domingo, 24 de janeiro de 2021

OBRIGATORIEDADE E LUTA

        Vivemos em uma sociedade em permanente conflito entre a obrigatoriedade e o desrespeito. Se a primeira nos coage o segundo nos tenta a agirmos inversamente. Há, no entanto, pelo menos duas linhas de obrigações coercitivas: as que constam em leis e, as recomendações das normas morais.

            Freud ao tratar da civilização percebeu que há pessoas defensoras da mesma e outras que a hostilizam porque precisam renunciar aos próprios instintos em respeito às proibições postas. O raciocínio do autor de “O futuro de uma ilusão” sugere a imaginar que, se cada indivíduo pudesse tomar a mulher que quisesse como objeto sexual; matar sem hesitação o rival ou qualquer pessoa que se colocasse no caminho que leva à pessoa amada, e se, também se pudesse tomar qualquer dos pertences de outro sem pedir licença, que sucessão de satisfações seria a vida!

             Por outro lado, se assim ocorre-se de imediato perceberíamos que todas as pessoas com as quais convivemos teriam os mesmos desejos e poderiam fazer conosco o mesmo feito por nós e, viver seria algo muito perigoso como já foi no passado quando a humanidade ainda vivia no “estado de natureza” e lá imperava a “guerra de todos contra todos”, conforme descreveu Thomas Hobbes.

            O filósofo Aristóteles não ignorou o tema da obrigatoriedade, mas a sua argumentação se ateve à classe dos “atos justos”; eles sempre estão em consonância com alguma virtude e também prescritos pelas leis. Aqui nos deparamos com mais uma restrição aos instintos, isto porque, não basta seguir a prescrição da lei, mas considerar que, se ela “não permite expressamente, ela proíbe”.

            Aristóteles ilustra a sua explicação com o suicídio. Poderíamos cada um de nós pensarmos dessa forma: ‘a lei pode me proibir de matar o meu semelhante, mas não pode proibir que eu mate a mim mesmo.’ A resposta já foi dada acima: se a lei não autoriza, mesmo sem expressar por escrito, ela proíbe. O raciocínio é bastante simples: se alguém viola a lei, causa voluntariamente um crime, porque ele conhece tanto a pessoa quanto o instrumento usado para causar o dano a outrem e por isso age injustamente.O mesmo princípio da voluntariedade é usado para avaliar um indivíduo que conhece a si mesmo, mas se apunhala atentando contra a própria vida. Como a lei não permite a prática desse ato, o sujeito age injustamente.

            Poderíamos argumentar: ‘mas o indivíduo é livre e pode fazer de sua vida o que bem quiser.’ Se assim argumentássemos estaríamos deixando de lado o principal elemento da análise. Qualquer indivíduo faz parte de uma coletividade e, mesmo querendo retirar-se dela, apunhalando-se, não age apenas contra si, mas também contra a sua comunidade. Quando isso ocorria na sociedade ateniense, sem a aprovação da lei e o consentimento da comunidade, o suicida deveria ser punido com a perda dos direitos civis. Esse princípio foi trazido para os códigos contemporâneos, conforme vemos no art. 12 do Código Civil brasileiro, quando diz que o morto poderá sofrer violação aos direitos à sua personalidade: “à honra, “à privacidade, à imagem”.

            Já temos o suficiente para relacionar a rejeição à vacina contra a obrigatoriedade de tomá-la. O desrespeito às medidas de segurança que levam o indivíduo a se expor e a contrair a Covid-19, significa, no primeiro aspecto, à prática de atos injustos pela contrariedade das orientações emitidas pelas autoridades da saúde. Conhecendo a si e ao vírus, o indivíduo também atenta contra si, como se fizesse uso de um punhal para tirar a própria vida; considerando que o indivíduo é membro de uma coletividade e convive com ela, comete outros atos injustos: atenta contra a coletividade, podendo repassar o vírus ou vir a ocupar um leito no hospital que poderia ser utilizado por outro paciente vitimado por outra doença e, eleva os gastos com o atendimento no sistema de saúde com uma enfermidade que poderia ter sido evitada.

            O negacionismo em relação à pandemia do coronavírus e a rejeição pela vacina, expressam o grau de ignorância existente na civilização capitalista e, representam, junto com outras, tentativas para destruí-la. Os atentados partem de cidadãos comuns como também de autoridades governamentais. Agem movidos pelos instintos e fazem a sociedade retroceder, não para o “estado de natureza”, mas para a barbárie que também se guia pela violência e a “guerra de todos contra todos”.

            A perda dos direitos civis do suicida defendida por Aristóteles, combinada com a “perda dos direitos do morto”, constante do Código Civil brasileiro, devem ser consideradas para alertar os vivos, que os direitos individuais do cidadão não garantem a liberdade de atentar contra a vida alheia e, se a lei não obriga a todos a tomar a vacina, ela também não permite expressamente a não tomá-la, logo, ela proíbe de não tomar, portanto, todos os cidadãos que vivem em sociedade são obrigados a tomá-la.

            Qualquer suicida, seja por qualquer motivo, atenta contra a sociedade. Primeiro, ele é parte desse coletivo que o incluiu quando nasceu, logo, ao se retirar, por um ato egoísta, comete uma injustiça. Por outro lado, considerando o número de habitantes, a sociedade e o Estado investiram em infra-estrutura e em políticas públicas, no caso da saúde no Sistema Único de Saúde para atender a todos. Nesse sentido, o negacionista ao negar a realidade para esconder a verdade, comete dois crimes: o primeiro de suicídio por atentar contra a própria vida e, o segundo, por vir contrair a doença, é também um homicida, por contaminar propositalmente mais de uma centena de pessoas e muitas delas evoluem para óbito.

            A civilização guiada pela ciência e orientada pelas leis constitucionais, juntamente com as normas morais, por mais que as contradições agravem os conflitos e destruam os laços fraternais na convivência social, precisa se impor sobre as reações negacionistas e destrutivas, empregando medidas que restrinjam as vontades e controlem os instintos dos suicidas e dos homicidas, impingindo a eles, ainda vivos, as medidas da violação dos direitos do morto inerentes à sua personalidade – direito à honra, à privacidade, à imagem e, podemos acrescentar à liberdade de fequentar lugares aonde circulam pessoas; ao direito de serem atendidos gratuitamente no SUS caso contraiam o vírus e precisem de atendimento após o termino da vacinação; o direito a tirarem passaporte para evitar que circulem em comunidades formadas por outras culturas não negacionistas; o direito de matricularem-se em escolas e universidades para assistirem aulas presenciais; mas, principalmente, impedir que governem o país pois, como se movem por instintos e não por consciência; os princípios éticos são ignorados e tudo o que aponta para  o bem-comum é desconsiderado.  

            O divisionismo negacionista buscou no vácuo do enfraquecimento da luta de classes, misturar os sujeitos para obscurecer as contradições econômicas, sociais e políticas e, como isso a minoria dominante adestra parcelas das massas populares e as põem a seu favor.

            O caminho é a recolocação no cenário mundial do objetivo da superação do capitalismo somente alcançado se na utopia do horizonte também for colocada para ser construída a transição para o socialismo, caso contrário, as disputas pontuais servem apenas para que os capitalistas ganhem tempo e rebaixem ainda mais os níveis de entendimento, do bom senso e da combatividade dos trabalhadores. Só a luta salva os bons avanços civilizatórios.

                                                                                  Ademar Bogo

                                               Autor do livro: Organização política e política de quadros.

                 

domingo, 17 de janeiro de 2021

CONTRA A TIRANIA DA ASFIXIA

            A humanidade tem conhecimento do conceito de tirania, desde à Grécia antiga, principalmente quando ocorreu a “Guerra do Peloponeso” pela reunião dos Estados para destruir a República ateniense e instalar, no ano de 404 a. C. o ‘Governo dos 30 tiranos”.

            A tirania, às vezes, confunde-se com um regime totalitário, quando um poder ilimitado é imposto sobre a população e todos os direitos e garantias são suspensas. Mas podemos encontrar práticas tirânicas em qualquer outro regime, principalmente nesses em que a democracia se reduz à participação no processo eleitoral.

            John Locke (1632-1704) o filósofo contratualista Inglês, escreveu um capítulo no livro “Segundo tratado sobre o governo civil”, mostrando que a tirania se instala, “quando o governante, mesmo legítimo, não governa de acordo com a lei, mas segundo a sua vontade; e suas ordens e seus atos não visam à preservação das propriedades do povo que o elegeu, mas em vez disso, à satisfação de sua própria ambição, vingança, cobiça, ou qualquer outro desejo irregular”. Ou seja, a tirania está mais no comportamento do governante do que na oficialidade de um regime.

            Tirano é, portanto, um governante que abusa do poder, ignora os problemas do povo; mente para justificar os seus atos; impõe ideias para serem repetidas como verdades; ameaça quem se opõe às suas vontades; transgride a lei para fazer o mal e, acima de tudo, se compraz ao ver a desgraça alheia.

            As tiranias contemporâneas, para além dos golpes de Estado e as instalações dos regimes totalitários, têm a última edição por volta de 1970 com a aprovação da globalização e dos modelos administrativos neoliberais. Com esses dois recursos o imperialismo econômico com apoio político, militar e jurídico ganhou autorização para impor aos países dependentes, políticas que obrigam os governos locais a colocarem o Estado a serviço dessa ordem interventora.

            Vista desse modo a tirania econômica determina o que cada nação deve fazer para satisfazer as necessidades e manutenção do crescimento do grande capital implementando o receituário elaborado como sendo lições de uma cartilha única. Sabemos como funcionam os acordos das dívidas externas e internas e a imposição do controle dos gastos para garantir esses pagamentos.

            Mas ocorre que, em certos momentos, a tirania pode ficar ainda pior e expandir-se da dominação econômica para outras formas de dominação inventadas pelo próprio tirano que, para agradar os tiranos superiores, desfecha declarações afetuosas e aproveita para manifestar os seus instintos cruéis contra a população indefesa.

            A situação em que vivemos hoje no Brasil é o resultado da asfixia da soberania do país que perdeu a sua capacidade respiratória como nação e, essa política atingiu agora os cidadãos vitimas do coronavírus que não encontram um leito para internação com um cilindro de oxigênio à disposição.

            A crueldade tirânica imposta ao sistema de saúde, incluindo a redução de verbas e a estruturação física, e que, na atualidade leva as pessoas à morte mesmo estando nos hospitais, sem oxigênio e sem médicos, iniciou em 14 de Novembro de 2018 quando 8.332 médicos cubanos que prestavam serviço ao sistema público de saúde foram obrigados a retornar a Cuba, devido à posição do presidente eleito contra o socialismo.

            Numa outra frente do desdém e da supremacia ignorante, reveladora da postura tirânica e perversa do governante, veio junto com a disseminação do vírus a partir de março de 2019, quando a orientação indicava que a melhor maneira para evitar a proliferação da doença e o colapso no sistema de saúde era o isolamento físico. Não satisfeito, o tirano esperneou, contradisse a ciência e, não só receitou a cloroquina sem ter autoridade para isso, como também autorizou a fabricação do produto em grande quantidade. E, para agravar ainda mais, enquanto os governantes de outros países interagiam com os laboratórios em busca de uma vacina, aqui se fazia pouco caso, com uma carga de preconceito contra a China, a Rússia, o uso da máscara e o isolamento.

            O que temos agora, no pico da Pandemia? Um tirano feliz porque o sofrimento humano aumenta descontroladamente e, pelos seus méritos, nenhuma dose de vacina existe à disposição para iniciar a imunização da população. Completa tudo isso, o caos na economia e o aumento da miséria por falta de competência e boa vontade para prolongar o auxilio emergencial para que as camadas mais pobres possam, pelo menos, comprar alimentos.

            A situação é caótica e não tem, pela via da tirania, perspectiva de melhorar. Muito pelo contrário, os indicadores apontam que a economia não terá poder de recuperação no curto prazo, e a política, com o fortalecimento das milícias, juntamente com a cooptação das policiais estaduais e a presença das forças armadas no governo federal, é claro e evidente que a tirania avulsa avançará para um regime ditatorial tirânico, engendrado nas próprias concepções perversas dos ocupantes do atual governo.

            A defesa da vida e da democracia, ainda numa perspectiva capitalista, começa pela defesa do direito à internação, a exigência da vacina pública e a volta do auxilio emergencial, combinando com a luta pela deposição do tirano para que ele não se beneficie demagogicamente dos resultados de algumas medidas que, obrigatoriamente terá de adotar.

    Neste país, a fome, a violência, os acidentes e as doenças já matavam mais de 1,3 milhão de pessoas por ano, esse número será ainda maior agora, pela falta de oxigênio.Considerando que asfixia não é doença, mas fruto da posição de um governo tirano, é homicídio doloso, porque o descaso representa intenção de matar.  

            A dominação tirânica tem um só caminho, o uso da força. A luta contra ela tem o caminho político, jurídico e social que podem ser combinados e articulados, tornando um processo com várias frentes, mas é preciso agir antes que a força amordace as bocas e as armas impeçam os movimentos dos corpos. Contra o poder tirânico e das armas, a força da solidariedade e da luta.

                                                                                                                     Ademar Bogo

              

domingo, 10 de janeiro de 2021

A VOLTA DA REVOLTA DA VACINA

    Tivemos no Brasil, no ano de 1904, uma revolta significativa no Rio de Janeiro contra a obrigatoriedade da vacina responsável para combater a varíola e a febre amarela. Em grande medida essa resistência ocorreu porque o governo de Rodrigues Alves preocupado com a epidemia ordenou que a limpeza púbica removesse inclusive as moradias desordenadas e, a população mais pobre fosse obrigada a retirar-se das proximidades do centro da cidade. Insuflada por políticos, imprensa e militares que tinham como objetivo empreender um golpe de Estado, essa população mobilizou-se contra a vacina e, entre os dias 10 a 16 de novembro promoveu grandes mobilizações, tendo como vitória a mudança da lei, que tornou a vacina não obrigatória.

            Essa intervenção contra a população mostra, desde sempre, que Estado no capitalismo tem a função primordial de ser coercitivo. Segundo Max Weber o Estado funciona como uma comunidade legitima que reinvindica o monopólio da força para usá-la em um determinado território; sendo assim, ele é a única fonte do Direito que pode fazer uso da violência para sustentar a ordem social formada por homens que dominam outros homens.

Por mais que a civilização tenha evoluído, as velhas diretrizes filosóficas e sociológicas permanecem válidas. Auguste Conte, criador do positivismo é uma referência remanescente sustentada por dois fundamentos estruturantes, “dinâmico e estático” em vistas de funcionalizar o Estado e a economia, cuja simplificação converteu-se no comprometimento do lema: “ordem e progresso”, parâmetros que enraizaram o liberalismo como o espírito movimentador do capital, encharcado de crises constantes, mas exigente com a estabilidade.

            A estabilidade beneficia os burgueses e a classe média, por fazer fluir e realizar os seus interesses na ordem social “harmonizada”. Evidentemente, junto com a ordem vem o progresso favorecedor da acumulação da renda e da riqueza. Por outro lado, a instabilidade, pode ser impulsionada pelos dois lados. Quando provocada pelas massas populares, a classe dominante exige a intervenção do Estado e se empenha em produzir novas leis coercitivas; quando impulsionada pela própria classe dominante ela exige a colaboração do estado e põe abaixo todas as leis que garantam os direitos sociais. Isso mostra que o Estado nunca está a favor das grandes massas exploradas.

            Conhecemos um tradicional tipo de instabilidade política criado pelas lutas sociais. De um dia para outro a classe dominante sente-se pressionada e, imediatamente recorre ao Estado para que ele atue no sentido de reparar a ordem. Nesse sentido, costumeiramente, no capitalismo, a manutenção da ordem, na ótica dominante, é fazer o Estado agir contra os pobres mobilizados e organizados para que não coloquem em risco a propriedade privada. Diante disso, as expressões intelectuais de natureza socialista consideram que o Estado é tão inimigo dos trabalhadores quanto o capital e, ambos, cada qual segundo as circunstâncias, precisam ser superados.

            Por outro lado, em situações adversas, mesmo que temporárias, quando a ordem está sendo ameaçada pela própria classe dominante e sua auxiliar, a classe média, as massas populares e trabalhadoras em geral, passam a perder os direitos, antes garantidos e a desordem instalada traz, não apenas insegurança aos mais pobres, como também, aumenta a possibilidade de aniquilamento e extermínio de grandes contingentes populacionais. Nesses momentos, somente a mobilização e a reorganização coletiva podem obrigar os governantes restabelecer a ordem, impedir o acesso aos privilégios dos mais abastados e assegurar as garantias de vida e saúde dos mais pobres.

            Toda essa introdução é para compreendermos o imbróglio que enfrentaremos em relação à vacinação contra o Covid -19, em nosso caso, propositalmente em atraso, indicando que, no ano de 2021, não serão atendidas todas as pessoas do país, principalmente se for oficializado o agravante de tornar a vacina uma mercadoria vendida nas clinicas particulares como está sendo a venda dos testes de contaminação.

Em primeiro lugar é preciso deixar claro que a vacina é de extrema importância para toda a população, mas, principalmente para as massas populares e trabalhadoras que estão em situação de vulnerabilidade social. Por isso, a luta é para que a vacina seja gratuita e chegue a todos os lugares e em tempo igual também nos interiores do país.

            Em segundo lugar, a vacina como um bem de uso social não pode ser transformada em uma mercadoria, isto porque, sendo uma necessidade coletiva ela deve ser garantida pelos recursos públicos e, a iniciativa privada deve ser proibida de transformar a doença em um grande negócio; poderá colaborar se se dispuser distribuir e aplicar a vacina gratuitamente para a população em geral, por isso, a vacina não pode ser paga por nenhum cidadão e, para o acesso, todos devem seguir e respeitar as faixas de prioridade.

            A justificativa da primeira hipótese é que, se a vacina for pública e a sua aplicação for feita segundo os critérios de faixas, descartam-se os critérios de classe e de condição social para recebê-la, logo, a pressão para que a vacinação seja massiva e aplicada no mais curto espaço de tempo possível, virá de todos os segmentos sociais que acreditam ser o imunizante a forma mais eficiente de enfrentar e debelar a pandemia.

            A negação da justificativa para a venda da vacina por intermédio da iniciativa privada, apega-se à negação de direitos, principalmente para as massas populares pobres, significará liberar que o Estado se comprometa em garantir a vida dos mais abastados e, principalmente, dessa parcela governista que se nega usar máscara e não respeita as normas de isolamento. Essa postura desordenadora, anti-social, anti-humanitária, anti-ética e de consciência pseudo fascista, buscará imunizar-se nas clinicas particulares e alavancará o movimento de protesto contra o distanciamento físico, atraindo para essa prática as pessoas ingênuas e indefesas. Como o governo federal é adepto do não cumprimento de medidas protetoras, não coagirá nem reprimirá essas iniciativas, tornando-se conivente com a desordem e com a política direcionada para a continuação do extermínio da população. Com um agravante, essa parcela ignorante e desvairada, adepta da política do armamento da população que, não sendo coagida, passará a fazer uso também dessa alternativa para intimidar a reação da popular contra o governo e a mercantilização da vacina.

            Na medida em que a política de vacinação do governo se demonstrar inócua, retardada e insuficiente e o Estado não assegurar as garantias de vida da população mais pobre, por estar assegurando a vacinação da classe dominante nas clinicas particulares, a reação deve ser em defesa da vacinação pública ao mesmo tempo que se lute para impedir que ela seja oferecida como mercadoria.

            A revolta da vacina, agora a favor da sua aplicação, agirá contra as clinicas privadas, obrigando-as a prestarem serviço voluntário e seguirem as prioridades da imunização estabelecida pelo poder público. Se já de início o governo liberar para iniciativa privada para comercializar a vacina, grande parte da população, principalmente a mais pobre, ficará sem ser imunizada ou será muito tardiamente, fazendo com que a tragédia da contaminação eleve também as estatísticas das mortes causadas pelo Covid-19.

                O ano começa com esse desafio de obrigar o governo e o Estado a intervirem e coagirem a desordem que favorece os privilegiados. A vacina deve ser urgente, massiva, gratuita e ser controlada e distribuída pelo poder público. Ao contrário de 1904, as grandes massas hoje são favoráveis à vacina e, junto com a defesa da mesma, devemos incluir a defesa dos direitos sociais, a volta do auxílio emergencial e todas as políticas públicas que favoreçam os trabalhadores e populações mais pobres.

                                                                                                             Ademar Bogo

domingo, 3 de janeiro de 2021

DESFAZER-SE DAS TROUXAS


E eis que findamos a segunda década do século 21. Elas representam a sequência de um processo político iniciado nas duas décadas finais do século 20, quando as lutas sociais e políticas ganharam forma e conteúdo próprio, deixando para trás: o regime totalitário, implantado pelo golpe militar de 1964, as experiências dos partidos comunistas e os métodos de confronto por meio da luta armada para ingressar e sustentar o processo que durou quatro décadas centrado nas lutas reinvindicatórias e nas disputas eleitorais.   

            O feito histórico de unificar todas as forças sindicais, populares, religiosas, estudantis, artística, intelectuais e partidárias para lutar contra a ditadura militar, eleger democraticamente o presidente da república e escrever a nova Constituição Federal, garantiu a superação dos limites das formas anteriores de fazer política e inovou no envolvimento das massas como sujeito coletivo, em busca das garantias, vistas como “direitos sociais”.

            O acerto na aplicação das táticas reinvindicatórias durante os últimos quarenta anos é indiscutível; no entanto, aquilo que parecia ser a maior das virtudes, com o tempo veio a ser o grande defeito. Quem viveu na década de 1980 tem na lembrança que, naquela época praticamente tudo convergia para o institucional com as exigências voltadas para a aplicação das leis existentes ou para serem elaboradas novas leis, dentre elas a própria Constituição Federal. As massas sensíveis às demandas conjunturais atendiam as convocações e se somavam às grandes mobilizações. As categorias específicas assumiam tarefas de enfrentamento por meio da realização de greves, ocupações de terra, no campo e na cidade; saques coletivos na região nordeste que era afetada pela seca; lutas por educação, saúde etc. As ações fluíam coordenadas ou espontaneamente. Grupos localizados, movimentos, sindicatos e entidades em geral, em busca de solução dos problemas sociais, rumavam na mesma direção de encerrá-las nas mesas de negociações com os patrões, governadores, autoridades e instituições estatais.

            O fortalecimento da estratégia da “ação para a negociação” para garantir os resultados, incentivava novas mobilizações com um número ainda maior de integrantes. Esse aprendizado tático de “atacar e negociar” forjou a consciência dos dirigentes de todas as organizações de natureza sindical, popular e partidária, que retomaram de comum acordo o clássico princípio do “contrato social” firmado entre o Estado e as forças sociais mobilizadas.

            A estratégia da “ação para a negociação” cumpria duas funções: a primeira levava a ação a um desfecho quase sempre vitorioso e, a segunda, legitimava a existência do movimento ou entidade organizadora de cada ação. Por outro lado, respeitando o princípio contratualista, os proprietários privados das fábricas e das terras, os governantes e o próprio Estado, também ganhavam reconhecimento e afirmação superior por receberem as forças que reinvindicavam soluções, isto porque, as audiências fluíam segundo os critérios jurídicos e políticos da ordem dominante.

O uso das forças policiais e a inoperância dos governantes reconhecidos como representantes das classes dominantes, despertou, já no início da década de 1980, a motivação das forças sociais mobilizadas a tomar os governos, na ilusão de que os “contratos” pudessem ser firmados entre as duas partes, com um grau mais acentuado de amizade e tolerância. Esse parâmetro complementador da estratégia reinvindicatória, perpassou as quatro décadas unificando os objetivos das ações sindicais, populares e partidárias. O discurso da “moralização da administração pública”, o “fortalecimento do estado mediante o combate ao neoliberalismo” e a “participação ativa nas eleições em todos os níveis” atrelou-se ao discurso da “distribuição de renda”, do “emprego”, “moradia”, “educação pública de qualidade” etc. Ou seja, a identidade e a complementariedade das proposições, populares, sindicais e partidárias, adequaram as reações ao limite da ordem capitalista à mesma perspectiva programática do modelo desenvolvimentista capaz de, ao mesmo tempo, beneficiar os mais ricos, garantindo-lhes os tradicionais privilégios e lucros, como também os mais pobres, por meio das políticas públicas.

            Conscientes devemos estar desse processo que durou quatro décadas, numa ascensão, em grande medida, sustentada pela pressão social reinvindicatória que levou à vitória a estratégia respeitosa do limite da legalidade, por isso não contribuiu para que os trabalhadores cumprissem com o papel histórico, como foi o papel da burguesia na transição para o capitalismo quando impulsionou as revoluções: industrial, francesa e liberais na Europa, para afirmar o sistema e o Estado capitalista.

            Em fim, após quatro décadas é hora de observar que a relação histórica descrita pelo filósofo Hegel entre o “senhor e o escravo” não foi superada nos meandros da política, isto porque, da existência de um depende a existência e o reconhecimento do outro. Considerando que em certos momentos os escravos puderam elevar a pressão sobre o senhor, a concordância em manter a estrutura de dominação permaneceu a mesma. Os senhores mantiveram a supremacia colocando-se a favor e alguns aspectos contra a ordem, para impor as medidas coercitivas de controle das forças organizadas e das massas populares.

            Para que os trabalhadores cumpram com o seu papel histórico, considerando o processo construído em quatro décadas, firmado basicamente sobre a estratégia da negociação com tendência à institucionalização das relações políticas, é preciso, como disse Mao Tse-tung em 1944, para os integrantes do partido, “que nos desfaçamos de todas as trouxas”. Segundo ele, “para conquistar novas vitórias devemos apelar para que os quadros se desembarecem das trouxas e ponham a máquina a andar. “Desembararçar-se das trouxas” significa libertar o espírito daquilo que o atravanca”.

            As “trouxas” podem ser entendidas como sendo as coisas desnecessárias ou pouco úteis trazidas ao longo do tempo, mas que impedem os movimentos ou as tomadas de decisões por causa do peso que elas acarretam. A título de apreciação vejamos algumas, pois, se levamos a sério, em quarenta anos de práticas corretas e equivocadas, há muitas coisas desnecessárias que precisamos deixar para trás.

            Se levarmos em conta que nos últimos quarenta anos a sociedade capitalista se polarizou nos extremos formando duas minorias: os capitalistas e os trabalhadores categorizados conforme preza a tradição, veremos que, no meio dos dois pólos está a grande maioria da população, desorganizada e deserdada das formas tradicionais sindicais e dos movimentos populares renomados. É importante compreender que a força de ação e de transformação está fora dessas formas que implementaram o princípio da “democracia representativa parlamentar” também na representação social e de classe. As entidades tradicionais burocratizadas tornaram-se redutos corporativos e se ocupam em carregar suas próprias trouxas, sem considerar ou considerando apenas para fins eleitorais, os grandes contingentes de massa inutilizados e vinculados à política oficial pelos créditos emergenciais e bolsas que garantem a eleição e reeleição dos governantes, isto porque, para as massas necessitadas, o benefício é um favor que deve ser retribuído com o voto e o último que beneficia ganha o seu respeito.

            Por outro lado, a militância mais consciente formada durante as últimas quatro décadas, principalmente, a mais recente que chegou a ser denominada de “lutadores e lutadoras do povo” não está ligada oficialmente a nenhum partido político, mas os carregam como sendo velhas trouxas, seguindo e assumindo para si as agendas alienadoras dos mesmos, seja no que diz respeito ao calendário eleitoral; na defesa das pautas que remetem à rotina parlamentar; na reprodução dos discursos extraídos das disputas nos julgamentos tendenciosos do poder judiciário ou nas disputas polarizadas na eleição do presidente do Congresso Nacional, como está ocorrendo, como se fossem os dilemas mais expressivos da sociedade.

            Desfazer-se das trouxas, não deverá significar jogar tudo fora para ficar apenas com a roupa do corpo, mas é importante considerar aquilo que não deixa pôr a “máquina da luta de classes” para andar, e que, por causa da “trouxa” gastamos toda a energia para fazer discursos sem sujeitos organizados. Vamos a um exemplo: com o fim do crédito emergencial os partidos e a militância acoplada, ao invés de propor mobilizar e organizar os necessitados, procura costurar pelo alto, para obrigar o governo a voltar a garantir o auxílio. Essa prática das bolsas, abonos e auxílios etc., têm servido desde a década de 1990 para eleger e reeleger presidentes da república. Logo, a “trouxa” do auxílio oferecido e negociado entre os poderes executivo e legislativo, deu ao governo, no início da pandemia, credibilidade e aprovação. Desse modo, quem supostamente se coloca contra a reeleição do atual presidente, mas por outro lado insiste em manter o auxílio por meio de acordos no Congresso Nacional sem que haja o mínimo de esforço para organizar os necessitados, não estaria colaborativamente em campanha para reelegê-lo?

            É nesse sentido que as novas gerações de militantes precisam decidir se assume para si as “trouxas’ do processo anterior ou iniciam uma nova história. Quais são as trouxas do processo anterior? Vejamos algumas: a) partidos políticos institucionalizados que miram os governos e agem para afirmar o Estado e o capital e tornam reféns de suas táticas a militância social;b) a estratégica da “ação para a negociação” sem uma perspectiva política para enfraquecer e derrotar os inimigos que ao dificultarem as conquistas esvaziam e derrotam os movimentos; c) atrelar-se aos governos e ao Estado com o objetivo de garantir a auto sustentação econômica e, por meio do  dinheiro público garantir o funcionamento das estruturas burocráticas; d) considerar que as plataformas de governo como sendo o programa estratégico de superação do capitalismo quando na verdade todos os governos estão a serviço da ordem capitalista; e) confiar que a formação das frentes amplas ultrapassam os limites da imposição impostos pelo “Estado de direito” e se o Estado capitalista for governado por pessoas amigas ele pode ser útil aos trabalhadores.

Essas trouxas começarão a ficar pelo caminho, no momento em que a revindincação for substituída pela imposição e a democracia representativa for substituída pela presença da democracia popular.     

                                                                                                                    Ademar Bogo

                                                                                                        Autor do livro: Organização                                                                                                                              politica e politica de quadros.