domingo, 18 de dezembro de 2022

O CIPÓ DE AROEIRA

                                          

            Quando o filósofo Friedrich Engels esclareceu, em seu livro, “A origem da família da propriedade e do Estado”, que o Estado nasceu dos antagonismos ente as classes, justamente quando a sociedade chega a um determinado grau de desenvolvimento e se enredou “numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis, que não consegue conjurar”; estava revelando a natureza do Estado capitalista.

            Havia no ano de 1884 quando o livro foi publicado, pelo menos três visões destacadas sobe a natureza do Estado. A primeira visão foi elaborada pelos filósofos antigos, com destaque para Aristóteles, cujo entendimento era que o Estado surgiu naturalmente e, inclusive, funcionava conforme as leis e as hierarquias do poder das demais espécies. Ou seja, os homens, assim que passaram a viver em coletividades, copiaram da natureza o seu sistema político.

A segunda visão foi elaborada por Immanuel Kant, nascido em 1724 e falecido em 1804, na Alemanha. O seu pensamento sobre o Estado evoluiu para além da natureza e instituiu-se pela razão humana. Por esse entendimento, a razão tida como universal e, baseado nisso, poder-se-ia ter uma ordem universal ditada pelo dever de que as vontades se realizassem e, com isso, alcançar-se-ia também a paz universal.

            A terceira visão elaborada por Georg W. F. Hegel, filósofo alemão, nascido em 1770 e falecido em 1831, ateve-se à compreensão de que o Estado é “a realidade da ideia moral”. Essa forma de ver, encantou mais a burguesia. Além de considerar o Estado como o “reino da liberdade”, justamente por ser ele “o espírito absoluto”, servia ele de instrumento concreto para centralizar o poder e garantir a ordem para a “sociedade civil”. Essa sociedade era formada unicamente pelos donos da riqueza e, principalmente no contexto dos ascensos revolucionários na Europa, aquela classe dominante sentiu-se contemplada.

            Engels, em 1884, um ano após a morte de Karl Marx, já havia acumulado todo o entendimento da critica ao capitalismo e as demonstrações históricas do movimento das contradições, davam a ele não apenas os fundamentos filosóficos para identificar as contradições vigentes, como também para pensar a própria superação do Estado.

            Para Engels, esse poder “nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais...”, não pertence a ninguém e, de um certo modo, isto é verdadeiro. Ele pertence à ordem estabelecida e cuida para que esta ordem não seja desfeita pelos conflitos entre as classes. No entanto, o próprio Engels afirma, “...o estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado.” (p.194).

            Na medida que o “estado de direito” deve ser mantido e conduzido pelo princípio de que a lei esteja “acima de todos”, presa-se primeiramente pela ordem estabelecida. A ordem pode ser entendida como lei, mas não totalmente. A ordem acima de tudo é o poder do “estado de coisas”, ou, dito de outra forma, é como estão colocadas as coisas na sociedade.

            Por “coisa”, podemos entender, a propriedade privada, o capital, o dinheiro, o emprego, o salário, o mercado etc. Ou seja, na medida em que essas coisas estão colocadas numa ordem de movimentação e funcionamento, entram a lei e a força policial do Estado para assegurarem que assim permaneça. Com isso se assegura que a sociedade desigual funcione.

            Por isso, parece estranho ver algumas vezes um político, um dono de Banco, comerciantes e outras pessoas tidas como participantes da classe dominante serem presas. Essas ações do Estado não significam que ele mudou a sua natureza e passou a ser favorável aos setores mais pobres da sociedade, mas sim que ele interviu para evitar a desordem instalada por membros da classe dominante. No entanto, nos demais setores em que o “estado de coisas”, como a exploração da força de trabalho, o funcionamento do mercado; a manutenção das taxas de juros; impostos pagos etc., tudo continua normalmente, mesmo que o presidente da República viva a fazer passeatas com motocicletas ou se escondendo silenciosamente por meses após a derrota eleitoral. O sistema funciona pelo conjunto dos ordenamentos.

            Fica mais nítida essa representação, se vincularmos com a situação atual dos acampamentos em frente aos quarteis. Formados por representantes de setores da classe dominante, exigem a intervenção militar, por meio de um golpe de Estado. Contra esse movimento o poder judiciário age rigorosamente, mesmo que os manifestantes sejam adeptos do presidente da República prestes a deixar o governo ou estejam sustentados por empresários golpistas.

            Mas entendamos que, essa reação do poder judiciário, não é a favor da esquerda nem dos trabalhadores. É a favor da ordem. Se as forças de esquerda e progressistas se beneficiam dela, é porque estão comprometidas em manter a ordem das coisas como estão postas. Circunstancialmente é uma situação ruim para as forças da extrema direita e boa para as forças de esquerda, porque estas últimas voltam ao poder governamental e poderão, na margem permitida pela ordem, direcionar as políticas públicas.

            No entanto, a ordem do estado de direito permanece vigente como sempre. Lembremos que no período do golpe de 2016 quando a presidente da República foi cassada, as mesmas formas de luta, repetidas pelos “patriotas” de hoje, a favor do golpe (menos essa de acampar em frente aos quarteis), em grande medida foram utilizadas contra o golpe. E, por incrível que pareça, diante da mesma Corte, ambos os movimentos foram derrotados: nem a presidenta Dilma voltou em 2016, nem o presidente Lula será impedido de tomar posse em 2023.

            Há, de qualquer modo, dois mistérios que assombram, e ambos são oriundos da mesma matriz: o silêncio do presidente genocida, fortíssimo e ovacionado por multidões há poucos meses, mas que deixa o governo como se estivesse de acordo em ser julgado pelos crimes e ir para a cadeia e, o silêncio das ruas, nas quais não se vê as forças contrárias, vitoriosas na eleição para presidente, mas desmobilizadas, como estiveram nos mandatos anteriores de Lula. Reeditaremos a crença de que, um presidente, um juiz ou a própria mídia assegurarão os direitos?

            De outro modo, ecoa nas paredes das melhores consciências o sentenciamento de Engels,  ao terminar o livro declarou esperançosamente que: “As classes vão desaparecer, e de maneia tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado” (p.196).

            Evidentemente que não podemos fazer tudo de uma só vez, mas pelo menos podemos pensar. Será que, com a a reunião entre as classes ou pelo menos setores delas, a ordem e o estado de direito capitalista serão enfraquecidos? Que avanços podem ser construídos em um governo não genocida mas a favor da ordem? É bom pensar porque as consequências são cruéis para ambos os lados, quando a ordem é ameaçada. Castigado é o desordeiro ou alguém que a ordem queira culpar. A exemplo do que retratou o poeta Geraldo Vandré em sua música “Aroeira”: “Marinheiro, marinheiro/ Quero ver você no Mar/ Eu também sou marinheiro/ Eu também sei governar/ Madeira de dar em doido/ Vai descer até quebrar/ É a volta do cipó de aroeira/ No lombo de quem mandou dar”.

            Por tudo dito, visto e revisto, quando os trabalhadores e as massas empobrecidas estiverem adorando a ordem e o estado de coisas, é porque já chegaram no socialismo ou se entregaram definitivamente ao capitalismo.

                                                                                                             Ademar Bogo                              

domingo, 4 de dezembro de 2022

SONHAR PARA FRENTE

 

O filósofo alemão Ernest Bloch, ao escrever a sua obra “Princípio esperança”, volume I, destacou que, “Quase toda utopia, seja médica, social ou técnica, tem características paranoicas. Para cada autêntico pioneiro, há centenas de fantasiosos, irrealistas e loucos. Se fosse possível pescar alucinações que nadam na aura dos manicômios, seriam encontradas as prefigurações mais admiráveis...”.

Os comparativos metafóricos traçados são interessantes. Apesar do autor remeter-se á Psicose e tomar o delírio como referência, não quer tratar as capacidades imaginativas de distúrbios mentais, senão que, instigar a pensar, e porque não, levar a sério as imensas quantidades de fantasias surgidas ao lado de uma decisão principal. Quando liberamos as ideias, tornamos sujeitos da ação os seus formuladores.

Vista pelo lado imaginário, a política em nosso país é um verdadeiro “manicômio”, não de loucos, mas de sonhadores dominados. Não pensemos que essas mobilizações em frente aos quarteis não tenham sido forjadas pelas inspirações direcionadas fazendo as ideias alucinadas tornaram-se ações. A motivação é fantasiosa, mas as energias, física e mentalmente empregadas, são reais. E, naquele mundo de ilusões as incertezas assemelham-se aos delírios paranoicos que forjam os medos das perseguições, ameaças comunistas, ataques contra a moral conservadora e alienada etc.

De outro lado, há o outro lado que festeja calado e, na sua convicta grandeza, espera pelas realizações da ideia vitoriosa. Esse também é um mundo imaginário, com poucas insinuações do que poderá acontecer. Aparentemente a perseguição deu trégua e o pior foi sufocado nas urnas. Mas, ao contrário dos marchantes mobilizados, o lado vitorioso ainda não transformou o seu querer em ação. E, como se governante e governados fosse um só corpo e uma só cabeça, espera-se pacientemente pela transição e logo em seguida pela posse.

É evidente que ao lado de uma ideia forte existem centenas de ideias imaginárias  fantasiosas expressas nas mensagens virtuais. E, se podemos comparar o atual cenário político brasileiro com um manicômio, veremos que ele está estruturado com duas alas: a ala amarela fixada, alucina-se com a ideia do “golpe militar” e, a ala vermelha, com a ideia da governabilidade. Os primeiros imaginam os comunistas sendo surrados, presos e mortos; as florestas derrubadas e, lá do alto, heróis pilotando aviões, despejando toneladas de semente de capim, para formarem pastagens e, cá em baixo, milicias armadas passeiam livremente pelas ruas para ajudar o Estado  a fazer o trabalho sujo. Os segundos, vislumbram as panelas cheias de comida, as escolas lotadas e o comércio fervilhando de consumidores sem conflito entre as classes.

Por que chegamos a essa pobreza de imaginação? Poderíamos elencar diversas causas, mas, no fundo, elas terminariam em duas que foram se afunilando ao longo dos tempos comandadas pela ideia forte do capital: a ditadura militar e a democracia representativa. Assim, agruparam-se e se fortaleceram os defensores das duas vias: a do golpe e a dos defensores das eleições.  O primeiro, espreita pelo momento mais propício para ser desfechado, pois sem condições internas e externas não há como movimentar os tanques e, a outra, mantém a adoração à democracia representativa, cuja ideia é “manter a ordem” com exploração, mercado e Estado.

Chegamos, portanto, à debilidade mental, causada pela anulação da utopia paranoica da juventude, dos trabalhadores e das massas populares. Ninguém mais imagina nada fora da ideia principal proposta. As imaginações tornaram-se tão minguadas que não alcançam ir além da próxima semana. Já não se pensa no futuro, apenas no consumo do presente. Se fossemos comparar os sonhos diurnos e noturnos, chegaríamos à conclusão que, quando acordamos não lembramos se sonhamos e, acordados, não há tempo para sonhar.

A ideia de sonhar para frente não é alucinação, mas precaução. As gerações mais velhas vivenciamos os tempos dos golpes os das esperançosas eleições. No fim, esses tempos se revezam substituindo um ao outro sempre que as paredes do grande manicômio capitalista tremem. Nesse momento, a ideia pioneira pertence ao capital e, em torno dela formam-se os consensos que anulam todas as demais imaginações.

Não é errado e devemos acreditar que falta loucura na política. Ela deve existir para fazer ressurgir as renegadas capacidades populares. E, sem substituir os heróis que são sempre momentâneos, porque é o ato heroico quem o faz ser herói e não o tempo de bajulação, iniciarmos a marcha que nos leve para casa. Ela sempre foi a rua, a luta, a formação da consciência, a organização,  o trabalho de base, a revolta e a insurreição.

A utopia deixará de ser uma ilusão ingênua, quando anteciparmos em nossa mente o que iremos fazer concretamente para superar a sociedade imprestável, para a grande maioria da humanidade, em sociedade igualitária e solidária. Nunca devemos esquecer do sabido ensinamento popular que o inimigo afugentado sempre volta , quando isso acontece, os estragos são ainda maiores. Mandatos passam.

                                                                       Ademar Bogo,