eleições. No fim, esses tempos se revezam substituindo um ao outro sempre que as paredes do grande manicômio capitalista tremem. Nesse momento, a ideia pioneira pertence ao capital e, em torno dela formam-se os consensos que anulam todas as demais imaginações.

Não é errado e devemos acreditar que falta loucura na política. Ela deve existir para fazer ressurgir as renegadas capacidades populares. E, sem substituir os heróis que são sempre momentâneos, porque é o ato heroico quem o faz ser herói e não o tempo de bajulação, iniciarmos a marcha que nos leve para casa. Ela sempre foi a rua, a luta, a formação da consciência, a organização,  o trabalho de base, a revolta e a insurreição.

A utopia deixará de ser uma ilusão ingênua, quando anteciparmos em nossa mente o que iremos fazer concretamente para superar a sociedade imprestável, para a grande maioria da humanidade, em sociedade igualitária e solidária. Nunca devemos esquecer do sabido ensinamento popular que o inimigo afugentado sempre volta , quando isso acontece, os estragos são ainda maiores. Mandatos passam.

                                                                       Ademar Bogo,  

domingo, 20 de novembro de 2022

CONSPIRAÇÃO E INSURREIÇÃO

 

            A primeira e destacada obra da contemporaneidade orientadora do movimento socialista é sem dúvida nenhuma o “Manifesto do partido comunista”, escrito pelos jovens Karl Marx e Friedrich Engels em 1848. O objetivo dessa obra, escrita no auge das Revoluções Liberais, desencadeadas na Europa, era oferecer ao trabalhadores um caminho estratégico para fugirem da tradição conspiratória e, ao mesmo tempo diferenciarem-se do processo de transformação burguesa sustentada pelas forças militares.

            A tradição das contestações políticas eram, até então, organizadas por facções formadas por pequenos grupos que, por meio de táticas conspirativas, visavam, com ataques pontuais e atentados contra as autoridades, chegarem ao poder.

            A conspiração é vista pela teoria da organização política revolucionária, como oposição à insurreição, isto porque, enquanto a primeira se expressa por meio de grupos minoritários, a segunda procede por meio da organização e mobilização da maioria da população. Nesse sentido, outros dois conceitos, “golpe” e “revolução”, determinam a natureza dos dois primeiros.

            É evidente que em certas circunstâncias o uso de táticas momentâneas, podem cruzar os conteúdos dos conceitos, mas, acima de tudo, deve-se sempre observar as finalidades estabelecidas. Quando falamos em “golpe”, identificamos facilmente que por trás desta posição, existe uma conspiração articulada por grupos interessados em defender os seus interesses e, para alcançarem esse objetivo, buscam confundir o entendimento a fim de arrastarem para o seu lado, parcelas da sociedade civil. Por outro lado, a revolução e a insurreição ao serem discutidas e postas em andamento, de imediato elas buscam o envolvimento da maioria da população e, o objetivo final é atender os interesses do movimento organizado.

            Com esta breve diferenciação podemos identificar que lado estamos indo. No Brasil, após a eleição para presidente da república, na qual escancararam-se as posições, de um lado nazistas e do outro progressistas, ambas mobilizando razoáveis contingentes de massas, fazendo com que, no final, quase 120 milhões de pessoas declarassem as suas preferências, é um grande feito. No entanto, a parte vitoriosa, votou e se retirou do cenário das disputas, mas, a parte que perdeu, permanece com grupos mobilizados instigando setores da sociedade e as forças armadas, a desrespeitarem o resultado do pleito, para, por meio de um golpe assumirem o poder.

            Essa conspiração golpista é real e está em andamento sustentada pelos representantes do capital financeiro, setores das forças armadas, do agronegócio e das igrejas pentecostais. É por isso que, com facilidade confunde e misturam, o protesto de pessoas humana com os caminhões; ideias golpistas com as cores simbólicas; o financiamento das empresas com autonomia política e, a alienação com valores morais conservadores. Querem convencer de que o país precisa de uma “ditadura militar” para implantar a democracia.

            O que na verdade passa pela cabeça desses grupos é o sentimento de ódio e vingança que alimentam contra as forças de esquerda. Como não podem atacá-las, precisam do Estado para fazê-lo. Esses grupos não querem a vitória eleitoral, mesmo se tivessem ganho não se calariam. Insistiriam no golpe para assistiram covardemente a repressão e à matança da militância “comunista”, coisa que com uma vitória eleitoral apenas, não conseguiriam atingir tal objetivo.   Nesse sentido, o ódio que costumeiramente um indivíduo sente, tem nele mesmo a força para transformá-lo em violência. Na conspiração em andamento, os setores vingativos cobertos, pelas cores da bandeira, em franca representação minoritária, são portadores do ódio, mas precisam das forças armadas para realizarem os homicídios.

            É importante compreender que, a conspiração golpista ainda não foi levada a cabo com sucesso, porque o processo eleitoral foi legitimo e sem falhas pois, se por um lado registrou a vitória de um presidente de esquerda, por outro, garantiu a maioria parlamentar da direita. E, porque, as circunstâncias não são todas favoráveis e nem a comunidade internacional apoia qualquer tipo de bravata que fira o que se chama de “democracia”.

            No entanto, circunstâncias sociais e políticas são coisas que se criam. Elas funcionam como o vento; de um momento para outro, o tempo muda e vêm as tempestades. Logo, não basta, confiar no certo, no idôneo e na justiça, porque, esses conceitos sem massas mobilizadas, mudam facilmente de entendimento e podem vir a ser representantes do contrário. Por isso, é preciso perguntar-nos, quais as tradições que devemos superar? E quais são as tarefas que urgentemente devemos assumir?

            Sendo assim, as forças democráticas não podem esperar que a conspiração se materialize e o golpe de Estado venha a se implantar para iniciar as mobilizações. É preciso fazer crescer nas massas a consciência sobre os direitos e, junto com a defesa de comer, vestir, morar, trabalhar, educar ter saúde e estudar, devemos pôr o direito a se insurgir. As ruas são os lugares adequados para defender-nos. Vamos à luta! Quem acorda cedo faz o amanhecer!                                      

                                                                                                        Ademar Bogo

domingo, 6 de novembro de 2022

O JOGO DO JOGO

                Antes de tudo, é importante decifrar o sentido do verbo “jogar”. No aspecto transitivo, significa “executar diversas combinações”; “jogar com a sorte”, é apostar. “Jogar para cima”, é se revoltar. “Jogar confete”, é exaltar”; “jogar a última cartada”, é arriscar.

                O jogo do jogo é saber jogar. Por isso é preciso conhecer as regras; apesar delas serem apenas parâmetros orientadores, explicitadoras dos limites e asseguradoras do processo do início ao fim. Além das regras, cada jogo tem técnicas e, acima delas está a arte. Sem regras, sem técnicas e sem arte, não há jogo, há apenas movimentos perigosos sustentados pelos instintos.

                O filósofo Nietzsche ao observar a decadência da existência humana vista como um jogo, buscou responder a questão sobre a sociedade a qual vegetava sem sentido, sem finalidade e sem verdade. Para ele, diante do incontrolável, arma-se sempre um cenário para jogar com a razão confundindo-a com loucura. O “inútil” passa ser o ideal e sonhar um modo de jogar. A embriaguez de Dionísio, o deus do vinho, representou, na antiguidade, a forma mais adequada para a prática do jogo entre o real e a fantasia, no final, o resultado pretendido era o próprio autoesquecimento.

                Importante é perceber que, embriagados com vinho ou com mentiras, o jogo sempre é uma luta para o vir a ser de uma representação; ou também uma busca pelo desejado, sonhado e, por isso, o enfrentamento dos contrários. A cada passo, novas contradições afloram e novos significados precisam de nominação. A linguagem simbólica atiça e alimenta os mistérios e o estímulo da vitória não pode esmorecer.

                As técnicas sustentam os planos. Cada ideia torna-se uma ação, se houver meios de concretizá-las. É próprio do jogo, disputar, enfrentar, combater e derrotar. O juízo está nas técnicas utilizadas e elas dependem da finalidade da vitória. Um jogo com técnica é técnico, nem sempre é belo. Um jogo com arte é belo, extasiante, conquistador, emotivo e vibrante.

                Técnica se usa para tudo. Para fazer coisas boas e coisas ruins. Fabricam-se objetos úteis para a satisfação das necessidades e armas inúteis para a harmonia social. Com técnicas sustenta-se a guerra, mas é com a arte que se alcança a paz. Esta última não significa perdão ou ausência de punição. Não punir quando se deveria, não é virtude é covardia.

                Há bastante tipos de jogos, mas muito mais modos de jogar. No jogo democrático, além das regras e das técnicas deveria figurar também a arte como um princípio embelezador. A truculência, a mentira, o engano,  não cabem quando está em disputa o futuro de uma grande nação. Nesse jogo, entre maioria e minoria, deveria acima de todos, ser considerado o princípio da totalidade. Com este, a jogada melhor mereceria aplausos unânimes e não ataques.

                O jogo do jogo democrático é o movimento ascendente das jogadas. Os lados que se enfrentam sabem que no dia seguinte continuarão vivos. No entanto, as brutalidades praticadas nas disputas são sempre irresponsabilidades de quem luta. As marcas não podem ser apagadas e enquanto persistirem há que punir com o rigor das normas os infratores.

                Quando os interesses são mesquinhos, qualquer jogo provoca mal-estar. Por trás das jogadas há sempre um desejo abusivo. Saber jogar não é apenas entrar no jogo, mas saber calcular como sairá dele. Não há o “saber perder” porque, ninguém treina para ser derrotado, mas há a obrigação de reconhecer a derrota. Respeitar o resultado quando for legitimado pelas regras aprovadas antes do jogo.

                A contemporaneidade, asfixiada, agoniza com as suas próprias invenções. A defesa do “estado de direito”, tão valiosa, no passado, para os exploradores sobre os explorados, começa a tornar-se um estorvo, porque cerceia os próprios preceitos liberais que, nos momentos de crise econômica impede que as decisões explodam como relâmpagos em meio aos temporais. Para os capitalistas na viagem da acumulação, não deve existir a possibilidade de que, no “meio do caminho haja uma pedra”; um índio, um sertanista, um líder popular, ou uma lei impedidora que limite os gastos. Tudo precisa ser brutalmente retirado para que “a boiada passe”.

                É nesse jogo irônico das circunstâncias históricas que coube às forças de esquerda, ao invés de defenderem princípios comunistas, obrigam-se a sustentar o legalismo mantenedor da ordem que garante a exploração do capital sobre o trabalho, sem  perda dos direitos trabalhistas; o estado democrático de direito que assegura a “ordem e o progresso”; o direito público e privado, que dá reconhecimento ao Estado, de usar as forças impositivas, coercitivas e punitivas.

                Tornou-se obrigação de sobrevivência a busca de tomar o Estado com todos os poderes, para salvaguardar a civilização capitalista, descartada pelos capitalistas, isto porque, dos princípios fundamentais da Revolução Francesa, já haviam, de imediato eliminado o da “fraternidade”, agora é incômodo o da “igualdade”, e precisam forjar as separações, religiosas, culturais e regionais para fazerem valer a “liberdade” de agirem sobre todos.

                Quem diria que, de “coveiros do capitalismo”, como sentenciaram Karl Marx Friedrich Engels, deveríamos ser o seu salva-vidas para que não se afogue no oceano do próprio vômito, prolongando seus enfadonhos dias, com a única intenção, de não deixá-lo que nos jogue no limbo da barbárie de uma só vez.

                Para os estudiosos da dialética, sabemos que há movimento para frente e para trás. A barbárie é o movimento para trás; o socialismo é o movimento para frente. Os capitalistas apostam no primeiro, pensam salvarem-se com a povoação de algum lugar do espaço. Se defendermos apenas o estado democrático de direito, não há movimento para frente, porque nada de novo nos propomos alcançar.

                É tempo de jogar conscientemente o jogo no campeonato da superação. Disputar uma eleição ouvindo a palavra “comunista” como uma acusação e não como um valor, é uma lição que nos desafia a pensar, se ganhar nas urnas, mas perder na linguagem revolucionária, por evitar pronunciar certas palavras, é uma vitória ou apenas um calço posto no movimento regressivo inclusive das nossas fileiras?  

                Há muito por fazer neste jogo comandado por regras determinadas, mas, para além delas temos as técnicas a serem inventadas e a arte de fazer o belo renascer em cada olhar.

                                                                                                              Ademar Bogo

 

 

 


domingo, 23 de outubro de 2022

POLITIZAR A POLITICA

 

            O filósofo francês, Henri Lefebrve, na segunda metade do século passado, marcou a Filosofia com a sua visão sobre o “método dialético”. As suas preocupações voltaram-se para as contradições da realidade concreta e também, todas as outras, ligadas ao pensamento humano. Estas últimas, diz ele, “Têm origem, pelo menos em parte, nas deficiências do pensamento humano que não pode apreender ao mesmo tempo, todos os aspectos de uma coisa e tem de romper (analisar) o conjunto para compreendê-lo”.

            A capacidade da compreensão intelectual da realidade assemelha-se as demais capacidades que possuímos, precisamos exercitá-las para desenvolvê-las. As contradições estão entranhadas em todas as coisas, ideias e soluções. No entanto, sempre que analisamos o que os outros dizem ou fazem, concordamos ou discordamos sem nos darmos conta de que, aquele detalhe não está separado de um todo maior.

            Em muitas ocasiões para que as ideias cheguem a um ponto de consenso, embrulham-se todas as contradições, para deixa-las de lado e, dali em diante,  como se a verdade fosse apenas o aspecto combinado, busca-se viver em harmonia.

            As campanhas eleitorais são exemplo vivo dos acordos e da visão superficial das contradições. Sabemos de tudo e no que nos opomos. Mas, esquecemos de pensar e descobrir o que discordamos daquilo que nós mesmos pensamos. Sendo assim, os acordos e propostas se afirmam, nos preconceitos morais e no assistencialismo à pobreza.

            É evidente que a verdade surge do confronto das contradições e não dos preceitos e valores conservadores. Os que querem esconder a verdade são hábeis em inverter as evidências; logo, no lugar do sistema capitalista e suas crises estruturais, colocam a família; no lugar da análise da exploração da força de trabalho, colocam a fome e junto a solução, por meio de um auxílio financeiro permanente; no lugar da qualidade de educação, colocam o combate ao banheiro unissex etc.

            Isso tudo poderia não significar nada fora da agitação das ruas, se as outras forças estabelecessem outros parâmetros para serem observados. Não ocorrendo isso, entende-se que o capitalismo deve ser melhorado, o Estado santificado e anexado às religiões e, a luta de classes substituída pela busca da paz contra o ódio. Quando na verdade dever-se-ia desvendar que a fome e a pobreza aumentam porque o sistema do capital não se importa com a grande maioria da população do mundo; o Estado visto como a “roda da fortuna” ou um apresentador de programa de auditório, que despeja dinheiro em políticas assistenciais, rebaixa ou retira os impostos de áreas vitais da arrecadação, como se o dinheiro distribuído viesse de uma máquina fabricadora de moedas sem nenhum planejamento. Para cada ação existe reações das contradições.

            Nas entrelinhas da intransigência verbal, percebe-se que, se de um lado está o totalitarismo salivante como o cão prestes a furar a cerca, pegar o cordeiro e devorá-lo com os dentes e, de outro, a ingênua natural democracia, como os cordeiros que se alimentam, confiantes que a cerca segurará o cão e nada de ruim lhes acontecerá.

            O retorno das evidências do nazifascismo não são gratuitas e nem tampouco forçadas, elas cabem dentro de sociedades que desmobilizaram e desorganizaram a classe explorada deixando as massas livres para serem cooptadas pelas religiões partidarizadas e por isso o conteúdo politico dos discursos foi acrescido de preconceitos morais. Recolocada a luta de classes em seu lugar, os burgueses se organizariam para defenderem o capitalismo e os trabalhadores para combate-lo afirmariam consciência em um nível elevado.

            Acusar que os nazifascistas mentem, não é exatamente uma verdade. Mas dizer que eles invertem a ordem das proposições para esconderem as reais intenções é da própria natureza dessa forma totalitária de agir. Dessa forma, devemos ver assim: quando eles dizem que nós fecharemos as igrejas, querem dizer que eles fecharão as instituições incômodas, os partidos, sindicatos, movimentos e ongs. Quando dizem que a lei está acima de tudo, querem dizer que farão uma nova Constituição com leis adequadas aos seus desígnios. Quando pregam que “Deus está acima de todos”, querem dizer que o líder é o maior e deve governar sozinho. Quando inventam a calúnia do “kit gay”, querem esconder a estrutura comportamental pedófila que possuem e tantas outras expressões seguem na mesma linha por isso é difícil contestá-los.  Por isso, dizer para a massas que “eles mentem”, não surte efeito, porque, antes do entendimento há a sensibilidade e, em grande medida eles apresentam-se como vítimas.

            Em síntese as massas exploradas precisam de ajuda para desvendar as verdadeiras intenções neonazistas, mas isto não será suficiente para afastar o cão da cerca dos cordeiros. É preciso organizar as massas e retomar as lutas pelos direitos, isto porque, nos últimos tempos delegou-se toda a responsabilidade e investiu-se todos esforços no parlamento. A conta chegou, a hegemonia parlamentar da extrema-direita é o retrato da despolitização da política abandonada a décadas no Brasil. Se acreditamos no que afirmou Karl Marx, que “a consciência social se forma na convivência social”; basta olharmos com que convivemos cotidianamente para sabermos, qual é o nível de consciência do desempregado, do evangélico, do católico, do estudante, dos professores, operários etc.

            Politizar a política é tarefa obrigatória para resgatar as massas pobres que se tornaram reféns dos interesses sanguinários, agora ainda mais, no domínio do Estado. Há porém, com tudo isso uma lição sendo passada, que o poder para centralizar-se no Estado, precisa ser produzido e sustentado fora dele. Ganhar eleições e correr para dentro do Estado esquecendo as massas, é perder a retaguarda.

                                                                                   Ademar Bogo       

domingo, 16 de outubro de 2022

CONTRADIÇÕES REBAIXADAS

 

            Todo ano o mês de outubro sempre chega trazendo e revivendo as suas marcas históricas. Na política, destaca-se Ernesto Che Guevara e a lembrança de que, é preciso investir na formação do “homem novo”. Na religião destaca-se o dia da padroeira Aparecida, motivadora da unidade nacional, do respeito às mulheres, do combate ao racismo e, acima de tudo, nos ensina a praticar da tolerância. Ainda temos a exaltação das crianças e a homenagem aos professores e professoras responsáveis pela escolarização de todos. De um outro modo, no mesmo mês, a cada dois anos surge o embate político das disputas eleitorais.

            Essas referências concentradas criam diferentes reações, protestos, festejos e comemorações. No entanto, a política e a educação resguardam as mais intensas emoções. Nas mensagens que vão e que vêm destacam-se as ideias conscientizadoras ou o seu contrário. Paulo Freire é o preferido. Em seu livro “Pedagogia do oprimido” publicado nos primeiros anos da instalação da malfada ditadura militar no Brasil, destacou que: “(...) o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com a educação que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os argumentos de “autoridade“ já não valem(...)”. Esse processo inicia com as crianças antes mesmo de se porem em pé, quando são levados para as creches e círculos infantis. Depois avançam nos próximo períodos e chegam, não todos, à diplomação universitária.

                Deveria ser assim também na política. O político deveria ser também um educador e educar-se enquanto exerce a sua função.  No entanto, essas relações de profundo respeito ou desrespeito, formam aprendizados com diferentes formas e conteúdos; principalmente quando a antipolítica, com seu faro mofo, busca restringir a universalidade educativa para os cubículos estreitos da moral conservadora, de interesse mesquinho e ideologia perseguidora dos oponentes.

                Para verificarmos isso, basta tomarmos o tema da discussão da sexualidade nas escolas. É um assunto separado, deixado e intocado também nas religiões. Afasta-se a criança do entendimento sobre o seu próprio corpo, como se afasta o corpo da proximidade do fogo. Não se fala de sexualidade como não se brinca com fogo. Sigmund Freud em 1905 ao escrever os “Três ensaios sobre a sexualidade”, entrou profundamente no tema da sexualidade infantil e revelou que, popularmente acredita-se que a pulsão sexual está ausente na infância e só aparece no período da puberdade. E dirá que este é um equívoco causador de graves consequências. Então nos mostra  que, “Ao mesmo tempo em que a vida sexual da criança chega a sua primeira florescência, entre os três e os cinco anos, também se inicia nela a atividade que se inscreve na pulsão de saber ou de investigar”. Quem a impede que investigue? Os moralizadores tementes aos próprios medos, recalques e complexos. O que ganham com isso? Uma juventude com desajustes na formação individual que ignora o funcionamento dos próprios sistemas físicos e mentais.

                A política é tão preciosa quanto é a educação. Ela deveria preservar os ouvidos das crianças evitando que ofensas, palavrões, calúnias, mentiras e todos os tipos de agressões fossem expostas nos programas eleitorais. O cristão que vai à Igreja e em casa vigia as crianças para que não acessem temas pornográficos na internet e segue à risca as orientações de impedir que os filhos assistam programas impróprios para as suas idades, não tiram as mesmas da sala quando o programa eleitoral de seu candidato é exibido no horário nobre. Se as crianças nas escolas praticassem o que dizem e fazem os políticos e muitos agentes públicos, transformariam as escolas em redutos do crime organizado.

               Em tudo isso, importante é compreender que a educação é fundamental para que uma sociedade se desenvolva; por isso a exigência para termos boas escolas, juntamente com a valorização dos professores e professoras. Mas não se educa para viver apenas dentro da escola.

                Na medida em que fora da escola praticam-se formas educativas desajustadas e se reproduzem conhecimentos, na política, nas igrejas, no mercado etc., avessos  à verdadeira libertação, a escola será vista como um aparelho a ser direcionado para satisfazer os interesses do consumo e da domesticação moral.

                Em tempo de campanha eleitoral, um candidato que promete investir em educação e na fala seguinte, ao invés de demonstrar como ele próprio é educado, desanda a destratar, ofender, criminalizar, rebaixar etc. os seus oponentes, no intuito de acirrar ainda mais o ódio já disseminado, não pode estar falando sério.

                Evidentemente, acreditamos que em todas as relações existem contradições, mas da forma como estamos vendo, o conteúdo das campanhas eleitorais, fez do rebaixamento um dicionário de palavras ruins que servem apenas para demonstrar que estamos vivendo uma profunda crise da civilização.

                Precisamos retomar os princípios da civilidade e fazer com que a linha de conduta siga os interesses do Bem comum. Enquanto o político xinga e a população aplaude estaremos sempre mais próximos de acreditarmos que a ignorância é de fato o nosso destino. A prática do “bateu levou”,  é o sinal de que, se não somos, parecemos ser todos iguais.

                Uma população eleva o seu nível de consciência se na convivência social escuta e expressa palavras que formam a consciência. Tal qual como ocorre com a criança que ao nascer e encontra o sistema linguístico pronto e precisa aprendê-lo para se comunicar, ocorrerá com as futuras gerações que deverão governar o país. Se aprendem com os políticos que politica se faz com baixarias, rebaixam-se e verão as contradições apenas no nível das ofensas.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                      Ademar Bogo

domingo, 2 de outubro de 2022

ELEGER COM LIBERDADE

            Eleger no latim significa, “escolher lendo”. A leitura, supostamente é sobre as diversas coisas expostas ou dispostas para serem diferenciadas e, conscientemente, uma delas é separa como principal. Para ser uma escolha consciente, precisa que dois critérios sejam garantidos: primeiro o da capacidade interpretativa e, o segundo, a liberdade de decidir.

A filósofa Hannah Arrendt, ao discorrer sobre o tema da liberdade, detecta que esse conceito entrou tardiamente na filosofia e, quando entrou foi por causa da política. Sendo assim, a liberdade é o motivo pelo qual vivemos politicamente organizados. Por outro lado, esta é uma visão costumeira de uma sensação de existência ou não da liberdade social, externa. “As experiências de liberdade interior são derivativas no sentido de que pressupõem sempre uma retirada do mundo onde a liberdade foi negada para uma interioridade na qual ninguém mais tem acesso”. Concretamente, a interioridade humana é o lugar aonde ninguém entra e, somente o Eu pode  percorrer  impondo-se a si mesmo os critérios de avaliação.

Os brutos e desrespeitosos do direito à liberdade, dão-se a própria definição de liberdade; seria, fazer o que cada um deseja. Isto não significa ser livre, mas sim escravo dos ímpetos mais contraditórios, porque, em último estágio, o parâmetro para discernir o que é e não é a liberdade, nos é dado pelos critérios sociais.

Os processos eleitorais nos mostram claramente como isto funciona. Se por um lado cada indivíduo sabe quais são as suas necessidades, por outro lado, nem sempre sabe as causas das mesmas e, se por ventura venha saber dar-se-á conta de que, somente com suas forças não poderá superá-las. Quando aparece em sua frente alguém que expressa verbalmente como fazer para satisfazer tais necessidades, surge também a identificação com aquela voz e, o eco da mesma mistura-se com os desejos particulares que podem ir em direção do Bem comum, como também, para a efetivação de medidas punitivas e vingativas, contra a parte que se fez odiar, porque quis ampliar o acesso aos direitos sociais.

A função das candidaturas é sintetizar a amplitude dos desejos particulares e direcioná-los para uma mesma direção. É neste particular que reside o limite do entendimento. Quando os princípios fundamentais do atendimento das necessidades universais são entendidos e internalizados, os discursos criam simpatias e provocam as aglutinações das massas para alcançarem benefícios coletivos, sem discriminação. O oposto acontece quando a leitura sobre as necessidades alheias revela os incômodos, os desejos e vontades egoístas. Nesse memento, os egocêntricos, procuram lideranças que se alinham com as medidas restritivas da liberdade dos outros, como se merecessem punição por terem necessidades e não a liberdade de escolha.

De certo modo, os critérios políticos funcionam, na política, como acontece com a rejeição dos beneficiários ao direito a dividir os benefícios, os cargos, as funções e os próprios lugares sociais. Aqui podemos exemplificar com duas formas de manifestações egoístas e repugnantes: a primeira é a reação expressa pela “volta do filho pródigo”. O irmão, beneficiado não aceitou que o outro participasse da vida estável que levava, por isso não merecia, nem festa, nem aceitação. A segunda reação é de setores privilegiados que rejeitam o ex-presidiário, quando busca o retorno à convivência social, porque, a condenação é sinônimo de prisão perpétua, e, por mais que o apenado seja julgado, condenado e cumprido a pena, ou mesmo considerado inocente, a leitura preconceituosa faz com que os juízos e as palavras expressem a rejeição.

            Os dois critérios foram impostos a Lula. Ele é o filho empurrado para fora da política e voltou. A receptividade, a festa e a mística, envergonharam os devotos do mito, da mentira e da brutalidade. Tiveram de guardar as armas e virem para a discussão política sem terem preparo algum. Isto foi possível porque, a liberdade prisional de Lula foi exaustivamente explica e anexada ao conceito de inocência. Esse movimento externo levou à liberdade interna, de escolha, consciente e desejosa de que o pior seja superado.

            A vitória de Lula é também a demonstração de que uma ideia mentirosa, repetida muitas vezes, não se torna uma verdade, se o enfrentamento com a mesma for feito com decisão e propósito solidários. Uma revolução assim também é motivada. Repetir, repetir e repetir ideias revolucionárias é a única forma de combater a ideologia capitalistas e elevar o nível de consciência das massas para que, livremente elejam o socialismo como a finalidade que vai além do processo eleitoral.

         Há os que são reféns do ódio, do negacionismo e da ignorância. Nós somos melhores porque somos livres, e, somos livres porque somos conscientes. Não acreditamos em mitos, nem em salvadores; ao contrário, juntos produzimos a própria salvação. Que a eleição seja apenas um meio, um passo, uma jornada. De vagar aprenderemos que o horizonte aonde o Sol se pôs por uma noite, ficou para trás. 

                                                                                                      Ademar Bogo

domingo, 25 de setembro de 2022

NÓS E ELES

                                                                          

            Há, na atualidade, com a decadência da visão política, uma falsa compreensão, de que não se pode estabelecer a referência de lados, nem contra ou a favor, como se as disputas fossem encenações e as classes sociais,  um velho conceito perdido no passado, pondo em seu lugar o patriotismo e a consensualidade.

            Já é evidente e, se percebe nitidamente, que a classe dominante burguesa ligada ao capital produtivo e condutora da Revolução Francesa, perdeu a capacidade de dominação para lumpemburguesia, arauta do capital especulativo, parasitário que se movimenta nas entranhas do Estado capitalista, pensado pelo filósofo Hegel para, como sujeito social, ser o garantidor da liberdade nesta sociedade desigual.

            Antes de Hegel, vigorou a filosofia de Immanuel Kant, criador da ideia da razão pura individualizada, como referência de afirmação, inclusive da Paz mundial. Para ele a razão era o sujeito social, isto porque, se em todos os lugares do mundo existem indivíduos pensantes, bastaria que um pensamento bom fosse formulado e todos o praticariam. Daí uma de suas máximas era: “Nunca devo proceder de outra maneira senão de tal sorte que eu possa também querer que a minha máxima se torne uma lei universal”. A burguesia ascendente queria leis universais, porque, não tinha liberdade para transportar seus produtos de um lado para outro. Queria imposto único e liberdade para ir e vir sem barreiras impedimentos dos monarcas e senhores de terras.

            O egoísmo burguês, fortalecido pela visão kantiana, pareceu rejuvenescer, quando Hegel, também alemão, em 1821, um pouco antes da realização das revoluções liberais na Europa, apresentou a ideia de que a razão era apenas o entendimento da importância sobre liberdade e a vontade, mas, para realiza-las precisariam do Estado capitalista e elaborarem outro sistema jurídico capaz de combater o Direito natural. Sendo as leis justas, livre seria aquele que as respeitasse, por isso o “reino da liberdade” estaria no Estado e garantido para todos.

            Os burgueses organizados e dispostos a tornarem-se a classe dominante, convocaram as massas populares e impulsionaram as revoluções liberais de 1848. Marx e Engels foram contemporâneos dessas revoluções e, inclusive, neste mesmo ano publicaram o Manifesto do partido Comunista, porque tinham entendido que a razão kantiana era um alento para o individualismo, pois, o capitalismo era um processo em andamento coroado de conflitos e a paz mundial, jamais seria alcançada enquanto persistissem as desigualdades sociais locais e entre as nações. Por outro lado, o Estado não poderia ser o garantidor da liberdade como pensava Hegel, porque, no capitalismo, as vontades das pessoas exploradas não se realizam; o próprio sistema jurídico legitima a exploração da força-de-trabalho e dá mais garantias para a propriedade privada do que para as pessoas.

            Mas eis que alcançamos um momento na História, o qual parece ter misturado as concepções e já não sabemos se defendemos o Estado que garante o reino da liberdade de exploração do capital ou se defendemos os burgueses investidores em produção, porque eles perderam o poder de convocação, como fizeram os burgueses liberais em 1848,  para a lumpemburguesia da especulação, das milicias e do crime organizado, presente nos negócios públicos.

            Além de tudo, nos deparamos com o processo eleitoral angustioso. Parece que falar em “nos” e “eles”, por um lado, significa esquecer o passado e, por outro uma divisão entre os bons e os maus. Esses pronomes pessoais, quando pronunciados no caso reto, representam o sujeito do enunciado. Sujeito, sabemos que é quem faz ou sofre a ação. Logo, ao dizermos, “nós lutamos por dias melhores”, tem tudo a ver, porque além de combinarmos corretamente o sujeito, o verbo e o complemento, ainda revelamos que fazemos ações contra os diversos impedimentos. No entanto, todos falam em dias melhores e, para chegar ao ponto decisivo, parece que o “entre nós”, nos dividimos em dois lados, um para combater o “eles maus” do presente, e o outro para conluiamos  com “eles bons” do passado.

            De volta a Kant iremos encontrar os burgueses individualistas inseguros que querem a paz e desejam a ordem moral, com a qual o fazer por dever será suficiente para alcançarmos o bem comum. Por outro lado, se tomarmos a filosofia de Hegel como roteiro, encontraremos os burgueses ansiosos por defenderem o Estado, a Constituição, as leis presentes nos códigos e as instituições, simplesmente essas referências constituem a garantia da liberdade e a democracia no estado de direito.

            Se ousarmos vir um pouco mais aquém do passado e desejarmos retomar a luta de classes, a superação da liberdade burguesa com a reelaboração das leis, a superação do Estado e um novo direcionamento da propriedade privada etc., encontraremos Marx, mas perderemos todos os burgueses aliados e grande parte do “nós” que já não acredita no socialismo.

Diante disso é compreensível porque setores da burguesia, sem forças para defenderem-se da lumpemburguesia e incapazes de abrirem uma terceira via, juntam-se a “nós”, para ajuda-los a salvar a ordem que lhe faz tanto bem. Certamente é porque aqui encontram um “nós” que, em termos de ideias já tornou eles.  Ou seja, filosoficamente eles querem que voltemos ao passado, valorizando os contratualistas, Kant e Hegel, mas, politicamente desejam que não voltemos a Marx pois teriam um fim assustador. E “nós”, para não assustá-los, não falamos de Marx e agarramos o Estado, as leis, os códigos, a moral burguesa etc. e nos tornamos guardiões dessas mediações da dominação.

            Nesse sentido, a lumpemburguesia, em busca de impor a hegemonia política, não combate os burgueses da produção que afetivamente os rejeitam,  nem os trabalhadores, as massas populares desorganizadas e os cristãos das seitas religiosas; temem porém, os comunistas por serem os únicos capazes de fazerem a leitura correta da História. Mas não apenas, atacam e transformam em comunistas aqueles que abertamente defendem o Estado de direito como garantidor da liberdade.

            A lumpemburguesia não tem consistência filosófica. Não prega o “mundo da liberdade” hegeliano, não vê nas leis a garantia da ordem e nem no Estado capitalista a importância da harmonia entre os poderes. Ao contrário, odeia Kant e também Hegel, porque não querem a paz mundial e nem tampouco aceitam que as leis garantam a liberdade de exploração pois a força de dominação para eles está na especulação, na violência e na alienação. Sendo assim, as leis e as instituições impedem a realização das vontades pessoais, por isso só veem um caminho para a satisfação das mesmas, o totalitarismo com regimes ditatoriais. Sem leis nem poderes institucionais podem, de um momento para outro, devastarem as florestas, entrarem em terras indígenas, metralharem favelas; prenderem militantes contrários; liberalizarem as armas; tornarem secretas informações perigosas; venderem e negociarem o patrimônio público etc.

            O mundo sendo governado pela  lumpemburguesia e aliados, é o pior dos mundos. No entanto, estaremos enganados se acharmos que a burguesia do capital produtivo, compradora de força-de-trabalho e acumuladora de capital pela extração da mais-valia, defensora da democracia representativa e do estado de direito, seja a nossa aliada. Seria o mesmo que alguém fosse jogado em uma alcateia e, para se salvar tentasse fazer amizade com uma parte dos lobos famintos.  

            Por acreditarmos que Marx e Engels estão com a razão, embora estamos em desvantagem para efetiva-la, terminamos com o último parágrafo do Manifesto; “Os comunistas detestam dissimular as suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem existente. Que as classes dominantes tremam à ideia de uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar”.

            A palavra de ordem final “Proletários de todos os países, uni-vos!”, é a consciência da verdadeira união a ser proposta, do contrário, o “nós” de pronome pessoal direto, como sujeitos da História, nos convertemos em “eles”, como pronome pessoal oblíquo, força auxiliar dos sujeitos burgueses que tudo fazem para manter a ordem e a reprodução das desigualdades sociais.

                                                                                                           Ademar Bogo

domingo, 11 de setembro de 2022

CONSCIÊNCIA DA TOTALIDADE

  

            A todo instante somos chamados a posicionar-nos sobre aspetos pontuais. Os outros precisam saber o que pensamos, e nós, nem sabemos bem o que pensar. A economia oscila entre o crescimento e a estagnação, às vezes desce para a recessão. Na política a esquerda e a direita buscam ser de centro para atraírem os mais conservadores, mas há diversas posições e candidaturas que pregam divergências; no fundo pendem para a manutenção da velha ordem. Nas religiões tudo é ainda mais confuso. Já não se embatem os crentes e os ateus, mas os evangélicos e os comunistas. Os primeiros sentem-se ameaçados por uma força que é contra o capital, tudo a ver com o pecado original, mas daí achar que estão lutando contra um mal, já é demais.

            Cotidianamente, de um modo ou de outro estamos nos atualizando. Em grande medida, os problemas do passado se repetem no presente e as posições mais apaixonadas geralmente são as mais equivocadas por serem também as menos elaboradas. Marx, destacou que a luta de classes dos antigos desenvolvia-se “principalmente sob a forma de credores e devedores”. Se tomarmos as palavras, crédito, crentes e credores elas possuem o mesmo radical que compõe o “crer”; isto talvez explique porque os personificados pelo capital especulativo, credor da dívida pública, as empresas dos templos evangélicas e as forças do crime organizado, uniram-se em torno do “mito da governabilidade”.   

            O filósofo Georg Lukács, identificou que uma parte da sociedade leva uma vida econômica inteiramente parasitária e, usa o poder econômico como uma mediação para manter a dominação. E por que exploradores e setores explorados, separados na economia, na política colocam-se do mesmo lado? A resposta pode ser dada de imediato, que a origem dessa junção das partes está na falta de consciência da parte dominada.

            Falta, no entanto, para completar o entendimento, acrescentar na análise a categoria da totalidade. Por falta da visão do todo, nas sociedades pré-capitalistas, os indivíduos não alcançavam ter uma verdadeira consciência e os elementos fundamentais da organização e manutenção da exploração, ficavam obscuros. Foi com o “Materialismo Histórico” que os explorados puderam ter as condições intelectuais de desvendarem o funcionamento da sociedade capitalista, desde a sua base econômica produtora da exploração, às estruturas política, jurídica e ideológica.

            De certo modo estamos no capitalismo, mas uma parte da sociedade, principalmente, esta que se atrela à classe dominante e se sujeita a ela, vive como se estivesse presa ao passado e, ao invés de ir em direção ao entendimento da totalidade, prende-se às vociferações e particulares, como: “Deus, pátria, família e propriedade”, deixando de lado a exploração e a acumulação do capital, interesse a ser garantido pela estrutura estatal aos que dominam.

            Se as condições pré-capitalistas não permitiam a formação da consciência de classe, não impediam, porém, que as religiões figurassem como dominação moral. Esta visão anticomunista no presente, embora desde o início tenha sido formada pela ideologia burguesa, sustenta-se, ao longo do tempo, pelo pensar das religiões e dos meios de comunicação que praticam o obscurantismo ideológico. Se ser burguês e anticomunista é uma obrigação de sobrevivência, no entanto, como essa classe não se constitui de grandes contingentes, precisa do apoio das massas religiosas. Sendo assim, estas sendo impedidas de terem acesso ao Materialismo Histórico, são impedidas também de apreenderem a categoria da totalidade e são facilmente amestradas e conduzidas como rebanhos.

            O acesso ao Materialismo Histórico presente na teoria social de Karl Marx, conduz à formação da consciência, porque desvenda a totalidade e as particularidades das contradições e, por consequência, revela a superação do capitalismo para a transição socialista e o comunismo. Essa teoria social, no entanto, somente pode ser disseminada por forças conscientes organizadas e intelectualizadas, dedicadas ao estudo das contradições com o objetivo de tornar as ideias força de ações. Desgraçadamente, vivemos um tempo avesso em que vemos multiplicarem-se as seitas religiosas e minguarem os partidos revolucionários e as mobilizações sociais.     

            O investimento desesperado em campanhas eleitorais para convencer o eleitor singular pertencente a um rebanho particular, contribui para manter o distanciamento do entendimento da totalidade. Sendo assim, se for promissor este intento, os convencidos a saírem do rebanho hoje, serão os mesmos que, revoltados, voltarão voluntariamente para os currais amanhã.

            As consciências acostumadas a verem apenas as particularidades e não a totalidade, orientam-se pelos detalhes dos interesses pessoais. Qualquer variação nos ganhos ou diante de uma promessa que oferece mais, o suficiente para desconvencer-se. A importância de ter uma parte consciente e organizada na sociedade é fundamental para propor, fazer e sustentar as mudanças nas estruturas sociais. Se há décadas que não vemos a História rumar para esta direção, é sinal que a inconsciência prevalece sobre a consciência. Por isso, importante é observar o conteúdo dos discursos das forças de esquerda, se elas ignoram a totalidade e atém-se ás promessas particulares, estão mais próximas de também formarem seitas e rebanhos e muito mais longe de proporem uma revolução.

            Parece tão difícil sair da situação de retração e do acovardamento atual, no entanto, as respostas podem estar à vista se soubermos levantar a cabeça e vislumbrarmos a totalidade das contradições e transformarmos esta visão em conteúdo de análise nas consciências individuais, aos poucos elas serão unificadas e organizadas em torno de um propósito maior, deste prometer apenas salvar os crentes obedientes.

                                                           Ademar Bogo      

                                                    Autor do livro: Parâmetro esquerdo

domingo, 4 de setembro de 2022

CLASSE E CONSCIÊNCIA DE CLASSE

  

            O filósofo Georg Lukács ao aplicar no concreto, nos dirá que “o critério sinalizador da relação correta entre partido e classe só podem ser descobertos na consciência de classe do proletariado”.

            De imediato percebemos neste pensamento, uma íntima relação entre as três categorias: partido, classe e consciência. Superficialmente podemos considerar que pouco ou quase nada há de novidade nesta trilogia. No entanto, relendo o parágrafo encontraremos, sem desprezar as outras duas, o acento maior na categoria da consciência; isto porque, é ela quem “sinaliza”, aponta ou também indica, a relação correta a existir entre o partido e a classe.

A consciência é então, por essa visão, a categoria unificadora e sustentadora da organização de classe. Esse destaque é tão importante que o filósofo chega a dar razão a Bakunin, revolucionário anarquista russo, quando afirmou que, “numa classe com unidade interna, a formação do partido seria algo supérfluo”. Não resta dúvidas que a grandeza da consciência de classe é também sinônimo de organização, de unidade e de luta de classes.

O critério da consciência, porém, é pouco considerado na atualidade, principalmente quando se trata de buscar a unidade de ação. As forças pouco organizadas se unem com indivíduos avulsos, como quem é chamado para agir em uma catástrofe de desmoronamento onde imperam pedidos de socorro. É evidente que em uma situação de vida ou morte não cabe discussão; é preciso agir mais com as forças físicas do que com as ideias. E, sem pestanejar, dar a mão para qualquer braço estendido e distribuir magros sorrisos a quem se envolve, oferecendo nem que seja um copo d´água.

Considerando o desmoronamento do capitalismo nesta fase destrutiva e suas permanentes crises, as ações emergentes permanentes tornaram-se obrigatórias para qualquer indivíduo consciente que pense em política. Esta, por sua vez, tornou-se a arte de, por um lado, “reunir os diferentes” e, de outro, “arrebanhar os igualados”, formando dois contingentes sem classes que, presos por baixo dos escombros, pregam a “reconstrução”. Para além disso, outra ideia une as duas partes, culpabilizar os governantes por todos os males e derrocadas homicidas.

Agora já podemos perguntar: seria a urgência do salvamento que leva as forças da reunião dos diferentes a propor a reconstrução do capitalismo ou a falta de consciência revolucionária para a superação do mesmo?

Como estamos falando de Filosofia política, não custa trazermos presente também o que Marx percebeu e escreveu sobre os economistas, no texto “Miséria da filosofia”. Para os economistas, disse ele, só existem duas espécies de instituições, as artificiais e as naturais. Nisso eles se parecem com os teólogos que também estabelecem dois tipos de religião: a emanada de Deus e as outras como invenções dos homens. “Dizendo que as relações atuais – as relações burguesas – são naturais, os economistas dão a entender que é nessas relações que a riqueza se cria e as forças produtivas se desenvolvem segundo as leis da natureza”.

Diante disso, não é difícil concluir que, os economistas e os pastores atuais partem do mesmo principio ilusório, de que, as relações de exploração, dominação e interferência imperialista são naturais e só há uma verdade a ser seguida, aquela emanada pela falta de consciência crítica, que vê na restauração das relações capitalistas a salvação da miséria e da pobreza, quando na verdade reforçam as medidas para mantê-las. Por isso, o discurso dos condutores dos rebanhos, em nome da religião, culpa o comunismo e, o discurso das forças presas ao economicismo, prega o amor contra o ódio, adequando-se à mesma ordem salvadora.

            Com o agravamento da pobreza, acentuando-se cada vez mais para tornar-se estado de emergência permanente, a política passou a incorporar os valores religiosos e, obrigou-se, devido ao enorme potencial eleitoral dos pobres, a proceder a caridade institucionalizada; ou haveria alguma diferença entre pegar uma cesta básica no salão do templo religioso ou ir ao Banco sacar o valor do auxilio governamental e comprá-la?

            O rebaixamento da consciência política em todos os níveis, levou a substituir a organização de classe, seguindo o critério de avaliação, pela “opinião das massas”, sobre quem poderá salvá-las e, esse envolvimento das forças minimamente organizadas, nos processos eleitorais, condenou a luta de classes a ser refém das prioridades emergenciais, ajudando a prometer a solução economicista. Há, com isso, uma ausência de reação determinada, pois, se contra os governos aliados não se luta; contra os governos contrários, espera-se pela volta dos a favor, para não lutar. 

            É evidente que a devoção pela manutenção da ordem capitalista é o endeusamento do Estado. Para o político, de esquerda ou de direita, estar com o Estado, cria a mesma sensação do crente estar com Deus. Sendo assim, se sem consciência o pastor transforma a religião em ópio somente dos crentes, os políticos transformam as eleições em ópio de todos. Por isso, torna-se fácil juntar os dois preceitos, reveladores da mais profunda ignorância: sem religião e sem eleição não há salvação.

            Entender que, consciência, classe e partido, não surgem da natureza, precisam ser criados e alimentados pela luta de classes, é entender que temos muito trabalho pela frente, não para restaurar o capitalismo, mas para revolucionarmos a política. Não há outro caminho. Ou a libertação vem a ser uma obra coletiva dos trabalhadores e massas exploradas, ou seremos eternamente dominados pela alienação.

                                                                                   Ademar Bogo

domingo, 14 de agosto de 2022

POLÍTICA E POLÊMICA

              

            Quando os gregos tomaram a política como referência, entenderam que ela era e ainda é uma das poucas áreas que diz respeito a todos os cidadãos e ao governo da cidade ou do Estado. Aristóteles tentou simplificá-la ainda mais, dizendo que “o homem é um animal político”; certamente entendia ser este, um animal do bem.

            A polêmica, por sua vez, é parte da política. Polemizar significa estabelecer diálogos sobre algo que seja do interesse de todos. Um indivíduo polêmico, a princípio é um precursor a verdade. Nada passa ileso pela sua consciência, pois, sempre pretende confirmar a sua razão. Por outro lado, as polêmicas podem ser praticadas em todas as áreas, na política, economia, filosofia, religião, arte etc.

            Recentemente bradou a primeira dama defensora da moral evangélica, de que o “palácio”, símbolo da política institucional, até pouco tempo, “era consagrado aos demônios”. Errou feio, não pela “diabolicidade” comportamental do próprio esposo, que ela acompanha, mas pelo uso equivocado do adjetivo “consagrado”. Sabemos que desde Zeus até os nossos dias, esse atributo é dedicado aos lugares e pessoas que fazem o bem. O contrário do sagrado é o profano. Profanar é tratar com irreverência, transgredir, regras e princípios, mas isto não é feito pelo demônio, mas sim pelos humanos.

            O filósofo Nietzsche destacou, em seu tempo, algo polêmico. Disse ele que “o mais importante dos acontecimentos recentes – o fato de que “Deus está morto”, o fato de que a crença no Deus cristão se tornou impossível...” parece ser bem atual. Frei Betto em busca de equilíbrio disse que “Deus não tem religião”, certamente quem as tem são os cristãos, mas também os políticos desesperados e interesseiros alinham milicianos da fé para formarem o partido dos mortos de consciência, que choram a prática da própria morte e não de Deus.

            Poderíamos adentrar mais nessa polêmica improdutiva, fetichista e sem consequências. É assim que muitas vezes nos perdemos dando atenção a frivolidades, sem valor intelectual nenhum. De algum modo, são experimentos lançados para que os ruminantes de mentiras possam proceder a remastigação.

            Voltemos ao que interessa. Avançam pelo país, em praças, teatros e universidades, as discussões sobre a “defesa da democracia representativa e do Estado democrático de direito”. O motivo pra esse debate é erguer uma trincheira em defesa do processo eleitoral e da garantia de que o resultado do pleito será respeitado. Parece estapafúrdio, como diria Aristóteles, os cidadãos de bem precisam sair às ruas para defender algo tornado polêmico, propositalmente pelos animais políticos do mal.

            Estapafúrdio também é observar que neste estagio de desenvolvimento da civilização capitalista, coube às forças progressistas e de esquerda, defenderem o “Estado democrático direito”, tido sido, este sim, consagrado pela ordem capitalista. Não faz muito e fica logo ali no tempo, abril de 1964, as mesmas forças armadas que  deram um golpe militar, porque os comunistas ameaçavam o mesmo Estado, colocam-se, após a redemocratização sem punição, novamente na linha de frente, como antees, para romperem com a ordem eleitoral e com ela todas as ordens.

            Esse é o ponto de emergência a ser entendido. A energia que move as mobilizações para a defesa das eleições e da manutenção do Estado de direito, mistura-se com o medo, não do capitão descabeçado, mas das forças armadas que avalizam as suas loucuras e que ao lado do mesmo colocam como candidato, um general experiente para qualquer emergência de substituição, não precisar criar uma junta governativa.

            As inversões tornaram-se naturais, não só porque, para a maioria das religiões partidarizadas, “Deus está morto” ou descaracterizado, como a visão e análise dos processos foram invertidos, e, ao invés da transformação social, busca-se a manutenção da mesma sociedade, como se as velhas forças da revolução burguesa de 1789 tivessem ressuscitado e encarregado os trabalhadores para defenderem os ideais da igualdade, liberdade e fraternidade capitalista.

            O encostamento no muro da História, além de obrigar a fazer coisas avessas à tradição revolucionária, instiga a entrar em polêmicas malfadas como a de que “as urnas são seguras”, que “o Estado de Direito é inviolável”, ou que “todas as religiões devem ser respeitadas”, mesmo aquelas que se configuram como seitas de matriz imperialista.

O mesmo ocorre com o tema das armas. No passado os comunistas foram perseguidos, presos e muitos mortos, porque defendiam a luta armada; na atualidade quem defende e instiga a luta armada, em vista de iniciar uma guerra civil, é o chefe do poder executivo. Seu interesse é evidente, criar um ambiente favorável para a intervenção militar no país.

            Não há como fugir da verdade. Os atos pela defesa do Estado democrático de Direito e das urnas eletrônicas tornaram-se os pontos e urgência obrigatórios na conjuntura, mas, a lucidez política deve nos alertar que, em tempos de progresso econômico, os capitalistas querem a ordem e reprimem os trabalhadores quando reinvindicam direitos; em tempos de crise, eles ameaçam a ordem e colocam os trabalhadores para defenderem o sistema que os manterá ainda mais submissos.

            A superação das armadilhas virá quando nos convencermos que os processos devem ser de superação e não de manutenção ou de regressão. Assim como, os compromissos e as tarefas intermediárias não podem contradizer os objetivos estratégicos, podemos compreender que, se temos energia e organização para irmos às ruas para defendermos a Democracia representativa, podemos também permanecer nas ruas para implantar e assegurar a Democracia participativa.  

 

                                                                       Ademar Bogo