domingo, 20 de dezembro de 2020

A SOCIEDADE CANSADA DA CIVILIZAÇÃO

            Vem de Aristóteles a primeira constatação de que, o homem ao buscar explicações sobre a própria existência encontrou o próprio reflexo de si mesmo, mais tarde, Karl Marx, quando analisou a religião, em 1843, na esclarecedora Crítica da filosofia do Direito de Hegel disse que “o homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si mesmo, já não será tentado a encontrar apenas a aparência de si, o humano, lá onde procura e tem de procurar sua autêntica realidade”.

            A realidade fantástica do céu pode ser entendida como o lugar onde as perguntas mais intrigantes formuladas sobre o desconhecido, foram respondidas e, a “autêntica realidade” deu-se com o encontro do Eu consigo mesmo que nada ou pouco mais era do que o reflexo projetado pelas suas convicções.

            O filósofo coreano Byung-Chul Han, professor na Universidade de Berlin, buscou mostrar em seu livro, “Sociedade do cansaço” que a sociedade da “disciplina” onde figurava o “sujeito da obediência” foi substituída pela sociedade do “desempenho” que visa a autonomia e a produtividade individual. Seria, na verdade, uma superação da negatividade da proibição pela positividade que persegue o poder do desempenho ilimitado por meio das próprias motivações. A conclusão alcançada pelo autor é que, se a “sociedade disciplinar produzia loucos e delinquentes, a “sociedade do desempenho” gera indivíduos depressivos e fracassados. Lamentavelmente, segundo Han, “o homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo e, quiçá deliberadamente, sem qualquer coação estranha”.

            No entanto, se tomarmos como referência a categoria do “cansaço” e desvendarmos a sua natureza, perceberemos facilmente que não há uma causa única para as diferentes expressões dos esgotamentos físicos e emocionais, porque, ao generalizar o cansaço como sendo da “sociedade” incorremos no erro fantasioso de dizer que “todos os seres sociais” estão incluídos na “sociedade do desempenho”, próximos de saírem da coação e da disciplina para entrarem na exaustiva ocupação autônoma e liberal.

            A parcela exausta de indivíduos que encontraram o “reflexo de si mesmos”, está incluída na sociedade destrutiva do capital e que foi criada na esfera antropológica com características forjadas para seres imaginários adaptados à seleção tecnológica, lugar onde podem chegar apenas os ídolos, os gênios, as estrelas e as celebridades. Levam consigo, para o “mundo fantástico do céu” um reduzido grupo de ignorantes, possuidores de dinheiro que pagam para que juntos vegetem naquela superioridade insuportável, muitas vezes amenizado o esgotamento pelo o efeito alucinógeno das drogas. Mas, a grande maioria da humana não “desempenha”, não se inclui a não ser pelo consumo dos produtos gerados pelo reflexo daqueles que controlam o mundo fantástico da alucinação capitalista.

            Se o encontro consigo no capitalismo traz para o indivíduo a “frustração” e a “depressão” que a fama não justifica, é porque, ao mesmo tempo que o desempenho alcançado deixa para trás sinais da própria delinquência intelectual, revela tipos de personalidades inúteis para o melhoramento da humanidade.

            É temerário pensarmos que vivemos em uma sociedade do “desempenho” porque é justamente o processo seletivo que leva dois terços da humanidade a permanecer na sociedade coercitiva, sobre a qual vigora um Estado disciplinador, autoritário e exterminador, isto porque, a grande maioria das pessoas está fora do acesso às mediações que possibilitam alcançar qualquer nível de desempenho autônomo e satisfatório.          

            O encontro do sujeito capitalista com o seu próprio reflexo, propiciado pelas ciência e pela tecnologia, fez com que ele desnudasse a sua própria capacidade destrutiva e, com isso entendeu a origem das próprias crenças, quando os deuses puniam, exigiam sacrifícios, destruíam cidades e criavam pragas ameaçadoras. Desnudo vê-se agora, na fantástica realidade do sucesso como um super-homem insuportável que, por milênios de anos tentou projetar em uma figura superior, as virtudes sonhadas para si.

            O cansaço e a exaustão do modo de produção capitalista promovem o encontro com o homem contemporâneo com a sua própria obra constituída sobre os mais degradantes paradoxos, como: excesso de riqueza e de pobreza; fartura e miséria; moralidade do amor ao próximo e violência; liberdade e igualdade com discriminação; produtividade e devastação, poluição, envenenamento; acumulação do capital produtivo sobre o trabalho; expansão do capital fictício sem trabalho, e tantos outros.

            A “sociedade do cansaço” ou que cansou de si mesma e já não se suporta,  é o resultado de um projeto civilizatório desumanizador insuportável. Evoluindo, retrocedeu à brutalidade e ao medo. “O homem como lobo do homem”, como apregoava Thomas Hobbes, saiu do estado de natureza e alojou-se em cada esquina para abater a quem se negar a ceder, a obedecer ou a se igualar nos princípios da moral fascista e exterminadora. O lobo que ameaça e mata está situado na delinquência organizada, nas empresas de segurança e no Estado; mas também age como “lobo solitário” na intimidade do lar com o feminicídio.      

            A “sociedade do cansaço” é o fim de uma longa marcha em busca do reflexo projetado por cada geração que culminou na saturação, engarrafamentos, ociosidade inútil, e perda de perspectivas, fazendo com que o reflexo do “super-homem” encontrado emitiu a imagem de um rato amedrontado.

            Esse cansaço coletivo, além de impedir que se queira ir além do reflexo já alcançado também nas causas populares, impede de pensar sobre a validade das próprias invenções, como por exemplo: haverá futuro para a sociedade do capital? Para o Estado capitalista? Para os partidos políticos institucionalizados? Para as religiões partidarizadas? Para o ensino da mera diplomação? Para a moral refém da fascistização?

            Apesar do cansaço, não há tempo para descansar, descasaremos durante a própria viagem. Renovar os reflexos para que eles, agora, não estejam voltados para encontrarmos um “super-homem” mas, para uma coletividade, cujas atitudes do presente convertam-se em realidade do futuro; ela  não pode ser outra, a não ser o socialismo. Com ele a civilização capitalista será superada e a humanidade encontrará  a verdadeira realidade.

                                                                                              Ademar Bogo 
                                                                                                    Autor do livro Moral da História    

domingo, 6 de dezembro de 2020

O REBOQUISMO

     O “reboquismo” essa categoria mais apropriada para ser utilizada na engenharia mecânica, foi usada como metáfora por Carlos Marighella, nascido em 5 de dezembro de 1911, portanto, há 109 anos, na cidade de Salvador.

            Ao analisar a crise brasileira no ano de 1966, diagnosticou a principal doença das forças de esquerda do século XX que se propagou ainda com maior vigor no século XXI, ao dizer que: “A substimação do perigo de direita no panorama político brasileiro foi fruto do reboquismo e da ilusão no governo”.

            Se promovermos o verbo “rebocar” à classe principal na análise, extrairemos do enunciado acima três categorias importantíssimas que nos permitirão aproximar as épocas sem diferenciar as concepções políticas e nem mesmo os comportamentos práticos.

            A primeira categoria é a da “subestimação”. Subestimar, em se tratando de política, é quase sempre uma atitude de minimização da força contrária, mas esta referência pode ser usada para qualquer área, seja no tratamento da saúde, nas disputas esportivas, nas reações da natureza etc. Neste contexto Marighella foi bem preciso quando colocou como expressão do “reboquismo” a categoria “subestimação do perigo de direita”.

            A “direita” entendida como burguesia, já no Manifesto Comunista escrito por Marx e Engels e publicado em Janeiro de 1848, não era mais um “estamento”, mas uma classe, e aqui vemos que ela é também perigosa.

            Não perceber que a direita é perigosa levou, principalmente neste século, a fazer composições como se ela fosse a força auxiliar da classe trabalhadora para que esta governasse para todas as classes. Portanto, a direita que impetrou o golpe de 1964 e o outro de 2016, amparada pelo mesmo colo formado pelas duas coxas: dos militares e do imperialismo. Sobre essas duas coxas modelaram-se, em ambos os momentos, os espectros ameaçadores da ordem, da pátria e da família, invertendo a culpabilidade pelas crises e responsabilizando os comunistas, os marxistas, professores e intelectuais críticos do capitalismo. Fabricaram assim, justificadamente, os monstros das torturas e os mitos mentirosos, que inverteram os propósitos das causas populares: “O petróleo é nosso” e “O Brasil é nosso”, quer dizer, deles.

            A segunda categoria diz respeito ao “panorama político”. O panorama diz respeito à visão ampla que percebe a formação do estado de coisas naquele cenário analisado. Podemos considerar que o panorama revela como as coisas estão colocadas no momento em que são percebidas.

            O panorama nos períodos analisados, tanto o do tempo de Marighella quanto em nossos dias é o de crise do capitalismo. Então a pergunta decorre da mesma classe analítica do “reboquismo”, o que vão fazer os trabalhadores no governo se o capitalismo está em crise? Tirá-lo da crise com uma composição com a força burguesa perigosa?

            A terceira categoria é a ilusão. Verdadeiramente não é qualquer ilusão, mas com o governo. Essa maneira embaralhada de ver tem origem ainda nos Jacobinos franceses que inauguraram a denominação, pela colocação geográfica à esquerda no parlamento. Convenhamos que eles estavam com a razão e tinham todo o direito de assim denominarem-se, pois, haviam saídos da sangrenta revolução que legitimara o modo de produção capitalista. Ou seja, os jacobinos compunham uma força de esquerda com posições contrárias aos girondinos de direita, mas ambas as posições eram capitalistas.

            A ilusão com o governo, que Marighella identificou, vinha da própria experiência como deputado, quando ajudou a escrever a Constituição de 1946, mas que foi renegada pelo Golpe de 1964, tal qual ocorreu no ano de 2016. A burguesia como “classe perigosa” rompe com a legalidade que é preciosa em tempos de crescimento econômico, mas indesejável em tempos de crise. Nas crises, as garantias dos direitos sociais e políticos representam amarras que prendem os desejos burgueses, então insurgem-se as forças de esquerda em defesa da lei e da ordem que antes garantiam a acumulação do capital.

            Nos momentos de crise é que surgem as propostas associativas e de formação de “frentes amplas”. Elas são importantes para manter a institucionalidade jacobina, mas, a ilusão de vir a ser governo, impede de que seja percebido que, aquilo que deveria ser provisório torna-se definitivo e o êxito na disputa eleitoral alcançado pela aliança entre os trabalhadores e parte das “forças perigosas”, fará com que eles agora assumam a responsabilidade pela crise do capitalismo, sendo que os únicos culpados por tal situação são as próprias forças burguesas perigosas.

            Por qualquer ângulo que se olhe, medindo os prós e os contras, se a direita é por natureza uma força perigosa, os trabalhadores não podem ser por natureza auxiliares e reboquistas dessa classe dominante como se ela fosse a máquina que arrasta atrás de si um instrumento sem vontade própria.

            A liderança de um processo surge quando a força que se coloca à frente se diferencia das demais pela sua capacidade de formulação e direção. Não ganha velocidade o reboque que tem à sua frente uma máquina forjada para rodar lentamente. Que no aniversário de 109 anos de Carlos Marighella possamos nos dar conta de que, os avisos estão dispostos ao longo do caminho e, em todos eles o reboque passou controlado pela máquina da governabilidade capitalista. Já é tempo de pensar na autonomia e na emancipação da humanidade; para tanto é preciso convencer-se de que não somos jacobinos e por isso não temos nenhuma responsabilidade em fazer o capitalismo funcionar. O nosso compromisso é com a transição para o socialismo.

Salve Carlos Marighella, que nos disse no “Rondó da liberdade”: “Há os que têm vocação para escravo, mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão”. A vida é feita também de escolhas e estas dependem de decisões.

                                                                                                          Ademar Bogo