domingo, 24 de dezembro de 2023

A ESFINGE DA LUTA DE CLASSES

 

            Qualquer indivíduo um pouco ilustrado em Filosofia tem domínio geral sobre a história de Édipo que, após matar o pai em uma estradinha estreita, próximo à Tebas, para onde se dirigia, ao chegar próximo da entrada principal da cidade, foi interrogado pela esfinge, sobre quem de manhã andava de quatro, ao meio-dia com dois e, ao entardecer com três pés, ele respondeu corretamente, o ser humano e ela implodiu. A vantagem é que Édipo havia sido treinado por Políbio, seu pai adotivo, no reino de Corinto e possuía elevado grau de formação intelectual, por isso conseguiu orientar-se com determinação.

            Na atualidade vivemos o novo tempo das “esfinges” e, nos balanços políticos feitos para avaliar o ano todos tentam responder a pergunta sobre o “por que as lutas de classe não avançam?”. As respostas geralmente são erradas ou incompletas. Se fosse em Tebas, não somente o analista seria sacrificado, como também a sua organização, a sua classe, o seu movimento e, posteriormente toda a população de sua cidade ou de seu país.

            O fato se deve à péssima formação de muitos analistas que se apresentam como materialistas, mas, ao invés de conduzirem a análise com o método dialético, expondo categorias que realmente representam a totalidade da situação atual, tornam-se reféns das artimanhas metafísicas, principalmente quando tomam a parte como se fosse o todo e, invertem a ordem, elegendo ponto de partida os reveses e as soluções institucionais nos países mais atrasados.

            Dizer que o capitalismo está em crise não é nenhum achado inovador. Nem mesmo tomar isoladamente a economia como referência, o movimento dos capitais, depois o Estado, com os seus governos e as implicações antiéticas dos diversos comportamentos pessoais etc., não são ponderações que ameaçam a esfinge amedrontadora. A economia é consistentemente capital, este é imediatamente político por isso, a sua estreita relação com o Estado que, por sua vez, sustenta a ordem jurídica e repressiva. Essa sequência articulada compõe o imperialismo comandado pelos países mais desenvolvidos.

            A visão comunista desde Marx e Engels é de que, a totalidade é uma categoria fundamental a ser observada quando queremos analisar profundamente a realidade universal. Embora o próprio Marx ao analisar a evolução histórica dos modos de produção, ao chegar no capitalismo não homogeneizou todos os continentes, ao contrário, atribuiu à Ásia um modo de produção próprio. No entanto, para fins de aprofundamento, tomou a formação da riqueza nos países mais avançados e situou-a nas formas: mercadoria, dinheiro e capital.

            Entender que, se o capital mesmo com as economias em “crise”, continua sendo acumulado, porém com conflitos, mais fora do que dentro da luta de classes, significa dizer que estamos a mercê das potências capitalistas. Portanto, não há justificativas: se não há lutas e enfrentamentos importantes, dos trabalhadores contra o capital, estamos errando. Hoje com maior clareza sabemos vemos o capital atuando organicamente, por isso a sua denominação universal é conhecida como “imperialismo” e, este, não separa economia de política, nem a guerra da acumulação ou a antiética dos desejos de dominação. Sem sombra de dúvidas, o capital ameaçador, da Rússia, da Venezuela, da palestina, dos povos originários brasileiros  etc., é o mesmo.

            Quando falamos em “crise do capitalismo” devemos lembrar que assim está desde 1873 quando, após as revoluções liberais na Europa, a superprodução abarrotou os mercados de produtos; naquele momento os próprios produtores de mercadorias não possuíam renda suficiente para adquiri-las. Marx em seus estudos revelou que as crises são cíclicas e inevitáveis. Mas isto não significa que elas por si mesmas venham asfixiar o modo de produção. Em completude ao raciocínio o filósofo István Mészáros, indicou a tarefa de superarmos o capitalismo, para tanto apontou a necessidade de controlarmos o capital. Mas qual capital? E como fazer?

            Já temos o diagnóstico de que o capital se move dando forma ao imperialismo, no entanto, parece não ser este o entendimento dos analistas e líderes políticos afoitos em defenderem os governos liberais dos seus países. Mais do que combater o capital o buscam para gerarem empregos; cedem a ele as riquezas naturais, principalmente o petróleo antes que surjam outras fontes de energia e, atuam politicamente, agarrados aos orçamentos de olho nas “responsabilidades fiscais” sem se importarem se, mesmo que involuntariamente, estejam cumprindo o papel, como faz qualquer trabalhador assalariado, quando ajuda naturalmente a formar a acumulação do capital.

            Para estabelecermos o caminho do combate e inovar as lutas, precisamos verificar as táticas e as estratégias dos inimigos dirigidas contra nós. É notável que o domínio hegemônico do poder universal está se deslocando dos Estados Unidos da América para a Ásia e, com isso, muitos partidos de esquerda e movimentos sociais abraçam com simpatia essa ascensão chinesa, como se fosse uma força aliada para a superação do capitalismo. Ninguém se pergunta, como a China está se impondo contra as forças econômicas atuais para tornar-se um novo poder imperial? A resposta é simples: pelo capital e pelas disputas dos mercados mundiais. A confiança de que a ordem na China está sendo comandada pelo Partido Comunista, único, não é nenhuma garantia de bondade. Na medida em que a base econômica privada se fortalece, ela terá mais força que a superestrutura política e jurídica. 

            Há um gasto excessivo de tempo em análises locais. Em vista das disputas eleitorais vindouras, “doença senil da esquerda”, os olhares, por algum tempo, não verão o capital imperialista, enxergarão apenas o município. No entanto, verifiquemos como o império age dando-nos o indicador da importância universal. Quando um país se levanta em defesa de seus interesses, de imediato formam-se articulações internacionais, para bloquear e isolar com pesadas punições a nação rebelada. Assim ocorre com Cuba, Irã, Rússia, Venezuela e diversos outros países principalmente os produtores de petróleo. Por outro lado, as forças de esquerda nos governos, pregam apenas a Paz e a reconciliação. Pedem dinheiro para defenderem as florestas aos mesmos que exploram o ouro e a madeira. Eles compram a carne bovina e a soja extraídas das pastagens e das lavouras extensivas postas no serrado e na Amazônia.

            A doença senil da esquerda apegada aos processos eleitorais leva a crer que, por meio da institucionalidade se alcançará a justiça e a igualdade. No entanto, todas as reformas impostas e, a cada Projeto de Emenda Constitucional -PEC – arrastam para fora do alcance dos mais pobres os direitos fundamentais, sem que os representantes políticos, endeusadores da ordem democrática de direito, possam reverter aquilo que é estrutural. O último, mais grave e vergonhoso retrocesso vimos na aprovação do projeto de lei 490, conhecido como “Marco temporal”, no qual, os povos nativos perderam o direito de demarcarem as novas áreas reivindicadas. Nem o parlamento, nem o executivo com o seu poder de veto, conseguiram impedir tal afronta.

            Com a visão metafísica da realidade, o corporativismo tomou conta das consciência e, os fiapos de categorias e classe organizadas em torno de velhas práticas, atuam em defesa de grupos também corporativos e, os partidos e forças políticas nos governos, demonstram muito timidamente, apoio às lutas mais aguerridas como é o caso do apoio e ação solidária com o Hamas e o povo palestino, quando na verdade é o momento de bloquear e isolar Israel para enfrentar o imperialismo, calam-se em nome do “direito a cada nação de se defender”.

            Para avançarmos no próximo ano precisamos superar três referências: a) o velho conceito de classe social para impulsionar lutas por meio das forças sociais; b) descartar os partidos institucionalizados ou mantê-los reduzidos às ações que correspondem à ordem se alguma disputa for interessante; para tanto necessitamos de novas formas de organizações revolucionárias; c) atacar todas as formas de capital em qualquer lugar que eles estejam, interagindo com forças ascendentes em qualquer parte de mundo como se fossem lutas locais.

            Não haverá superação enquanto primarmos pela Paz e pelo respeito aos capitais dominantes no planeta. Qualquer tentativa de conciliação significará a colaboração para que as estruturas de dominação continuem a fazer o que fazem.

                                                           Ademar Bogo

domingo, 3 de dezembro de 2023

SEM MARXISMO NÃO HÁ SOCIALISMO

                      

             O filósofo francês Henri Lefebrve (1901-1991) destacou que: “O marxismo considera-se uma concepção do homem e da história, do indivíduo e da sociedade, da natureza e de Deus; uma síntese geral, ao mesmo tempo técnica e prática, em suma, sistema totalitário (da totalidade)”.[1]

            Esse entendimento do passado e, mais fortemente a partir da década de 1970, com a onda política neoliberal, posteriormente, pontuada por algumas discordâncias, no caso brasileiro, com o neodesenvolvimentismo e o neonazismo, mostra-nos que restrições houve, foi na contenção dos gastos e nas políticas públicas; no resto, o capital continua exigindo a sua total liberdade, a propriedade privada exige a garantia da lei e da moral capitalista e, a manipulação ideológica continua presente nos púlpitos das seitas, nos discursos  tolerantes dos líderes populares, representantes de movimentos descarnados e minguados em suas forças já sem rebeldia; os partidos políticos, sustentados pelo Fundo Partidário completam o grau de acomodamento e interação com a concepção de mundo sem classes e sem confrontos.

            As pessoas, portadoras do nível de consciência situado um pouco acima da média do senso comum, criado pelos conciliadores, percebem facilmente que o capitalismo já não serve mais como modo de produção para que a civilização siga em frente. Esse sistema, podemos chamar assim, está organizado para reproduzir o capital e concentrá-lo em poucas mãos. Para que isso siga acontecendo os requisitos básicos se concentram na máxima exploração da natureza, na livre iniciativa, no direito e nas leis protecionistas combinado com o funcionamento de sociedades desiguais, uma pequena parte muita rica e a outra imensa parte miserável.

            A pergunta a ser feita a essas pessoas que compreendem ser o capitalismo um estágio terminal de muitas formas de vida e que o progresso não é benéfico quando não contempla a igualdade de renda e de condições para ter acesso aos bens de uso, se é possível enfrentar  as contradições postas em vista de outra sociedade socialista sem a teoria do Materialismo Histórico, também conhecida como Marxismo?

            Parece que dentre as concepções totalizantes citadas por Lefebrve no primeiro parágrafo, apenas a preocupação com a “natureza” está se tornando o referencial das discussões em reuniões políticas internacionais e, também impõe as suas diretrizes e demandas no que fazer dos movimentos e partidos políticos. Falta apenas uma palavra de ordem para reunir os interesses entre os governos e as classes sociais, para criar  o senso comum rebaixado, que poderia ser: “Deem-nos dinheiro para plantarmos árvores e salvaremos o planeta”.

            Foi-se o tempo em que o verde da natureza sequestrava a totalidade do carbono expelido no espaço. O progresso capitalista, sob a égide do liberalismo e, principalmente do neoliberalismo, implementou e acelerou o desequilíbrio social e ambiental. Os comparativos mostram, sem detalhamento que,  por volta do ano de 1800 quando o modelo liberalizante começou a reinar, a população mundial era de 1 bilhão de pessoas. De lá para cá, em pouco mais de duzentos anos, alcançamos uma meta  de 8 bilhões de indivíduos e, para acumular riqueza em troca de satisfazer esse grande número de pessoas, precisou desmatar, poluir, envenenar e, controlar, dominar e exaurir a natureza.

            Vemos, portanto, que parece haver um paradoxo bem na frente dos olhos das pessoas conscientes, o qual pode ser assim descrito: Os mais ricos são responsáveis pela poluição do planeta e a despoluição é responsabilidade de todos, mas isto tem um custo que os ricos precisam assumir. Mas se os ricos darão o dinheiro extraído dos ganhos fornecidos pela matriz produtiva poluidora, o que mudará no final?

            Muitas iniciativas ainda surgirão espontaneamente que mobilizarão as pessoas voluntariamente a plantarem árvores. Alguns receberão pagamentos por deixarem as fazendas intactas, mas ninguém se pergunta como será feito o controle da acumulação do capital? Quando será distribuída a riqueza acumulada? Quem educará os incendiários a deixarem de pôr fogo nas florestas? Qual governante imporá limites para o tamanho máximo da propriedade rural? Que dia se tomará a decisão de fechar todos os poços de petróleo obrigando as indústrias produzirem voltadas para as energias limpas?  E, principalmente, como os miseráveis sairão da miséria desvencilhando-se do domínio alienador das bolsas de assistência públicas?

            O estudo do Materialismo Histórico, facilmente nos remeterá a perceber as contradições atuais para saberemos como ligar as partes para formar um todo articulado. Nesse sentido, iremos descobrir que devemos apagar os incêndios, mas atacar o capital; combater a poluição, mas atacar os poluidores; solidarizar-nos com os mais pobres, mas atacar a concentração da riqueza. Valorizar e selecionar o conhecimento humano, as descobertas e os inventos, mas combater o capitalismo e lutar para superá-lo, se quisermos de fato contribuir com as novas gerações.

            Nossas tarefas são práticas, mas as práticas feitas precisam de teoria para continuarem a serem feitas. Todas as teorias que visam a superação do capitalismo, em algum grau pertencem a Histórico, mas, os socialistas e comunistas devemos sempre defender que: Sem marxismo não haverá socialismo.

                                                                                                          Ademar Bogo



[1] Henri Lefebrve. O marxismo. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1974

domingo, 26 de novembro de 2023

QUEM NÃO FAZ LEVA

   

          A filosofia popular futebolística de que “quem não faz leva” é bem comum e possível de ser aplicada em outras relações. Dialeticamente falando, isso tem coerência lógica, porque, pela lei da unidade e luta dos contrários, se um dos lados recua o outro avança.

            O filósofo Karl Marx ao escrever a “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, deu início ao seu longo processo de avaliação do papel do Estado e de como se deveria lutar para superá-lo. Diz ele no livro: “Do raciocínio de Hegel segue-se apenas que o Estado, em que o “modo e formação da autoconsciência” e a “constituição” se contradizem, não é um verdadeiro Estado”.[1] Ou seja, em qualquer época, para ser um verdadeiro Estado não pode haver contradição entre a consciência e as leis.

            Esse amofinamento das forças de esquerda que angustiam até mesmo as consciências menos evoluídas em defesa da lei e do Estado, parece estar se tornando um caso doentio de paixão pela ordem capitalista, buscando cumprir as recomendações desse “espírito absoluto”, somente para garantir o que chamam de “democracia”, mas não passa do simples direito de disputar eleições.

            Essa atrofia mental impedidora da capacidade de ser formulado um pensamento crítico ou de se estabelecer um processo de lutas contra ao que está posto, simplesmente porque “pode fortalecer as forças de direita”, é simplesmente indução para tornar-se cumplice do jogo conformista de aceitar as derrotas porque o azar tomou conta das disputas.

            Houve um tempo em que se podia diferenciar dois tipos de consciência presentes nas forças de esquerda. A consciência um, representada pela combatividade exposta nas lutas concretas, nas quais se misturavam os sujeitos revolucionários e as entidades de classe e, de outro lado, a consciência dois, menos combativa, mais legalista e formuladora de ideais democráticos, palatáveis para as forças de direita, descontentes com as táticas escolhidas por eles mesmos para jogarem o jogo da dominação. Como lá também acontece o mesmo fenômeno de que “quem não faz leva”, parte daquelas forças acharam graça nos malabarismos efetuados pela consciência dois e se aliaram a esses representantes.

            De algum modo devemos reconhecer que há circunstâncias históricas que mudam as próprias circunstâncias e, para não sairmos da metáfora do jogo, imaginemos que um certo dia surge um comunicado aos times concorrentes, que algumas regras mudaram e quem quiser competir deverá adequar-se a elas. O dilema é real, mas, para não ficarem de fora, os times descontentes, além de participarem precisam defender o regulamento.

            O processo que levou ao estrangulamento político vivido na atualidade, cuja preocupação de manter o “Estado democrático de direito”, é mais da esquerda do que das forças de direita, iniciou junto com a ascensão das lutas sociais na década de 1980. Para derrotar a ditadura militar, exigiu-se a democratização com a elaboração de uma nova Constituição. Muitos entenderam ali que o processo eleitoral deveria ser o caminho da democracia, tanto assim que, para elaborar a Carta Magna foram eleitos os deputados e deputadas para o Congresso Nacional Constituinte. Logo em seguida, a obsessão pela governabilidade, como caminho mais fácil, rápido e menos violento, provocou a unidade das forças para enfrentar as eleições presidenciais, quase vitoriosas no pleito de 1989.

            A militância mais experiente recorda-se que as campanhas eleitorais adotavam os mesmos métodos dos protestos, cuja base fundamental era tomar as ruas e pichar os muros com dizeres propagandísticos e ofensivos aos inimigos. Estabilizada a “democracia representativa”, começaram as restrições e estas levaram às mudanças de hábitos. O oficio das pichações foi juridicamente proibido e o que antes era feito clandestinamente com os próprios veículos dos militantes, muitas vezes presos, passou a ser colagem de cartazes e os conhecidos e caríssimos “outdoors” com grandes imagens, porém, o trabalho passou a ser feito por empresas especializadas em conformidade com a lei. As próprias campanhas eleitorais de rua passaram a ser feitas com pessoas contratadas como diaristas e os programas da propaganda eleitoral gratuita, quem assumiu à frente foram os marketeiros da mídia.

            O que sobrou para as centrais sindicais e movimentos populares foi a manutenção de suas responsabilidades reivindicativas, porém, exprimidos pelo calendário eleitoral, quando, nos pleitos específicos, o ano administrativo é encerrado nos primeiros seis meses e depois tudo torna-se campanha eleitoral. Como ganhou a tendência de ter representantes parlamentares por setores, os laços com a institucionalidade tornaram-se cada vez mais estreitos.

            Esse processo de enfraquecimento das pernas das lutas, fortaleceu cada vez mais o pescoço das disputas eleitorais, que permite a alguns setores de esquerda andarem de cabeça erguida, mas com o olhar voltado para as restrições jurídicas e, essas mesmas forças que deveriam lutar contra a ordem, passaram a gostar e a gastar tempo para defendê-la.

            De volta à filosofia do “quem não faz leva”, para chamar a atenção de que, aparentemente as forças ultradireitistas foram derrotadas, mas estão em campo e, num contra-ataque poderão desempatar o jogo eleitoral, como ocorreu na Argentina recentemente. Como a luta de classes foi convertida em torcida eleitoral, a derrota, neste campo, fará todos ficarem de cabeça baixa e sem forças nas pernas para dar um passo à frente.

            Já é hora de retomar a formação da consciência um, e separar as forças de lutas de esquerda dos governos de esquerda, dominados pela consciência dois. É possível haver apoio mútuo, mas a autonomia de cada lado é fundamental. A luta de classes poderá ir até o fim no dia em que os governos reformistas e legalistas não se colocarem como meio.

                                                                                Ademar Bogo

 



[1] MARX, Karl. Crítica a filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 46.

domingo, 12 de novembro de 2023

A COMUNA DA PALESTINA

 

Karl Marx ao tratar sobre “A guerra civil na França”, destacou que: “Se a Comuna era, assim, o verdadeiro representante de todos os elementos sãos da sociedade francesa e, portanto, o verdadeiro governo nacional, ela era ao mesmo tempo, como governo de operários, campeã intrépida da emancipação do trabalho expressivamente internacional”.[1]

Vemos na atualidade, 152 anos depois a Comuna de Gaza ressurgindo. Para aqueles que imaginavam Israel trucidando o Hamas em poucos dias, já passam de seis semanas e os bravos lutadores, com as suas táticas de defesa, continuam combatendo. Essa resistência já é a mais emblemática referência internacional.

Apesar da propaganda contrária, pois, é sempre do domínio da análise incluir como ponto essencial da interpretação dos conflitos, uma carga exagerada de ideologia, imposta pela capacidade de formulação das forças dominantes, para desmerecerem e aniquilarem a verdade do lado oposto. Com isso, os enfrentamentos locais ganham sempre novos reforços universais, pois, as barreiras dos dados impedem de se ter as informações completas.

O pacto de covardia firmado entre as grandes potências capitalistas reunidas em torno da referência do Estado de Israel, impõem uma narrativa convincente de que há, de um lado, “tropas” militares treinadas e oficialmente liberadas para agirem impondo qualquer condições e, do outro lado, apenas um “grupo” de terroristas impiedosos que sequestraram duas centenas de pessoas de bem e, por isso, precisam ser eliminados junto com o seu povo.

As notícias espalham pelo mundo, o lado cruel dos palestinos, enquanto aliviam e vitimizam os agressores israelenses que agem fazendo justamente o oposto, sem contudo parecerem terroristas de verdade.

O que é o terrorismo? Grosso modo, ele representa ser uma maneira de impor a vontade política por meio da violência, da destruição e do medo. No entanto, qualquer ato cujo objetivo é derrotar um inimigo será portador desses atributos, por isso, as palavras nem sempre são sinceras e refletem a realidade.

Colocados os agravantes frente a frente, os resultados mostram que os papeis se invertem. Se Israel foi penalizado com duas centenas de reféns,  a população palestina, principalmente os 2,4 milhões que habitam atualmente a faixa de Gaza, há décadas são prisioneiros políticos de Israel. Para além disso, deixar a população sem acesso a água, energia, combustível, alimentos, remédios etc., bombardear hospitais, impedir que os feridos sejam transferidos e os mortos de serem sepultados, não seria o grau mais elevado de terror, pois não se trata de um ato, mas de uma continuidade histórica de barbárie?

A vergonhosa posição de muitos governos e dos organismos internacionais que optam pelo “envolvimento respeitoso”, para não ferir o suposto “direito de Israel a se defender”, quando na verdade os palestinos nunca deixaram de serem atacados. O que esperam alcançar?

O direito à legitima defesa deve ser exercido quando há uma ameaça iminente contra a vida. O que Israel está fazendo é uma invasão de território de um povo que não quer destruir o outro, nem mesmo atacar o Estado vizinho, mas reivindica apenas o reconhecimento da própria soberania. Quem luta para garantir o direito a existir são os palestinos e o fazem em solo próprio por eles reivindicado.

Esse é o ponto. Na medida que a mesma garantia dada a Israel em 1948 quando foi oficializado pela Organização das Nações Unidas, a divisão do território, ficando 52% para os judeus, o mesmo não foi feito e nem respeitado com os 48% do território palestino. O que houve nos últimos tempos é que as terras da Cisjordânia e da Faixa de Gaza foram invadidas por mais de duzentos mil judeus, com apoio e infraestrutura oferecida pelo Estado de Israel e isso é uma provocação constante.

É importante que as informações corretas cheguem aos ouvidos do mundo.  Dessas informações depende a solidariedade internacional aos palestinos. Os gestos de defesa da causa palestina não se tratam apenas de atitudes humanitárias, mas da luta pela emancipação de um povo, impedida pelo terrorismo imperialista que se vale da divergência local para manter pressão e controle sobre as nações árabes frontalmente opostas aos Estados Unidos da América.

Viva a Comuna da Palestina!

                                                                        Ademar Bogo                                                                                                                                  

 

 



[1] MARX, Karl. Guerra civil na França. São Paulo: Expressão popular, 2008, p. 412

domingo, 29 de outubro de 2023

HOLOCAUSTO E HORROR

 

            O tema do holocausto veio à tona, com maior vigor, a partir de 1933 quando na Alemanha instalou-se o regime nazista de Adolfo Hitler e, culminou com extermínio de 6 milhões de judeus nas câmaras de gás. Na atualidade, todos os países, incluindo a Alemanha, condenam aquela política de extermínio e, julgamos ter sido um crime e não um direito do regime nazista de se defender dos judeus por estarem habitando o território alemão.

            A História do último encaminhamento, para sintetizar, já sabemos que, em 14 de maio de 1948, a Organização das Nações Unidas – ONU, determinou que o território fosse dividido: 54% dele ficou para Israel e, 46% para os palestinos. De lá para cá, os conflitos entre os dois povos, nunca cessaram, principalmente porque Israel continuou a invadir a parte da área pertencente à Palestina, e estabelecendo um verdadeiro Apartheid social, com perseguição e repressão ao povo considerado incômodo.

            Aparentemente essas práticas de holocaustos já não existem mais. Deveríamos chamar então de horror as medidas políticas tomadas por qualquer governo, de chacinar as populações pobres, como ocorre no Haiti, ou com os jovens negros nas favelas brasileiras; ou ainda a população palestina em luta há décadas contra Israel, que invadiu o seu território e impede a organização de um país soberano?

            A filósofa Hannah Arendt, ao escrever sobre “A ideologia do terror”, demonstrou que ele é a lei do movimento. Esse movimento seleciona os inimigos e, além de contra eles desencadear o terror, quer impedir que qualquer ação livre, de oposição ou de simpatia, interfira para impedir a eliminação dos seus opositores. Culpa e inocência viram conceitos vazios, porque, o “culpado” passa a ser o próprio inocente e, não tendo direito à defesa, é julgado à revelia e morto. “O terror manda cumprir esses julgamentos, mas no seu tribunal os interessados são subjetivamente inocentes: os assassinados porque nada fizeram contra o regime, e os assassinos porque realmente não assassinaram, mas executaram uma sentença de morte pronunciada por um tribunal superior”.[1]

            O tribunal superior, na atualidade, também é instalado aleatoriamente, segundo os interesses das potências capitalistas, reafirmadas pela mídia que, de imediato, constroem a opinião para criar consenso sobre a sentença determinada. Os dois argumentos fortes, inclusive utilizado pelas televisões brasileiras que, até pouco tempo serviam ao nazifascismo brasileiro, interrompido temporariamente são, de que o Hamas “é terrorista” e que “Israel tem o direito a se defender”. Com esses critérios não há limites para o terror a ser praticado.

            Nas avaliações interesseiras, não há o mínimo de recuperação histórica para mostrar o horror que os palestinos sofreram cotidianamente com a discriminação e repressão. A reação palestina é vista como terror, mas as ações de Israel contra civis, hospitais, o corte da água, luz e redes de comunicação, no território alheio, é visto como “direito à defesa”.

            Se Israel neste momento exige a libertação dos reféns, deve libertar os presos palestinos, reconhecer o direito ao território reivindicado e deixá-lo livre para que surja um novo país soberano. A desumanidade realizada pelo Hamas, provocada pelo sequestro de duas centenas de pessoas, não chega nem perto de toda violência, morte e sacrifícios impostos ao povo palestino. O mundo precisa ver isto.

            A resistência palestina ensina uma nova forma de ataque e defesa. As construções subterrâneas feitas por túneis cavados à picaretas, demonstram que o simples continua sendo válido para enfrentar o grande arsenal bélico, moderno e altamente sofisticado, que pode acertar um mosquito sem destruir nada ao redor, a quilômetros de distância.

            Há portanto, um território subterrâneo, em Gaza; galerias perfeitas como encontradas em um formigueiro, construído para fazer a guerra. No entanto, ao mesmo tempo que isto tem se tornado uma nova forma de resistência, apresenta enorme risco, pois, o horror das câmaras de gás do passado pode se repetir, assim que os reféns forem liberados e os labirintos dos túneis forem tomados por gases químicos, jogado pelas forças israelenses, tornando aqueles esconderijos insuportáveis.

            O mundo precisa levantar-se e protestar contra esse falso direito de Israel, de se defender fora de seu território, pois, isto significa ataque e não defesa.  Por outro lado, as mobilizações devem exigir que os governantes tomem medidas concretas para pôr fim ao conflito, reconhecendo o direito definitivo dos palestinos terem o seu país. Vamos à luta.

                                                                                   Ademar Bogo



[1] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.618.

domingo, 15 de outubro de 2023

A VIOLÊNCIA DA VIOLÊNCIA


O filósofo Friedrich Engels, ao escrever o livro “Anti-Dühring” acentua com profundidade as causas e as diversidades de formas de violência principalmente, econômica. Ao se reportar às armas destaca que: “Estes instrumentos, que não brotam do solo por si sós, tiveram de ser produzidos, o que equivale a dizer que o produtor dos mais perfeitos instrumentos de violência, que são as armas, triunfa sobre o produtor dos mais imperfeitos. Daí temos de reconhecer, em resumo, que a vitória da violência se reduz à produção de armas e que esta, por sua vez, se reduz à produção em geral, e, portanto, ao "poderio econômico", à "situação econômica", aos meios materiais colocados à disposição da vontade de violência”[1]

A violência na Palestina tem nome: “Crime de invasão”. Ela se amplia desde o início do século passado, quando por meio do movimento “Sionista” o poder econômico europeu contribuiu para que os colonos judeus comprassem terras na região da Palestina para reiniciar um núcleo de organização dos judeus dispersos pelo mundo.

 Na atualidade essa invasão atende pelo nome de “vingança poderosa”. Na verdade, a reação proposta pelo Hamas de quebrar as barreiras da opressão, poderíamos considerá-la como uma “revolta prisional”, pois, o governo de Israel mantém isolados, há décadas, mais de 2 milhões de palestinos, em um território prisional de 225 quilômetros quadrados.

As potências capitalistas do mundo, através de seus líderes, seguidos por outros menos importantes, declaram que: “Israel tem o direito a se defender”, mas não defendem nenhum limite aos ataques, nem ao oferecimento de armas e assessoria militar. Por outro lado, os que sempre defenderam os direitos dos palestinos de terem o seu Estado, com território demarcado e reconhecido, continuam com a mesma posição, mas sem demonstrarem nenhum gesto de proteção.

Muitas opiniões manifestam sentimentos de penalização aos judeus apoiando-se no holocausto dos mesmos, nas câmaras de gás, controladas pelo alemães nazistas no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Aquela barbárie cometida contra seres humanos, sequestrados, presos e violentados, deve ser rechaçada e organizar-se para que nunca mais venha acontecer. No entanto, os judeus que hoje, agem com seus métodos também perversos, deixando sem água, remédios e alimentos, milhares de homens, mulheres e crianças, cultivam  a mesma filosofia sionista surgida na Europa, no final do século XIX, quando os seus representantes buscaram criar o Estado de Israel, sobre os territórios pertencentes ao que era a Palestina.  

Ao fazer referência a Sião, da qual surge a palavra que deu nome ao movimento “sionista”, retomam os seus criadores, os textos bíblicos e, passam a fazer política com os fundamentos religiosos. O “Monte Sião”, situado em Jerusalém, serviu de referência simbólica para que o judaísmo lutasse a favor da formação do Estado de Israel, com a clara intenção de fazer a “limpeza étnica da Palestina”. Sem prolongar muito as explicações, esse movimento foi vitorioso e em 14 de Maio de 1948, por ordem da Organização das Nações Unidas – ONU – que aprovou, a partir da Resolução 181, a divisão da Palestina, deixando 53,5% do território para Israel que, não satisfeito, após a oficialização de suas reinvindicações, passou a invadir e assentar colonos na área destinada ao palestinos.

Hoje, quando ouvimos as expressões em defesa dos “direitos”, em grande medida, deixamos de fora os verdadeiros culpados pelo conflito interminável entre os dois povos. Há interesses dos Estados Unidos da América, nessa carnificina. Israel tornou-se para o Ocidente a base militar para enfrentar os países de nacionalidade árabe da região. Por isso, contra a bravura dos palestinos erguem-se as forças do capital internacional, para manterem o conflito e tornarem permanente as ameaças contra os governos dissonantes ao redor de Israel.

Diante disso, a Organização das Nações Unidas, que no passado oficializou a divisão territorial, não tem poder para garantir aquela decisão de 14 de maio de 1948 e oficializar os dois Estados com seus povos soberanos.

Para melhor ilustrar aquele conflito, podemos tomar como referência os indígenas brasileiros, que defendem a demarcação de suas terras, para garantirem a organização de 305 povos ainda existentes e, por isso, necessitados de reaverem os seus territórios. O “Marco temporal” que entrega ao tempo final ao ano de 1988 para as demarcações de terras, é a imagem e semelhança do acerto imposto pela ONU, aos palestinos e judeus em 1948. Os capitalistas sabem que, as leis mudam com o uso da força e, diante disso, os povos nativos, ameaçados desde o ano de 1500, enquanto não superarmos o capitalismo, serão alvo da cobiça e da violência do capital e de seus representantes.

Em síntese, os conflitos locais são apenas pequenas explosões das contradições universais. Os capitalistas agem de acordo com o movimento do capital. O poder deixou de ser político e passou para o domínio da violência e, sob o seu comando vale mais matar do que pacificar.

                                                           Ademar Bogo



[1] ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. Cap. III, Teoria da violência, p. 86.

domingo, 1 de outubro de 2023

AS LEIS E A JUSTIÇA.


            Quando o Direito positivo, este que está em vigor em todas as partes o mundo; após a Revolução Francesa de 1789, posto acima dos demais direitos, divino e natural, para essa nova formulação, o filósofo Georg Hegel em seu livro, “Princípios da Filosofia do Direito” (inciso 270), destacou que: “É o Estado a realidade da liberdade concreta”.[1] Ou seja, a liberdade de cada indivíduo na sociedade, está garantida pela lei e não pela falta dela.

            No real parece ser o oposto, porque, olhando do ponto de vista prático, tudo aquilo que cerceia a vontade, também limita a liberdade. O muro que prende o cachorro feroz, provavelmente para ele é um problema, pois, não o deixa exercer o seu direito de ir e vir. Assim ocorre com as cercas ao redor de uma propriedade etc. Mas Hegel viu na lei, a ordem, por isso quando não há lei estatal, qualquer indivíduo pode impor a sua e desmanchar os contratos, tomar as propriedades e ainda decidir sobre a vida de seus semelhantes.

            A importância dessa elaboração inovadora, adaptada à fisionomia da burguesia, ainda revolucionária, era a de fazê-la livre para implementar os negócios e ampliar as suas posses. Por outro lado, para não correr riscos, teria a força estatal para cuidar desses interesses e garanti-los à força. O pagamento por esse esforço empregado publicamente, viria do recolhimento dos impostos. Em síntese, a liberdade teve, desde o início um preço a ser pago, como um dever obrigatório para adquirir um direito.

            Não podemos deixar passar despercebido que, a propriedade privada, a produção e acumulação da riqueza por meio do trabalho e a circulação do capital, estão na origem desse debate. Tanto assim que Karl Marx, ao reler a obra de Hegel, interessou-se bastante por esse capítulo denominado de: “O Direito Público interno”, iniciado no inciso (260) e, de imediato, destacou que, a premissa inicial do texto pregava que: (...) a liberdade concreta consiste na identidade .... do sistema dos interesses particulares (da família e da sociedade civil), com o sistema do interesse geral (do Estado)”[2]. A polêmica seguiu-se, margeando o alcance dessas primeiras proposições e chega aos nossos dias, movida pelos mesmos interesses alimentados pela propriedade privada e pela acumulação do capital.

            Antes que dispersemos a atenção e comecemos a perguntar por exemplo, o que seria de uma sociedade sem Estado, leis, parlamentares, juízes, policiais e prisões? Ou se seria possível viver em uma sociedade na qual qualquer indivíduo faz a sua lei, tendo os mais fortes o direito a exterminarem os mais fracos?

            Embora que no fundo trata-se desse problema dos mais forte por força da lei garantem o direito a eliminarem os mais fracos, não é este o sentido da discussão. Evidentemente, uma sociedade acostumada a viver com certas convenções, ao se ver privada delas, se desarruma. Mas é bom pensar que, há redutos nos subúrbios das grandes metrópoles e em muitas pequenas cidades, nas quais as leis já são feitas pelo tráfico ou outros grupos ligados ao crime e não pelo Estado.

            A questão é saber quando as leis servem aos interesses gerais, voltadas para o Bem-comum, ou se voltam para servir a liberdade de grupos particulares, dedicados à acumulação do capital e a ampliação das posses? Podemos comparar as importâncias. Para uma família sem casa, a garantia da lei de que ela é livre para comprar um terreno e construir o seu espaço, é fundamental. A escritura comprova o direito de propriedade e pode ser usada como garantia para fazer um financiamento bancário etc. Isso se repete com qualquer objeto. Um bem de uso comprado, com nota fiscal, dá garantia de que pertence a quem o pagou. No entanto, isto é válido também para o grande proprietário que, para construir um condomínio, utiliza-se dos mesmos argumentos para despejar centenas de famílias que não possuem um documento igual ao dele. As grandes empresas de mineração que invadem as regiões, obrigando as câmaras de vereadores aprovarem a exploração dos minérios e, tantos outros exemplos que não há necessidade de aqui citá-los.

            Vamos além, no poder dos mais fortes sobre os mais fracos, e, estacionemos no assunto do momento conhecido como “Marco temporal”. Ninguém pode negar que o território, antes do ano de 1.500 era habitado por muitos povos indígenas; diz o IBGE de hoje, existir 350 etnias, com  270 línguas diferentes. Não há registros que esses habitantes tivessem um cartório de registro de propriedade e nem que houvesse algum corretor de imóveis demarcando e vendendo lotes para os indígenas. No entanto, a “sociedade civilizada” (Hegel a chamou de civil), por meio da autoridade dos poderes da República e, instigada por grupos interesseiros, entrou em conflito para decidir até que data os povos originários, tem o direito de reivindicar a posse de suas terras. E, a data sugerida é precisa: 05 de outubro de 1988, dia da aprovação da última Constituição Federal.

            No momento arma-se um teatro para protelar a decisão. De um lado o Congresso Nacional, aprovou o projeto de lei, 490/2007 na Câmara dos Deputados e o encaminhou, com a referência 2903/2023; aprovado também no Senado Federal no mesmo momento em que o Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos juízes, definiu com posição contrária ao marco temporal.

            Todos sabemos o que irá acontecer. Na medida em que o Supremo Tribunal considerar inconstitucional essa lei aprovada, ou o presidente da República vetar, o Congresso Nacional, composto por representantes do capital e da grande propriedade, produzirá uma PEC (Projeto de Emenda à Constituição), e dirão que agora, a Constituição estabelecerá claramente o que os interesses privados querem.  

            Em síntese, as mesmas palavras na boca de diferentes falantes podem ter significado oposto. Porém, enquanto os povos indígenas continuarem resistindo, sozinhos, contra a aprovação das leis, os interesses privados andarão a passos largos, em vista de garantirem, legalmente ao capital, os direitos privados, desrespeitando os direitos legítimos das populações mais pobres. A força da lei não pode ser maior do que a força da justiça, para tanto, é preciso continuar a luta para superar o capital e o Estado, para que, nunca mais, a medida do justo seja imposta pela propriedade.  

                                                           Ademar Bogo



[1] HEGEL, Georg, W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1997, p. 211.

[2] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 33.

domingo, 17 de setembro de 2023

VONTADE E CONSCIÊNCIA

 

            Sempre que fazemos análises conjunturais, não escapamos das referências históricas, sejam elas mais recentes ou mais antigas. Muitos elementos se cruzam e, no final, aparece um produto na forma de um texto que registra as compreensões produzidas. De certo modo, na pressa ou na preocupação com a centralidade dos fatos, deixamos escapar a percepção se aquele resultado é o reflexo de nossa vontade ou de nossa consciência.

            Para pensarmos sobre estas duas categorias, embora a vontade seja um dos momentos da consciência, mas, tomada em separado ela é uma pulsão voltada para a realização de certos desejos favoráveis aos interesses imaginários; imitando a projeção de algo a vir a ser do próprio gosto.

            O gosto investido na democracia representativa é sempre burguês. Os trabalhadores ao se apossarem das estruturas reproduzem, com seus mandatos, os regimes como se fossem vícios insuperáveis. Essa imutabilidade do vício, ao fixar-se nas ideias, leva a repetir os discursos com os mesmos termos. O filósofo Georg Lukács captou esse itinerário possível, ao dizer que: “Desse modo, a história é entregue como tarefa ao pensamento burguês, insolúvel”.[1] Disso devemos deduzir que, não importa quem executa, mas de onde vem as ideias a serem postas em ação. Com isso deixa-se passar o entendimento sobre a origem das configurações sociais reais e, adota-se a visão formalista de que há coisas de Estado, intocáveis, e, outras, na esfera de governo, passageiras.

            O grande dilema para Lukács, na sociedade movida pelo capital, é não perceber que as relações sociais são mediadas pelas coisas e, por isso, os afazeres cotidianos seguem o movimento delas, sem transparecer que as pessoas cumprem e executam conscientemente seus atos históricos, porém não compreendem e assim formam “uma falsa consciência”.

            O efeito causado pelas coisas na visão dos indivíduos que analisam a realidade é que, política se faz com respostas aos problemas sociais. Pensa-se de imediato em fazer a economia crescer, gerar empregos e movimentar o mercado. As ideias ilustram essas intenções e se apegam ao conceito de “justiça social” para dizer que os direitos devem ser garantidos. Quando entram os conceitos abstratos, desaparece a classe social e a consciência daquela classe; esses lugares são sempre preenchidos com “a consciência da ordem”.

            Quando alcançamos a consciência da ordem ou do “estado de direito”, essência da política burguesa, desde a Revolução Francesa, os lados da divisão social se apresentam: o primeiro desejoso de impor a sua vontade, ataca as leis e as instituições; o segundo agarra-se à “consciência da ordem”, e se dedica a praticar a “política do anexo”; ou seja, esse lado também tem suas vontades, mas elas são entregues aos seus representantes para realizá-la. Portanto, esses lados estão “desclassificados” e “desconscientizados”. Podem inclusive oscilarem e revezarem-se nos papeis que os lados assumem.

            Vontade e consciência vistas aqui separadas uma da outra, refletem o total esvaziamento da luta de classes em substituição ao apego e aceitação do estado de direito governado temporariamente por indivíduos aliados, geralmente falsos nas intenções e na consciência. O pragmatismo político brasileiro, desde a abertura após a ditadura militar, no início da década de 1980 e, repetido em outros países, foi levar para dentro da ordem quem agia conscientemente contra ela e a qual precisava ser destruída. As forças revolucionárias foram convencidas de que a política é feita dentro da institucionalidade e, com isso, aprenderam a aliarem-se aos defensores do capital e do Estado. Este movimento que arrastou e mantém como reféns as organizações populares, que reivindicam dos governos, medidas aliviadoras dos problemas, abriu espaço para as forças da extrema-direita de se posicionar mais pela vontade do que pela consciência, contra a ordem favorecedora das forças de esquerda, para controlá-la com outras mediações.

            Extintos os partidos revolucionários, o instrumento de ação passou a ser os governos conformistas, pois, ao mesmo tempo em que se conformam à ordem, conformam os aliados a aceitarem o mínimo, oferecido assistencialmente, enquanto o capital se expande sobre as terras, florestas, minérios etc. Desse modo a vontade de organizar um novo partido revolucionário, desapareceu junto com a consciência revolucionária.

            A veemência com que o Supremo Tribunal Federal atua, para punir, parte dos implicados na tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023, reflete o instinto repressivo e totalitário do capital, que criou e mantém em ação o Estado capitalista para garantir o funcionamento da ordem a ele favorável. Por isso, o entendimento de que o Estado pertence ao capital e não aos indivíduos ou classes, é de fundamental importância, para entendermos a rigidez da repressão exposta. Ou seja, não importa se por trás dos movimentos das forças “desordeiras” estejam as concepções, comunistas, nazistas ou golpistas, importa o perigo que elas representam para a acumulação e expansão do capital.

            As punições políticas e jurídicas para os capitalistas são irrisórias. A prática do abandono de seus representantes é corriqueira. Quando necessitarem de novos representantes golpistas ou mobilizadores e destruidores, os encontrarão com facilidade. Importa para eles que a exploração seja mantida. Para as forças de esquerda e populares é um enorme fracasso apenas aguardar que o judiciário puna os envolvidos na tentativa de golpe, sem nenhuma preparação para enfrentar o retorno dos ataques comandados pela vontade oposta.

            Em síntese, não há como fazer política contra a ordem sem classe e sem consciência de classe, no máximo, nesse jogo, se constituirá uma torcida favorável aos governantes para que façam alguma melhoria e se reelejam. Para constituir a classe e formar a consciência é obrigatório despertar a vontade e pensar em ter uma organização de classe ou mais propriamente um partido da classe.

                                                                               Ademar Bogo



[1] LUKÁCS. História e consciência de classe. 2003, p. 136.

domingo, 27 de agosto de 2023

MAIS POLÍTICA PARA A POLÍTICA


            Na atualidade há duas forças que concebem as em ideias em circulação e procuram matar a força da dialética, como se a linearidade dos processos se ancorasse na oposição dos “altos e baixos” e não nas contradições e nos choques entre os contrários. A primeira posição antidialética, procura apresentar a realidade com uma visão contrária à política e, investe grande parte do tempo na doutrinação religiosa; nas ações sociais e nos movimentos corporativos reivindicatórios.  A segunda, um pouco mais consciente das coisas, mas não menos colaborativa, é mais pragmática e se atém ao fortalecimento e ao engrandecimento do referencial favorável como: situação sobre oposição, formando maiorias representativas contra as minorias importunantes. Investem na conciliação contra o conflito e na cooptação para obterem vantagens na correlação de forças.

            Aparentemente, para todos, o capitalismo passou apenas a ter alguns desiquilíbrios gerados por causa dos setores mais afoitos desrespeitarem as convenções. Por isso veem que as contradições não estariam nos princípios perversos e destrutivos do capital. Para ambas as visões, bastaria entrar em acordo e colocar certos freios para diminuir a velocidade das forças “ruins”, enquanto as forças “boas” realizam os investimentos financeiros em favor do progresso sem fim.

            Pouco ou quase nada se estuda sobre o conteúdo das contradições. A crítica à economia política feita no passado parece ter se tornado inválida e, agora a única preocupação seria com o excesso de cuidados com a inflação, cerceada com as altas taxas de juros. Se isso se resolvesse, os custos dos empréstimos diminuiriam e o país se tornaria um único canteiro de obras; estas gerariam empregos, o Estado recolheria mais impostos e tudo fluiria na mais perfeita paz.

            Karl Marx em 1847 ao escrever contra a “Metafísica da economia política” de Proudhon, cujo texto todo passou a se chamar: “Miséria da filosofia”, quis mostrar que as forças colocavam as ideias na frente da realidade, como se a verdade estivesse na cabeça e não nas circunstâncias históricas. Chamou atenção: “Dia após dia, torna-se assim mais claro que as relações de produção nas quais a burguesia se move não têm um caráter uno, simples, mas um caráter dúplice; que nas mesmas relações em que se produz a riqueza, também se produz a miséria...”.[1] Isso não é apenas uma contestação contra a ingenuidade de achar que o capital, por encontrar menor resistência pela frente, facilitaria também os ganhos dos trabalhadores, empregando todas forças e pagando a elas o salário mais digno possível, mas um alerta para entendermos o real movimento do capital.

            É a riqueza que engendra a miséria, portanto, o aumente de ambas é uma interdependência real. O princípio é simples: se distribuírem não poderão acumular. Nesse sentido, a política quando se descaracteriza como força crítica, perde o seu caráter conflitivo e passa, sem deixar de ser política, a confundir-se com assistencialismo, caridade e conciliação. O próprio Marx irá concluir o seu texto dizendo que: “Não diga que o movimento social exclui o movimento político. Não há, jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo social”.[2]

            O esforço separatista que fazem as religiões e os movimentos populares em considerarem-se “apolíticos”, respeita o princípio condenatório de delegar aos representantes de todas as classes, o poder de ignorá-los ou investigá-los com Comissões Parlamentares, quando julgam conveniente utilizá-los de um ou outro modo no jogo político. Não importa se um eleitor vota a favor de um, tendo em mente que é contra outro candidato, mas sim que o mesmo pleito legitima todos os que irão assumir os mandatos como “representantes do povo.”

            É assombroso o rebaixamento do nível das ideias no meio partidário e social que, por perderem a referência das contradições, atem-se aos mesmos temas como se política seguisse o receituário das notícias pautadas pela mídia. O resultado é o esvaimento das forças possuidoras de um passado de lutas, que, respeitosamente, ao invés de expressarem palavras conflitivas, antagônicas, acabam verbalizando a “política da natureza”, com expressões agroecológicas, produtos orgânicos e recuperação das florestas. Enquanto isso, a barbárie avança, carcomendo o resto de organização e mobilização social colocadas na direção da luta de classes.

            Um movimento social não precisa ser um partido, basta que se assuma como organizador da “parte consciente” da sociedade e monte um programa para enfrentar as contradições do capitalismo. Parece ter se tornado mais cômodo, entregar as responsabilidades políticas para os profissionais da democracia representativa e somar-se a eles oferecendo militantes e apoio para compor o teatro da submissão ao estado de direito.

            Se no passado os estudos voltaram-se para fazer a crítica da economia política, do Estado e dos ordenamentos jurídicos e, portanto, essas críticas estão feitas e continuam válidas, agora, é a hora de criticarmos os comportamentos, o atrelamento aos partidos ordeiros, as linhas políticas produtivistas e a volta ao naturalismo. Não será com galhos de árvores jogados no caminho, que a frota dos capitalistas, cada vez mais modernizada deixará de avançar.

                                                                                   Ademar Bogo



[1] MARX, Karl. Miséria da filosofia: São Paulo: Expressão popular, 2009, p. 139

[2] Idem. p. 192.