domingo, 16 de dezembro de 2018

O SOL E A PENEIRA



            Que não se pode tapar o Sol com a peneira todos sabemos, mas, sempre há aqueles que, por conveniência momentânea, enquanto não encontram uma sombra para abrigarem as suas cabeças tentam praticar a manobra de cobrirem-se com o utensílio todo cheio de furos. No entanto, se na vida normal a peneira para tapar o Sol não é uma atitude correta, correto é aplicarmos a combinação metafórica ao comportamento moral.
            Para satisfazer as vontades dos arautos da ideia da “escola sem partido” (atualmente derrotada no Congresso Nacional), não chamaremos Karl Marx para provar que os furos da peneira deixam passar os raios do Sol tornando a iniciativa de cobrir a cabeça com a peça, inepta. Chamamos para este fim Émile Durkheim; um intelectual respeitado pelas forças retrógradas e de direita, que um professor de esquerda poderia relacioná-lo e ensiná-lo sem correr nenhum risco de monitoração de orientação fascista.
            É verdade que a ignorância na História cumpriu, por um lado, a função de incentivar a humanidade a buscar sempre mais conhecimentos, mas, por outro lado, como uma fera no meio do caminho, estraçalhou grandes contingentes de estudiosos, críticos e formuladores de conceitos que pretendiam passar para o futuro.
            Durkheim é um pensador funcionalista que acreditou ser possível coagir o indivíduo pela ação da coletividade, forçando-o a adaptar-se à ordem para cumprir ali a função que lhe é destinada. Logo, o indivíduo não poderia agir como gostaria; deveria agir como estava prescrito nas normas formuladas pela “sociedade” e pelo Estado.
            Essa relação ficou mais complexa quando foi transportada para o comportamento moral, isto porque, a priori nos orientamos pelo conjunto das leis do país e pelas normas morais culturalmente praticadas. No entanto, as normas morais se diferenciam das demais por duas razões: a primeira é pela “noção de dever” que obriga o indivíduo a buscar sempre o bem comum e, a segunda, é pelo “desejo do bem”, que desperta, por meio dos atos, a sensibilidade para aquilo que é desejável. Portanto, obrigação e desejo caracterizam o “ato moral” diferenciando-o dos demais atos sociais.  
            Mas eis que quando parece que tudo está nos conformes, Durkheim mergulha num paradoxo e talvez nunca mais tenha conseguido sair dele, ao defender que as regras morais são constituídas e subdivididas em duas espécies: as que se aplicam a todos os homens indistintamente e as que se aplicam à apenas aos grupos profissionais.
            Em relação às normas que se aplicam a todos os homens, elas tem a função de fixar na consciência do indivíduo as bases fundamentais de toda a moral que determinará todas as demais normas; por sua vez, as normas ligadas à categoria profissional, dizem respeito àqueles indivíduos que integram entidades, ordens e associações  específicas, como exemplo podemos citar a categoria dos médicos e dos advogados que, além das normas morais gerais possuem normas internas de comportamento profissional que um professor, um soldado, um agricultor etc., não precisam cumpri-las aquelas, mas cumprirão outras diretamente voltadas para as suas profissões. De algum modo, cada indivíduo em qualquer função social que ocupe, têm esses dois referenciais de normas morais a seguir.
            Até aqui, se fosse em sala de aula, o discurso estaria satisfatório ao que os indivíduos defensores da “escola sem partido”, com as suas câmaras filmadoras ligadas querem. No entanto, vem a surpresa paradoxal, quando Durkheim leva a disciplina moral para dentro da economia. Essa área, no capitalismo, adquiriu vida própria; suplantou as funções militares, administrativas e religiosas. De certo modo, tal área respeita as funções científicas, na medida em que a ciência é útil para as profissões econômicas.
            As forças econômicas, portanto, no capitalismo, adquiriram tamanho lugar que se julgam libertas dos controles morais e, com isso, utilizam-se de todos os subterfúgios para praticarem as disputas entre si, tendo os acordos firmados sempre com validade temporária. Dentre as categorias que cultivam o caráter amoral, Durkheim cita os industriais e os comerciantes, cuja função, caracteriza-se como um “perigo público”. Primeiro, porque aquilo que os une é o mesmo que os divide que é a concorrência e, em segundo lugar, porque esses indivíduos das atividades industriais e comerciais passam a maior parte da vida dentro dos seus negócios e, como consequência, os leva a viver a maior parte da vida à margem da ação moral.
            Nesse momento, você deve ter notado que as diversas câmaras que filmavam a aula, foram desligadas e os seus operadores saíram da sala para alimentarem-se com as coxinhas vendidas na cantina ali próximo.
Com isso podemos voltar ao título da aula: “O Sol e a peneira” e mostrar que a sociedade comercial capitalista está impregnada de imoralidades e os seus agentes profissionalmente, por natureza do ofício, são portadores da conduta imoral. Por isso, aquele que, malditamente dissera que preferia “ter um filho ladrão, do que um filho gay”, já o tinha quando o disse; isto porque, segundo o próprio Durkheim, uma forma de agir, seja qual for, só se consolida pela repetição e pelo uso. Logo, não há nenhuma vingança do destino contra aquele indivíduo imperioso, o fato é que, desde a origem do capitalismo, a política no âmbito estatal transformara-se em um negócio altamente lucrativo, depende porém da infidelidade moral dos funcionários consigo mesmos para entregarem parte dos seus salários, e dos comerciantes que lavam o dinheiro desviado da política, para fazê-lo retornar para ela.
            O que dizer agora sobre a tese de que os médicos cubanos eram escravos aqui no Brasil por que recebiam para uso próprio 30% dos salários? Com quanto daquilo que constava da folha de pagamento dos funcionários dos parlamentares, até aqui citados, ficavam estes indivíduos?
            Em termos de comparação, os próprios médicos brasileiros, com exceções gloriosas, se não fossem tão corporativistas, deveriam revelar qual é o valor de cada consulta paga a eles por intermédio dos planos de saúde e veríamos que não passa de 30% de uma consulta normal nos consultórios particulares. Logo, facilmente podemos perceber que o “trabalho escravo” continua sendo uma prática do capitalismo desde a sua origem.
            Não há mais como tapar o Sol com a peneira. Cada vez mais as práticas imorais mostram que é da natureza do capitalismo e do Estado capitalista, garantir a reprodução material pelas ações imorais de uma porcentagem significativa de indivíduos. E, aqueles que se julgam os consertadores da ordem já estão tão desconcertados que mal conseguem sustentar os próprios argumentos.
            O paradoxo durkheimeniano está em que, inicialmente ele crê que o indivíduo está submisso à sociedade e coagido pelas leis e normas morais, mas, no final depara-se com essa excrescência amoral profissional que podemos, além da indústria e do comércio incluir o Estado, isto porque, os indivíduos que atuam nessas profissões, antecipam pela ação imoral, aquilo querem que seja transformado em lei e praticado como conduta moral posteriormente. Sendo assim, alguns indivíduos, sustentados pela natureza imoral do capitalismo, impõem as leis e as normas morais que todos devem cumprir ou aceitar como justas.
            A sala de aula não pode ser um lugar para tratar de frivolidades é o lugar motivador, produtor e publicador do conhecimento. O olhar critico da professora e do professor, deve fazer brotar das contradições e incoerências dos “mitos”, a coerência da verdade e, esta, mesmo que venha da boca de um conservador, se for verdadeira, será sempre uma verdade.  Há olhares e olhares por trás das mesmas lentes. Olhos que filmam para o mal, mas a maioria que busca conhecer, pode filmar para o bem. É a disputa das ideias que nos fará construir novas práticas e derrotar o mito da ignorância e da truculência.

                                                                                                                  Ademar Bogo 

domingo, 9 de dezembro de 2018

DIREITOS HUMANOS ÀS AVESSAS


                                                  
            No dia 10 de Dezembro de 2018 comemoramos os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que, apesar do chamamento à humanização pouco temos a comemorar.
            As Declarações cumprem na História o papel de estabelecer um grau de entendimento entre os governantes de todos os países do mundo, que a vida e a dignidade humana precisam ser preservadas. No entanto, mesmo que na História da humanidade dos tempos mais remotos tenhamos uma quantidade expressiva de declarações, a violência, o desrespeito, o arbítrio e a matança de pessoas, sempre marcaram profundamente cada época. Justifica-se a continuidade da violência pois, as Declarações sempre foram elaboradas logo após destacados atentados contra a vida humana, que como sinal de arrependimento momentâneo levaram os lideres mundiais virem a publico prometerem o que não iriam cumprir.
            Se, por um lado, as Declarações revelam as boas intenções, por outro lado expressam uma pesada carga de ideologia que revela os interesses das classes dominantes em cada época. Se tomarmos as duas Declarações mais expressivas elaboradas no capitalismo, a de 1789, por ocasião do triunfo da Revolução Francesa e, a de 1948, logo após o final da Segunda Guerra Mundial, vemos que nem todos os direitos foram equiparados; a última por exemplo contempla o “direito ao trabalho” (artigo 23) mas a outra não menciona este assunto.
            O motivo para a omissão “do direito ao trabalho” na Declaração de 1789 somente o compreendemos se tomarmos a disputa ocorrida na própria França na ocasião do término da Revolução Liberal de 1848 quando elaborou a Declaração de Direitos da Constituição Francesa e, o ponto de maior conflito foi justamente o direito ao trabalho.
            Por que o direito ao trabalho fora tão polêmico se a burguesia vencera a Revolução e, a partir daquele momento atuaria com toda a força na livre produção de mercadorias? Entenderam os burgueses que, se oficializassem o “direito ao trabalho” eles mesmos teriam que oferecer emprego para qualquer trabalhador desempregado e isso esvaziaria o “exército de reserva” que servia para pressionar os salários para baixo.
            Na Declaração de 1948, a burguesia já tinha uma longa experiência e sabia que nem tudo o que constaria da Declaração seria cumprido nem levado a sério pelos governantes. Por isso é importante que prestemos atenção permanente porque as leis e as Declarações têm validade para a classe dominante até momento em que servem aos seus interesses; quando avaliam que as leis atrapalham ou limitam as suas ações, com facilidade mudam a lei e ignoram as Declarações universais.
            O fato é que, como o conceito de Democracia que passou a ser apenas o ato de escolher os governantes e não o acesso a todos os bens e direitos, os Direitos Humanos passaram a ser compreendidos apenas como a defesa contra os atos de violência, a discriminação e o desrespeito à dignidade individual, por isso, a relação dos direitos contidos na Declaração não são valorizados nem tampouco cobrados pela população.
            Se tomarmos o último dado apresentado pela OXFAN, Noé mostra que, de toda a riqueza produzida no mundo em 2017, 1% da população ficou com 82% dela. Significa então que 99% da população ficou com 18% da riqueza? Não, porque a mesma pesquisa mostra que 3,7 bilhões de pessoas ficaram sem nada.
            É sobre isto que devemos colocar as atenções sobre a defesa dos Direitos Humanos. Ou seja, se a metade da população mais pobre do mundo vive com uma renda que varia entre $ 2 – 10 dólares por dia significa que o mundo está dividido entre os que podem ir e vir e os que não podem; entre os que tem acesso aos bens de consumo e aos que não tem; entre os que usufruem da cultura, da arte, do bem estar e outros não.
            Mais grave ainda são dados publicados pelo Ministério da Justiça nos mostrando que, no ano de 2017, foram assassinados no Brasil 63.880 pessoas. Dentre elas 56,5% eram jovens entre 15 e 19 anos e que 71,1% das vítimas eram da etnia negra.  
            Diante desses dados vemos claramente quem tem o direito à vida e quem não tem. Se pegarmos outros dados sobre o desemprego, a falta de moradia, a falta de vagas nas universidades, o péssimo atendimento à saúde etc. comprovaremos que, de fato, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, ficou esquecida e submetida aos interesses do grande capital.
            E, quando já pensamos que vimos tudo, notamos que a escalada dos atentados contra os direitos sociais e humanos começam a explodir com força ainda maior nas intenções do novo governo que se utilizará das mudanças constitucionais para retirar direitos por meio das reformas do mal já prometidas.
            Mas isto ainda não é tudo. Na medida em que o governo, na ansiedade por reduzir o tamanho da burocracia do Estado unifica ministérios e secretarias em algumas pastas e as põem sob o comando de indivíduos declaradamente de extrema-direita e militares que rejeitam as ideias humanitárias, é um péssimo sinal. Chama a atenção a Ministra que cuidará dos Direitos humanos, da família e dos índios seja devota da homofobia, contra as reservas indígenas e tem uma visão retrógrada sobre o conceito de família.
            Não há outro caminho para as maiorias exploradas se quisermos garantir o acesso aos direitos fundamentais a não ser a organização para defender os direitos humanos e também os direitos da Terra e da natureza. Diante de um governo que, constituído por uma facção, em nome do combate à corrupção age contra a maioria do povo constituído por trabalhadores, idosos, funcionários públicos, índios, negros, pobres organizados em movimentos sociais, merece implodir, pelas contradições entre os seus membros, antes mesmo de começar.
                                                                                                             Ademar Bogo

domingo, 2 de dezembro de 2018

DO CAPITÃO DO MATO AO CAPITÃO DO MITO



            O Brasil é um país de ascensos e contrassensos. Sobre essas terras já pisaram pés calçados e descalços e vigoraram ideias conscientes e também alucinadas. A violência, no entanto, desde e o inicio daquilo que se chamou de “civilização local”, sempre foi e ainda é o produto nacional de maior relevância, podendo ser encontrada em qualquer esquina, favela, campos, mares e florestas, principalmente onde reina a propriedade privada.
            No tocante às florestas que protegem a terra, as riquezas minerais e a biodiversidade, já abrigaram também milhões de índios de diferentes línguas e etnias e milhares de negros que, utilizavam-se do recurso da legitima defesa e escapavam da violenta escravização para formarem os quilombos que muitos deles ainda sobrevivem.
            Os contrastes que expressam o juízo de valor entre o certo e o errado estiveram sempre relacionados à propriedade privada. Ela, desde o Brasil colônia, definiu o perfil do “homem brasileiro”, de ser bárbaro à noite, beato pela manhã e, no expediente dos negócios, civilizado e cordial à tarde.
               Como se tivesse três vidas, uma para cada parte do dia, o “capitalista nacional”, na penumbra das relações preconceituosas, divide as pessoas entre as que são possuidoras e as despossuídas de bens e de direitos, nisso incluindo a própria vida. Com tal crença, celebra o sucesso em certas igrejas que, nas disputas eleitorais fustigam e declaram imoral tudo aquilo que fere os interesses conservadores e, no mundo dos negócios, embora culpe o Estado, sustenta a corrupção lavando o dinheiro das verbas públicas, lícitas e ilícitas desviadas para garantir os seus interesses burgueses.
            Na História do Brasil, com um pouco de olhar crítico, lê-se que, para demarcar as propriedades da terra, desde as capitanias hereditárias, extinguira-se a hereditariedade dos índios que, por serem inaptos à devastação, foram mortos ou espantados para longe do cabo dos machados que as mãos escravizadas foram obrigadas a manejar.
           O negro escravizado, quando podia, seguia os rastros do índio enxotado; metia-se mata adentro para formar quilombos. Fugia mas não adquiria a liberdade. Diferente do índio, sendo uma propriedade batizada e registrada, quando encontrada, era aprisionada e devolvida ao dono pelo “capitão do mato”, caçador de gente.
           Em síntese, o Brasil da ordem e progresso que agora vemos com grandes metrópoles industrializadas, universidades, tribunais e campos produtivos, apesar do trabalho assalariado, vem se arrastando sobre o sangue, o sofrimento e o extermínio de três forças indefesas: a dos povos indígenas, dos negros escravizados com todos os seus descendentes e das florestas.
            O mito criado sobre as três forças historicamente tidas como “marginais” e descartáveis, justifica porque “os civilizados” acreditam que as árvores e as pessoas atrapalham os interesses conservadores fazendo crer que a própria ciência está equivocada sobre as causas das catástrofes naturais e o aquecimento sensível da atmosfera.
            O mito de que as “reservas indígenas atrapalham o crescimento do agronegócio", ressurge para concluir o genocídio e o atentado contra a cultura dos povos indígenas e das comunidades quilombolas. Logo, se as formas de propriedade não mudaram, também não mudaram os motivos das perseguições.
            Agora o “capitão do mato” cedeu a vaga ao “capitão do mito” que, por meio de informações falsas busca convencer as consciências ingênuas, para que apoiem a implementação das políticas homicidas  que visam, não apenas tirar os direitos humanos dos povos indígenas, como também extinguir os seus territórios. Não há mais lugar para onde espantá-los, agora a ordem é exterminá-los.
            Para implementar o ataque contra os mais de duzentos povos indígenas brasileiros que falam cerca de 180 línguas, o capitão do mito, ataca a FUNAI, o IBAMA, o ICMBIO e o INCRA que sempre responderam minimamente pelas questões ambientais e agrárias. Serão sucateados aniquilados no interior de ministérios homicidas.
            O mito se fortalece quando diz que essas áreas servem aos interesses externos, principalmente dos países ricos que veem o potencial mineral e biológico que há nesses locais, facilita para que os capitalistas do agronegócio assaltem os territórios habitados para expandirem o plantio de soja, que nada mais será que servir ao mercado externo.
         Para as populações do campo, as reservas indígenas e as comunidades quilombolas representam as últimas fronteiras a serem rompidas pelo capital. Sendo assim, nos próximos anos serão travadas as últimas batalhas das lutas de resistência provocadas pela mal resolvida “questão agrária” no Brasil. No entanto, de outro modo ascenderão as lutas de massas e proletárias elevando a luta de classes para um novo patamar.
            É certo que os mitos nunca morrem, somem quando são esclarecidos, depois reaparecem no meio de novas ilusões criadas pelas fraquezas humanas. Enfrentar os mitos é enfrentar as próprias fraquezas das ideias, das crenças e da organização.
                                                                                              Ademar Bogo        

                 
           
           

domingo, 25 de novembro de 2018

FUNDAMENTOS DO REGIME EM CRISE


               
             Sempre que fazemos análises políticas colocamos os conceitos de Estado, governo e regime político, em um mesmo nível de responsabilidade. É evidente que a linha que separa cada uma das formas específicas é muito tênue, mas é de fundamental importância compreendê-la para, não apenas valorizar cada um dos conceitos estabelecidos, como também para perceber quais são as contradições que surgem e porque às vezes aquilo que em um momento parece ser avanço, impulsiona grandiosos retrocessos.
            Quando falamos em regimes políticos (democrático, autoritário ou totalitário) deveríamos visualizar as formas de expressão da existência do Estado. Como a figura da autoridade governamental no interior de cada instância está mais próxima do cidadão, a tendência é apegar-nos aos indivíduos como se neles estivesse a solução para todas as crises.
            Nesse emaranhado todo de diferenciações, escapa sempre a compreensão de que o capital é o sujeito ainda mais importante no funcionamento do Estado, do regime e do governo, isto porque, o Estado foi concebido e estruturado como reprodutor e garantidor das relações capitalistas que, costumeiramente chamamos de “ordem”. Logo, não é qualquer “ordem” que um regime ou governo, possa mudá-la. Isto porque, o meio para mantê-la pode ser a democracia, direta ou representativa; o autoritarismo quando se instala uma ditadura militar ou o totalitarismo, quando um poder é centralizado nas mãos de um só indivíduo, mas ela continua sempre a mesma.
        No caso das democracias, as mais novas gerações estão acostumadas com a forma representativa, tivemos a possibilidade de experimentá-la no período em que foi conduzida por representantes das classes dominantes e, em parte com representantes da classe trabalhadora, ambas com apoio popular.
            Se entendemos que o Estado capitalista é responsável pela manutenção da ordem capitalista, os governos devem estar a serviço dessas relações e, nesse sentido, as democracias representativas que tendem a beneficiar minimamente as populações que não estão diretamente envolvidas com a reprodução do capital, tendem a não vigorar por muito tempo e quando ocorrem as inversões de governos, seja pela democracia representativa ou pelo autoritarismo, no caso, os golpes militares, o objetivo é sempre reparar “os desvios” provocados contra a ordem dominante. Para que as correções dos desvios se realizem as instituições do Estado, sob o comando do governo agem em benefício do capital.
            Nesse sentido, o uso ou não da violência, seja pelo governo “democraticamente” eleito ou por aquele que se institui por meio de um golpe militar, podendo evoluir de um para o outro, depende apenas da reação das forças contrárias que dificultem a reparação dos “desvios” na ordem capitalista.
            De acordo com este raciocínio, a regressão política é basicamente natural. Somente no Brasil podemos citar dois momentos semelhantes em que as medidas democráticas apontaram para alguns direitos e ganhos para as classes populares que tais processos foram interrompidos por dois golpes: o primeiro militar em 1964 e, o segundo, pela via institucional em 2016.
            É verdade que as circunstâncias históricas se apresentam como são e não como queremos que sejam, e, se em determinados momentos elas permitem as classes trabalhadoras chegarem ao governo por meio do voto, ela não pode se dar ao luxo de desprezar esse “presente” da História. Mas, tal qual o “Cavalo de Troia”, com a barriga cheia de soldados inimigos, deixado de graça pelos gregos aos troianos depois de dez anos de resistência, é preciso ter claro que no interior da “democracia representativa” de natureza popular, agem forças contraditórias que empurram o processo para trás.
            Compreendida a ordem política como uma obrigatoriedade do funcionamento do capitalismo, o acerto dos desvios cometidos pelos “governos populares” é sempre doloroso, porque significa as perdas de direitos e aumento dos sacrifícios, quase sempre com a perda de vidas.
            A primeira e principal lição de alerta contra a ingenuidade política das forças que querem provocar “os desvios ” da ordem, assumindo comando do veículo que os burgueses conduzem, já nos foi  destacada por Karl Marx logo após a Comuna de Paris de 1871, e que nunca é demais repetir: “Os trabalhadores não podem tomar a máquina do Estado para si e fazê-la funcionar a seu favor”. Certamente porque, se o Estado permanecer intacto, ele confirma que o capitalismo como modo de produção não foi afetado na sua estrutura de funcionamento. E o capitalismo precisa de um Estado capitalista.
            O período vindouro na conjuntura brasileira, aos olhos das forças de direita será marcado pelo acerto dos “desvios”, cometidos pelos governos do Partido dos Trabalhadores, pequenos é verdade, mas intoleráveis para a ordem dominante em crise. Conscientes dessas dificuldades, nem a intimidação, nem o radicalismo e, muito menos o reagrupamento das forças em busca de preparar as próximas disputas eleitorais, devem ser as posições e os caminhos a tomar.
            Os fundamentos da crise do regime político, não os encontraremos na política; por isso não é nela especificamente que devemos colocar as nossas atenções, mas nas medidas de acertos “dos desvios” da ordem anterior para favorecer o capital. É a crise do capitalismo que reproduz a crise de regime político, a crise estatal e de governo e, estes fundamentos não são locais, mas mundiais.
            Há muitas contradições em movimento mundo afora, a favor da manutenção e também da superação da ordem capitalista. As circunstâncias encaminham-se a favor das mudanças; cabe àqueles que as querem, prepararam-se para aproveitá-las. As formas de organização para a luta e a formação consciência continuam sendo o único remédio para enfrentar e superar as crises.  
                                                                                                                
                                                                                                                           Ademar Bogo