domingo, 29 de novembro de 2020

O LIMITE DOS PRONOMES

            Leôncio Basbaum ao tratar do tema filosófico “O eu e o nós”, mostra que, na prática eles são muito mais do que pronomes pessoais, isto porque, aquilo que pensamos ser “nós”, é, antes de tudo, a soma dos vários “eus” e, esse entendimento constitui a base da formação da consciência social. Interessa-nos aqui, tomando como referência a categoria da “candidatura”, demonstrar que quase nunca, milhares de “eus” indo às urnas, formarão um “nós”.

            Considerando o assanhamento das eleições no capitalismo, elas precisam ser atrativas por meio do estabelecimento de um clima de inimizade. O desejo de eleger um candidato vem se tornando mais uma obsessão de vingança contra os opositores do que propriamente a diferenciação de programas. Logo, a associação formal ou informal de eleitores é uma obrigação para fazer a diferença nas pesquisas de opinião, como também, na participação de passeatas, carretas e atos que mostram se o candidato está forte ou fraco. É nesse sentido que podemos relacionar o pensamento de Basbaum, quando diz: “Quando digo nós, quero dizer eu, e ele, ou eu e eles. Mas  essa palavra nós será uma palavra abstrata se não se traduz em ação, mesmo passiva”.

            No entanto, o alvoroço da campanha, que supostamente forma uma base de sustentação do candidato, após passado o pleito, desagrega-se deixando de lado quem estava ao lado e, o próprio eleito que fará questão de marchar sozinho como se tivesse captado todos os anseios populares mas precisa recolher-se nas entranhas do poder institucional  para refletir e agir. Esse comportamento estabelecido pela essência da “democracia representativa” diferencia-se da lógica matemática que, pela soma ou multiplicação faz render os resultados segundo cada combinação dos números, senão vejamos: se o candidato representa o número 1 e cada eleitor também, somando 1+1+1+1+1 = 5, isso pode constituir um “nós” para contabilizar o resultado dos votos que será 5. Mas, do ponto de vista organizativo, este 5 nunca representará uma associação permanente de “eus” e nem tampouco o eleito considerará o resultado como base de referência para as suas ações.

            O que almejamos redizer aqui é que, no processo eleitoral com vistas a inserir-se na ordem estabelecida, a soma temporária da reunião dos pronomes pessoais: eu, tu e ele, jamais formaremos um “nós”, pelo contrário, continuará formando um “eu” apenas, como se a soma matemática estivesse errada: 1+1+1+1+1=1. Ou seja, acabado o pleito, aquele “nós” é dissolvido e o candidato fica só, colocando-se inclusive acima de sua agremiação oficial, que lhe emprestou a sigla para eleger-se, como também o eleitor desaparece.

            Essa tradição comportamental forjada nas práticas eleitoreiras, veio ao longo do tempo, destruindo a noção da importância da manutenção da consciência coletiva, no sentido de que todos os “eus” compreendam que política não é um binômio de substantivos associados: administração/reinvindicação; mas, acima de tudo, ela é o lugar em que se estabelece o processo de permanentes superações.

            A consciência social como resultado da reunião e organização dos “eus” têm a capacidade de analisar, quando sim e quando não as contradições estão sendo superadas e colocar o “nós” como força social em posições sempre mais favoráveis para procedermos às tentativas de realizar as mudanças estruturais.

            O que fizeram os ajuntamentos dos “eus” por meio do processo eleitoral, até aqui, foi, formar dois “nós”, um de situação e o outro de oposição, asfixiando a essência da política, por isso, a população em geral não sabe mais se “política” é a arte de transformar a realidade social por meio da organização das forças sociais ou se é a pura participação no processo eleitoral.

            Ao revezarem-se nos governos, situação e oposição, em muitos casos, trocam as bandeiras e, como vimos àquilo que seria um programa de esquerda se transforma em atitudes de direita. Lembremos se quisermos exemplos, do “superávit primário” tão combatido no governo de FHC e mantido posteriormente; da mesma forma as altas taxas de juros, e, a taxação das grandes fortunas, agora posta como exigência que por décadas ficou abafada.

            A conclusão parece evidente, que não basta demonizar o capital, as grandes fortunas, a exploração, concentração de renda etc., e endeusar o Estado por meio da defesa da manutenção da ordem estabelecida. O capitalismo é um todo constituído por meio da infraestrutura e a superestrutura. Enquanto tivermos partidos que colocam o processo eleitoral acima de tudo, o “nós” continuará existindo como pronome e também como a soma dos “eus” de consciências ingênuas que acreditarão no fascínio de um momento no qual elevam um “eu” ao grau de governante.

            É tempo de relativizar este caminho de disputas confortáveis e organizar as forças capazes de fazerem com que, a soma dos “eus” se transforme em organização permanente de “nós”, sem representantes e sem ilusões de que o governo em nosso poder humanizará o capitalismo.

                                                                                                                    Ademar Bogo

                                               

domingo, 22 de novembro de 2020

LUGARES E FUNÇÕES


Há séculos que o Brasil vem se afirmando como um país de etnocidas. Sempre pesou na convivência social a sobreposição de uma classe sobre a outra que, também combina a sobreposição de uma etnia sobre as outras. Definitivamente o racismo no Brasil é praticado com todas as formas de violência e não apenas disseminado como um sentimento de superioridade de brancos ricos contra índios, negros e pobres.

            Sendo o racismo praticado, a violência é dirigida contra humanos tratados como coisas. Quando na verdade, pessoa é pessoa e deve ser respeitada em detrimento de qualquer adjetivo de cor ou etnia. Mas, matar, ferir, machucar, excluir, rejeitar, impedir, afastar e maltratar, são verbos conjugados com ações no cenário social, composto por lugares sofisticados, como Bancos, shoppings, grandes mercados, nas ruas e nas favelas.

            O filósofo Karl Marx já havia alertado em seu tempo que, o dinheiro é no mundo das mercadorias o mesmo que é para o mundo dos homens: a besta que tem sob seu poder o desígnio de todas as mercadorias e, por extensão, o desígnio de todos os homens. E, é por essa razão que a “besta” favorece mais àqueles que a alimentam com os seus negócios do que a parte da sociedade coisificada nas relações cotidianas.

            Se o dinheiro na sociedade capitalista se reproduz por intermédio das coisas, cabe aos indivíduos levá-lo a todos os lugares para que o movimento das coisas promova a sua reprodução. A princípio nada poderia justificar a discriminação das pessoas pela cor da pele, tendo em vista que a força de trabalho coisificada é atraída pelo dinheiro para ajudá-lo na reprodução. O problema é que, no mundo das mercadorias, diferencia-se a “função” do “lugar” que a coisa ocupa.

Função e lugar são duas categorias que justificam, para os racistas, o racismo. É evidente que no capitalismo o dinheiro quer ir a todos os lugares, no entanto, é nesse sentido que o mundo dos homens se divide em dois: o que têm bons e o que tem maus lugares. Com isso também, o dinheiro em cada um dos mundos estabelece os “desígnios” de quem deve ocupar as determinadas funções.

O capitalismo no Brasil, esse “paraíso abaixo da linha do equador”, diferente do paraíso bíblico que possuía uma árvore sagrada e intocável no centro, aqui, desde o início tudo foi permitido. Nem as árvores e nem os lugares são sagrados, por isso os homens brancos de negócios podiam e podem apropriarem-se das coisas, devastarem a natureza, escravizarem, discriminarem e matarem as pessoas que as leis desse mundo asseguram esses desígnios.

E eis então que o país ingressou na civilização capitalista demarcando os lugares e as funções dos homens, das mulheres, das etnias, das coisas e da natureza. Na medida em que os bons lugares foram associados ao dinheiro, os brancos foram designados pelos seus próprios critérios a ocupá-los; os pobres foram misturados com as coisas no mundo das coisas e passaram ser aproveitados ou descartados.

O racismo no Brasil sustenta-se pelo auto desígnio dos ricos de que os pobres somente podem ser úteis se forem coisificados. Como coisas são levados a ocupar os lugares nos quais se reproduz o capital. Interessa então a força de trabalho do preto e da preta, nas casas, nos shoppings, na limpeza das ruas, nos serviços mal remunerados etc., mas não interessa ver homens e mulheres de cor preta, nos consultórios, nos escritórios, nas gerências empresarias, na aviação civil, no, Bancos, cartórios etc.

Além de ser lugar e função o racismo também é um acordo pelo qual todos os brancos bem situados e relacionados com o dinheiro devem vigiar para impedir que os pretos ultrapassem a linha divisória que separa o mundo dos homens e o mundo das coisas. Podem ficar nos redutos das favelas, como “lugar de preto”, mas não podem frequentar os lugares com assentos marcados dispostos para uma quantidade reduzida de indivíduos com cargos bem remunerados.

O racismo assegurado por todas as violências é mais do que a demonstração da supremacia racial, é a linha divisória que demarca a divisa entre o mundo dos homens e o mundo das coisas, no qual, os pretos e pobres são tratados como coisas. Tanto é verdade que, quando ocorre uma violência desmesurada no salão iluminado do Carrefour, os próprios proprietários aparecem para pedir “justiça e, como se fosse um objeto vendido com defeito, oferecem à família uma indenização pela vida matada; enquanto os praticantes do ato, muitas vezes pretos, ensinados a serem racistas, são julgados, condenados e levados a cumprir pena.

Da mesma forma, outros defensores da “justiça” em geral, nessa sociedade de política eleitoreira, prontificam-se a lutar para punirem os culpados, quando os culpados não são os agentes que matam friamente, mas a estrutura que assegura as funções e os lugares para a minoria branca contratar seguranças e treiná-los para matar. Enquanto houver capitalismo haverá racismo, principalmente porque, no Brasil, ele nasceu junto com a formação das classes sociais.

Punir indivíduos, desequilibrados, do serviço público ou terceirizados, que excedem o uso da força e por isso matam, não arranca de dentro da classe dominante o orgulho de possuírem a supremacia de classe e cor. Arranca-se o orgulho racista da classe dominante e de seus aliados de dentro de suas consciências, arrancando-lhes o poder que lhes permite definir os lugares e as funções que as pessoas podem ocupar.

O racismo está nas ações e nos dizeres. O antirracismo começa pela continuação dos enunciados racista, para fazer com que “o feitiço vire contra o feiticeiro”: “A coisa está preta, para quem maltrata pretos”. Nesse sentido. a transformação social brasileira poderá ser alcançada se a revolução brasileira tiver a "cara preta"

É tempo de recompor a classe para que as consciências se identifiquem e se pintem da mesma cor, para que pretos e brancos que se igualam façamos surgir uma nação com funções e lugares estabelecidos pela solidariedade e o respeito. Se dinheiro e o capital perderem a supremacia sobre a dignidade humana, o racismo será extinto juntamente com a classe branca dominante.

                                                                                                               Ademar Bogo

 

               

domingo, 15 de novembro de 2020

UTOPIA SEM IDEOLOGIA

           Utopia e ideologia são palavras que representam fenômenos ambíguos e provocam na consciência humana ilusões e encobrimentos das causas que sustentam os desejos de alcançar aquilo que ainda virá. E, embora sejam duas forças integradoras, enquanto uma puxa para frente a outra empurra para trás.

            A ideologia vista por este entendimento, representa a distorção daquilo que é real. Atua por meio do discurso procurando sempre satisfazer os interesses particulares utilizando-se da força coletiva. A utopia atua de maneira inversa. Se a ideologia faz de tudo para esconder a realidade do lugar real, a utopia faz de tudo para mostrar aquilo que ainda não existe em lugar nenhum.

            De modo geral, os dois fenômenos, utópicos e ideológicos, são produzidos em todas as interações sociais que surgem e se desenvolvem, como nos diz o filósofo alemão Gürgen Habermas, no “mundo da vida”, que envolve a economia, o comércio, a indústria, a educação, a religião etc. Para nós interessa discutir agora a presença de ambas na política.

            Para melhor estruturarmos o aprofundamento filosófico sobre os dois fenômenos, devemos usar aqui duas categorias: a primeira diz respeito à “legitimação” e, a segunda, o “encantamento”.

            Quando tomamos a legitimação como categoria de análise, temos, logo ao lado, a categoria do encantamento que complementa a primeira com a atração boquiaberta de seres interessados em desfazer a ocultação até então proposta em vistas da superação daquele estágio aparentemente saturado. No entanto, desconhecem os “boquiabertos” que o movimento das ideias e dos fatos, atuam para deslegitimar o legitimado anterior, para estabelecer algo que deverá ser deslegitimado amanhã. Assim ocorre com o encantamento que promete superar o desencanto com a fragilidade da promessa estabelecida para desencantar.

            A grande virtude da política é a capacidade de poder fazer e desmanchar porque ela primeiramente é feita com ideias. Tudo passa pela ideia antes de se tornar um medida política, que na campanha eleitoral conhecemos como promessa. Neste caso, aquilo que é denominado como “a festa da democracia” desencadeada pela força do voto, nada mais é que a comemoração da ideia produzida pela ideologia de agremiações partidárias que encantaram parcelas das populações a se deliciarem com a utopia ou lugar feito de promessas nunca alcançado.

            As eleições estão impregnadas de ideologia e utopia e,  “a festa da democracia” a cada dois anos, tem a intenção de fazer suportar a “política oculta” que funciona no “mundo da morte” de pessoas, planos, vontades, desejos etc. Se assim não fosse as pessoas votariam sempre nos mesmos candidatos e eles passariam a ser vitalícios nos cargos legislativos e executivos.

            O encantamento é uma necessidade na política como é o romance na literatura. Somos humanos, precisamos fugir do real para que ele não nos devore. A ideologia como força enganadora, cumpre o papel de, amenizar as dores do totalitarismo econômico que não tem mandato a cumprir; do totalitarismo racial que não alivia a discriminação da cor da pele preta; do totalitarismo masculino que vê o feminino a matéria a sua presa de submissão; do totalitarismo laboral que usa a força física e mental dos trabalhadores para acumular riquezas; do totalitarismo cultural que inferioriza a maioria da juventude negando-lhes o acesso às mediações culturais; do totalitarismo policial que alveja os alvos de carne e osso como se fossem de papel, e tantas outras formas que a ideologia eleitoral não deixa aparecer.

            O que legitima então “a festa da democracia”? O totalitarismo estrutural. Parece estranho, mas não é. O encantamento com as eleições faz com que se deixe de perceber que as mudanças propostas não oferecem perigo algum à ordem estabelecida. É assim que no capitalismo a “democracia” legitima o totalitarismo. Manejado pelas elites ou por aqueles que se valem das ideias para obscurecer a verdade, os ideólogos oferecerem ao invés da superação das causas, apenas  um breve alívio das consequências.

            “É o que temos”, dizem os ilusionistas buscadores de um lugar real na estrutura de poder. A ideologia é uma força ilusionista para o povo, por isso precisa encantá-lo e fasciná-lo para que acredite que as ideias enganosas oferecem o “tudo de bom”. Em nome da utopia da liberdade, os escravizados brasileiros suportaram 350 anos de escravização e, quando foram agraciados com a Lei Áurea de 1888, um ano antes da proclamação da República, deparam-se com a realidade e, a utopia imaginada tornou-se a ausência de lugar, com um amplo vazio de possibilidades. Mas as elites não. Enquanto chicoteavam no tronco e nos canaviais, os pretos maltrapilhos, os brancos faziam a independência do Brasil, escreviam a primeira Constituição e modificavam o código penal escrito anteriormente em Portugal.

            A ideologia que leva a ouvir o clamor das urnas eletrônicas, que festejam com música a confirmação de cada voto, cuja letra diz: “venha, vote e legitime o legitimado”, ganhou também o apoio de todas as forças partidárias; dentre elas, as mais críticas, agem como os abolicionistas do passado: prometem igualdade, sem tocar na propriedade dos meios de produção; justiça, sem efetuarem o julgamento e a condenação dos capitalistas causadores da miséria; liberdade, sem garantirem o acesso aos bens materiais e aos meios para garanti-la.

            O totalitarismo capitalista, obscurecido pela ideologia da “festa da democracia”, não pode impedir que se cultive a utopia que nos faz acreditar, mesmo que seja em superações idealizadas, que o futuro poderá ser melhor se for antecipado a sua construção. A democracia virá no dia em que o voto será substituído pela ação que deslegitimará o legitimado e transformará o encantamento ideológico em desencanto porque, todo o mal se fará passado e, portanto, superado.

            A consciência é a arma para combater a ideologia. Ver o real e querer o ideal forma a conjugação do verbo lutar. Se o processo eleitoral que afirma a democracia representativa ameaçasse e prejudicasse a classe dominante, ele já teria sido extinto. E para aqueles que acreditam derrotar a mesma classe dominante dentro da legalidade por ela instalada, nada mais fazem que servir de amortecedores dos choques que poderiam causar uma ruptura na ordem estabelecida.

            Uma marcha que anda em circulo é apenas uma marcha sem horizonte. Mas, uma marcha que anda para frente, mesmo que em linhas curvas, faz do horizonte a sua meta que lá um dia chegará.

                                                                                                                          Ademar Bogo

                                                                                                     Autor do livro “Moral da História”.

                                  

 

domingo, 8 de novembro de 2020

O MARAVILHAMENTO CONFUSO


            Vladimir  Jankélévitch, o filósofo francês que viveu entre 1903-1985, cunhou esse vocábulo na Filosofia e aqui nos servirá como uma categoria de análise. Ele nos mostra que o encantamento ou o espanto com algo surpreendente pode ser mais ilusório do que concreto, ou mais metafísico do que real.

            O maravilhamento surge pela revelação de algo que se esconde por trás das sombras e causa uma importante satisfação e também uma euforia, que têm motivos, mas, não tendo base real para se sustentar, afunda como a baleia que se mostra por alguns segundos sobre as águas, mas logo em seguida desaparece. Sabe-se que ela continua lá, mas não se pode saber os dados mais superficiais como as medidas, o peso, a idade etc., e, em pouco tempo, o maravilhamento se dissolve, restando apenas uma lembrança, talvez uma fotografia e uma duradoura saudade. .

            Esse maravilhamento vimos revelar-se nos últimos dias nas eleições para presidente da República dos Estados Unidos da América. Uma boa parcela da humanidade está maravilhada com a derrota do “homem mais poderoso do mundo”, sem considerar que um pouco mais da metade dos eleitores daquele país escolheu outro homem, também poderoso para ocupar o lugar.

            Isto quer dizer que não valeu à pena? “Tudo vale à pena, quando a alma não é pequena”, nos disse Fernando Pessoa e, nesse caso é um valor para as almas pequenas. Vale pelo maravilhamento. Há épocas que precisamos um pouco de fantasia para não enlouquecer. Mas os negros e os imigrantes latinos que residem nos Estados Unidos, perceberão em curto prazo que eles estarão fora do governo e que a polícia branca continuará sendo branca e que o racismo que contribuiu para a derrota do presidente atual, continuará arraigado nas consciências pervertidas e intolerantes.

            Por outro lado, as populações periféricas do mundo, que também nos maravilhamos com “a pequenez da alma” sequestrada pela tática eleitoral, sentiremos que o maravilhamento confuso e momentâneo não converterá a brutalidade dos setores da extrema direita e seus adeptos em posições de bom senso. A razão para compreendermos essa posição é muito simples: o capitalismo em sua fase destrutiva precisa de sujeitos destrutivos para que o capital possa se reproduzir.

      Karl Marx, durante a sua vida não se cansou de revelar que, a personificação das formas sociais de poder se dá pela encarnação dessas mesmas formas em representantes humanos. Ou seja, para que as estruturas mortas tenham vida precisam de pessoas que as assumam como suas, é por isso que, a mercadoria, o dinheiro, o capital e a forma política estatal, existem e funcionam pelas próprias leis tendenciais assumidas por indivíduos que, na atualidade, por conta da decadência estrutural do capitalismo, representam também as posições de extrema direita.

            É esse processo de encarnação das formas: mercadoria, dinheiro e capital, que o maravilhamento das parcelas mais sofridas da humanidade não conseguem desmanchar com uma eleição. A destrutividade capitalista é tamanha que amedronta as classes dominantes e estende o seu medo para a classe média que facilmente percebe a linha divisória entre o conveniente e o nível mais baixo do padrão de vida.

            Nessa viagem para o futuro, em busca de assegurar os seus espaços, os indivíduos mais bem posicionados atacam e forcejam para descartar as parcelas da população que estão embaixo e que exigem direitos e respeito.

            As eleições, como o salto da baleia, mostram, mesmo que de relance, a divisão criada entre as populações. Em estudos passados foram revelados dados que mostravam as intenções da globalização e do neoliberalismo que era criar as condições para que 30% da população mundial tivesse acesso a todos os benefícios do capitalismo. Isso certamente não mudou. Apenas para que se legitime por meio da fantasiosa “democracia representativa”, tornou-se necessário buscar o apoio de mais 20% das populações, dispersas ou organizadas em seitas religiosas ou cooptadas pelas políticas assistenciais sustentadas pelos governos.

            Os sinais indicadores de que as populações em diversos países não estão apenas divididas, porque isso de algum modo sempre ocorreu, mas agora são também vistas como inimigas pelas classes dominantes. Essa postura de acirramento das tensões das forças de extrema direita para, quando perderem não deixarem governar, tem como objetivo manter uma porcentagem razoável da avaliação positiva para justificarem os ensaios de guerra civil, atuação livre das milícias, que se encarregarão da matança das massas incômodas ao capital.

            Nesse sentido, uma derrota eleitoral pode representar muita coisa, até mesmo o maravilhamento temporário e confuso para as populações exploradas e abandonadas; mas, acima de tudo, para as classes dominantes e forças auxiliares, pode mostrar que para se sustentarem precisarão estruturar ainda mais as forças paramilitares e intensificar a violência contra as massas opositoras, incômodas e excedentes no capitalismo decadente.

            Tudo isso nos mostra que a suposta tendência à moderação institucional não baixará a temperatura da polarização real; as forças de direita utilizarão como matéria política, o racismo, a discriminação, os preconceitos, a exclusão e o extermínio, isto porque, o capital após encarnar-se transfere o seu caráter inumano para o capitalista.

            A única forma de enfrentar a decadência é superá-la, para isso é preciso maravilhar-se conscientemente com o processo de transição socialista.

                                                                                  Ademar Bogo  

                                                                               Autor do livro: Moral da História 

domingo, 1 de novembro de 2020

A EMERGÊNCIA DO NAUFRÁGIO OU DO FENÔMENO

            O termo emergência, na Filosofia, costumamos usá-lo para designar quando um fenômeno forma-se a partir de outro fenômeno. No sentido corriqueiro é o movimento de fazer surgir das águas alguma coisa que estava submersa. No primeiro sentido temos a possibilidade de observar e direcionar a análise e, também os resultados do fenômeno que surge, na segunda, a lógica faz considerar aquilo que é direcionando os efeitos previsíveis.  

            O Filósofo grego Epicuro, que morreu em 270 a.C descobrira que “tudo o que acontece no mundo deve-se às ações e as interações mecânicas dos átomos”. Esse entendimento direcionado aos átomos pode ter levado a uma compreensão bastante estreita porque, no fundo, para o filósofo, todas as coisas, inclusive os deuses eram compostos de átomos, mas, o mais importante foi que ele nos alertou de que há um movimento que faz as coisas interagirem, chocarem-se ou aliarem-se.

            O raciocínio fica ainda mais integrante quando nos damos conta que as ações e interações quando vamos para a política. O movimento dos corpos compostos de átomos que gere a mesma é bastante confuso. As razões para essas confusões podem ser encontradas nos interesses, nas vontades e desejos dos indivíduos que manejam os encontros e os desencontros reais. A pergunta que tentaremos responder é: se os corpos que dão forma ao sujeito estruturam e conduzem a política, foram, são e serão compostos por átomos quem os dota de vontade e desejos para se colocarem em certas posições em cada época?

            Se “uma longa marcha começa com o primeiro passo”, diz o provérbio chinês, tudo depende da escolha e do lado para onde a marcha deve ir, mas, principalmente, por que e o que se quer encontrar no final? Aliás, a definição do objetivo e a escolha do percurso já definem para onde e com quem a marcha será feita.

            Para ilustrar ainda mais este preâmbulo, o pensador humanista holandês, Erasmo de Roterdã (1467-1536), nascido e morrido no Renascimento, bem antes da Revolução Industrial, mas que já indicava o seu surgimento optou, propôs que, invés de combater as forças conservadoras que se colocavam contra os avanços científicos, artísticos, literários etc., deveriam incluir na política, o ideal moral que visava antes converter os príncipes para que praticassem os ideais cristãos e, dessa forma eles fariam com que reinasse a paz e a harmonia. Numa clara afronta ao italiano a Maquiavel, falecido em 1527 que havia proposto em “O príncipe” a separação entre religião e política, Erasmo expôs em seu escrito, “A instituição do príncipe cristão”, as ideias que, aparentemente, constituíam um programa com diversas medidas, dentre elas constava: “Mobilizar todas as forças morais em favor da paz”.

            Com essas referências podemos recolocar os parâmetros e observarmos o movimento dos átomos e dos seus interesses e desejos na política atual, isto porque, num momento em que se deve pensar mais profundamente como colocar as forças para iniciar uma longa marcha de superação de todas as causas estruturais que sustentam a decadência do capitalismo, o que vemos são os velhos corpos emergirem das águas da política, trazendo consigo as marcas que possuíam antes do naufrágio.

            Todos os esforços empregados nos últimos tempos voltam-se para convencer o “príncipe Kyros” (Ciro) que na etimologia grega significa, “aquele que tem autoridade”. Em nosso caso, a “autoridade” de convencer parcelas das forças da direita para fazer emergir a aliança editada em 2002 com um vice de linhagem burguesa. Por essa razão é que, ressurgindo os mesmos átomos, ressurgem as mesmas expectativas, vontades e desejos e, o primeiro passo, para a realização da “longa marcha” fica suspenso, porque, a ocupação do tempo em assistir a emergência dos restos naufragados, sintetiza o conteúdo da alienação.

            Sem muito mais explicações, devemos compreender que há, pelo menos, duas possibilidades de emergências importantes, e elas poderão até acontecer ao mesmo tempo como acontece com o movimento de todas as coisas, são elas: a emergência do naufrágio político e a emergência do fenômeno político. No entanto, só o segundo pode desencadear a longa marcha. O primeiro, como a emergência de um corpo das águas, “morre na praia”

            A emergência fenomênica nos diz que de um fenômeno surge outro. É a lei do movimento das contradições que inovam e reorientam os processos. Do naufrágio só pode emergir o velho, o anterior, o conservador e o desejo de somar-se à ordem do sistema democrático assistencialista que como Erasmo, os seus defensores sonham “humanizá-lo”.

            A emergência do fenômeno se dá pela reação, nuca pela conciliação, isto porque, o fenômeno antagônico causador da emergência precisa ser superado. Mas este fenômeno não pode ser visto nem projetado por forças apáticas. E elas não sairão dessa condição enquanto forem atraídas para a beira do lago para apreciarem a emergência dos corpos naufragados puxados pelo mesmo guindaste do processo eleitoral. Certamente, como Erasmo, fracassando mais uma vez, porque, quando algo emerge de um naufrágio traz consigo resquícios de lama e defeitos morais graves.

            Por fim, a emergência também pode significar pressa. O estado de decadência da civilização é tão caótico que, para interrompê-lo, não basta torcer que candidatos um pouco menos pior no Estados Unidos da América ou no Brasil sejam eleitos. A democracia eleitoral não pode mais ser o parâmetro para medir se um Estado é totalitário ou não. O momento pede inovações e não emergência de destroços.

                                                                                  Ademar Bogo