domingo, 30 de maio de 2021

ÍDOLOS E IDÓLATRAS

O filósofo inglês Francis Bacon(1561-1626), ao descrever os ídolos mostrou-os como sendo produtos das ideias falsas, ilusórias e preconceituosas encarregados de impedir que se chegue à verdadeira ciência. Isso tudo na atualidade, ajuda a explicar o alto grau do negacionismo governamental brasileiro em pleno século XXI.

A malevolência do ídolo (eidolon) está na capacidade de transformar os cidadãos comuns em “idólatras” convictos, capazes de cultuarem certas figuras que propositalmente buscam a admiração e a veneração social.  Para Bacon os ídolos se diferenciam pelas imagens que transportam e podem ser sintetizados em quatro tipos: a)ídolo da caverna criado pelas ideias e imaginação do próprio indivíduo; b) ídolo do fórum, surgido a partir das ideias que chegam até o indivíduo convencendo-o de serem corretas; c) ídolo da tribo, estão inerentes ao próprio grupo crente de ser superior aos demais; d) ídolo do teatro, formado e exercido pelas autoridades que visam cativar os ouvintes como se a vida social e política fosse um espetáculo.

Do ponto de vista filosófico esses tipos de ídolos produzem a alienação separando os indivíduos do verdadeiro sentido das coisas e da política, para viverem a falsa realidade. Do ponto de vista popular podemos denominar o comportamento idólatra como “treita”, representada pela “marca deixada por um homem ou animal, por onde passa”. Por sua vez, a definição para o produtor de treitas, no caso, o “treiteiro”, vemos no dicionário como: “treitento; velhaco; tratante; patife; enganador; enrolador. “Um sujeito mau...”

Governar com “treitas” nada mais é do que implementar marcas “treiteiras”  e deixá-las como indicação para que os governados as idolatrem e as sigam. Ocorre que as tais marcas deixadas pelo “ídolo do teatro”, não são as melhores indicações a serem seguidas. Parte dos que o seguem é porque estão tomados pela força dos demais tipos de ídolos reprodutores das marcas deixadas pelo líder das idolatrias. A idolatria portanto, não se sustenta apenas pela capacidade do ídolo mas, principalmente pela aceitação, entrega, conivência e concordância dos idólatras.

Por que surgem os ídolos? Em parte, porque realidade concreta tornou-se insuportável e por outra, por necessidade, como já havia alertado Platão em sua época: “Os homens gostam de recostar a cabeça no colo dos deuses”. O ilusório, o fabulado e teatralizado faz bem às consciências em fuga ou submetidas ao peso dos interesses egoístas.

Para manter-se o “treiteiro” como ídolo do teatro, o personagem precisa encarnar o mal e expressar-se com exibicionismos marcantes, como: desfilar de motocicleta com seguidores aos domingos; provocar aglomerações quando elas estão proibidas; entrar na justiça contra os governadores para impedir que eles garantam o distanciamento físico da população; liberar o porte de armas; incentivar a destruição das florestas; modificar as regras para aliviar as infrações no trânsito etc., ou seja, tudo o que vai contra o bom senso, pois, do contrário seria tão inexpressivo e jamais seria sequer lembrado.

Diante de tais atitudes e medidas, a primeira vítima a cair é a consciência social e, a segunda, o próprio dono da consciência admirador das indicações do ídolo que o segue nas manifestações e na repetição das atitudes cotidianas, contraindo e disseminando o coronavírus como se fosse um ato de heroísmo. Entrega a própria vida para alcançar a meta da “contaminação de rebanho” e mostrar que a vacina nunca faria falta e por isso não precisava adquiri-la.

Vem à tona essa concepção do ídolo, idólatras e seguidores em relação à pandemia. Seguindo os cálculos genocidas, considerando o tempo e o espaço nacional, pensaram, para alcançar a “imunização de rebanho”, no Brasil o vírus deveria contaminar 150 mil pessoas por dia (a média atual está em 70 mil) num prazo de 120 dias. A meta seria atingida com 180 milhões de pessoas contaminadas. É claro que isso representaria perdas de vidas que, para os calculadores da morte seria natural sepultar 12 mil pessoas por dia para no final ter-se  perdido 1,4 milhões de vidas, mas ganho em benefícios, de não entrar na recessão econômica, não gastar com ajuda emergencial e nem investir em vacina. O máximo a ser feito, seria o investimento em falsos imunizantes para assegurar o tratamento precoce.

Agora entendemos a razão das bravatas e o descaso com os laboratórios que ofereciam vacina, como também as mensagens enviadas aos idólatras, de que teríamos apenas uma “gripezinha”, bem como a ameaça de colocar as forças armadas a serviço da proliferação do vírus contra os governadores adotantes de “medidas totalitárias”, impedindo o cidadão de ir e vir. Isso tudo atrapalhava o plano de matança em massa premeditada.

    A situação, mesmo assim, tornou-se insustentável. Com o lema de “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, implantou-se um regime idólatra negacionista que, para se manter precisa atacar a ciência e o comunismo, principais forças capazes de destruir os ídolos e suas treitas.

Contra o teatro dos ídolos devemos apresentar o “teatro do oprimido” criado e desenvolvido por Augusto Boal, o qual faz os pobres e explorados assumirem o papel de atores sociais e políticos como protagonistas da História. A morte do vírus dar-se-á com a derrota dos ídolos e dos idólatras. Para isso é importante investir na organização e formação da consciência social. Quanto maior a consciência menor é a idolatria, no entanto, o inverso também e verdadeiro.

                                                                                                                        Ademar Bogo 

domingo, 23 de maio de 2021

A QUESTÃO DIGITAL E A REVOLUÇÃO

Cada época apresenta os seus problemas. Marx, em seu tempo, ao escrever o prefácio para “À crítica da economia política”, para publicação em janeiro de 1859, destacou que, uma formação social não perece antes que estejam desenvolvidas todas as forças de produção para as quais ela é suficientemente desenvolvida e, novas relações de produção mais adiantadas jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham sido geradas no seio mesmo da velha sociedade. Por isso, astutamente viu e concluiu, imperativamente que, “...a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente, se chegará à conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem, ou pelo menos,  são captadas no processo de seu devir”.

Essa conclusão pode ser vista como uma síntese dos processos anteriores quando, os problemas e as tarefas foram combinadas ao longo dos séculos para superar cada um dos modos de produção, até a humanidade chegar ao capitalismo, estruturado, fundamentalmente, pelas relações entre o capital e o trabalho, com a presença do poder político e jurídico centralizado no Estado capitalista.

Se voltarmos ao início da revolução industrial e fizermos um recorrido até o final do século vinte, veremos que as mediações fundamentais para a produção e reprodução, basearam-se na propriedade dos meios de produção e da força de trabalho, tendo como retaguarda a estrutura familiar. Enquanto a maior parte da família composta por sujeitos livres e iguais vendiam, fora de casa, como mercadoria especial a própria força de trabalho, a parte menor, dentro de casa, garantia o preparo da alimentação, a lavagem da roupa, a limpeza e a arrumação da casa; de tal modo que, a maioria dos indivíduos componentes da sociedade, estava ocupada ou estudando para vir a ser explorada.

Por outro lado, se a era cristã iniciou com uma população mundial de 170 milhões de pessoas, no ano de 1800, chegou a 1 bilhão e, somente em 1927, dez anos após a revolução  russa e início dos preparativos da Segunda Guerra Mundial, a reprodução humana viva, alcançou o número de 2 bilhões. Quantidade pouco expressiva se compararmos com o ano de 1999, quando os humanos, em meio ao impulso da maior revolução tecnológica já vista, alcançamos a casa dos 6 bilhões de pessoas.

            Esses números são importantes para percebermos que antes da necessária revolução tecnológica e, desde a época de Marx, a mudança fundamental no mundo do trabalho se deu pela variação e passagem da mais-valia absoluta (para atender as necessidades do consumo, aumentava a jornada de trabalho), pela “mais-valia relativa”, a qual, aumentando a velocidade da produção, conseguia reduzir o tempo social médio para produzir em grande escala e atender a demanda do mercado.

            Com o melhoramento das máquinas, o risco de ampliar o “exercito de reserva” ficou ainda maior e, de fato, a tecnologia anunciou que com ela não haveria mais necessidade de grande número de indivíduos ligados à produção e, com isso trouxe também um problema para o clássico conceito da classe social, articulada pelos sindicatos e partidos políticos para assumir a condução da revolução. Com isso em algumas poucas décadas, o proletariado foi reduzido e os instrumentos de luta perderam a força e a serventia.

            A “era digital”, nome novo para identificar as funções sociais dos 8 bilhões de indivíduos a existirem no mundo em 2023 e, 10 bilhões até em 2050, isolará, não mais em cada fábrica, mas em postos de trabalhos sem lugares certos  ou simplesmente no recinto dos lares sem direitos nem horários determinados como acontecia anteriormente com a força de retaguarda da parte familiar que trabalhava fora de casa.

            Diante deste diagnóstico, observando os avanços tecnológicos e da decadência do capitalismo é de fundamental importância perguntar sobre qual é e será a função da política bem como a possibilidade da revolução, como sempre se fez no passado? Parece serem estes os pontos críticos a serem enfrentados e como fez Vladmir Lenin, em 1900 ao término do cumprimento de 3 anos de pena na Sibéria, recolocar a pergunta: “Por onde começar?”.

            Com uma atenta visualização comparativa veremos que, antes dos avanços tecnológicos contemporâneos, a grande maioria da população estava envolvida em alguma forma de trabalho contratado e era representado por alguma categoria definida. Portanto, compunha a classe trabalhadora e, por meio de uma ou outra representação podia ser reunida para tomar decisões, realizar estudos e aprovar diretrizes e planos de luta. Na medida em que o processo digital invadiu, não apenas o processo produtivo, as coletividades foram dispersadas. Os indivíduos despachados para as suas casas passaram, desde este lugar, a se “categorizarem” dando função à força de trabalhado, mantendo-a como mercadoria e, apropriando-se do meio de produção digital, fizeram-no produzir outras mercadorias, com autonomia ou mesmo vinculados a alguma plataforma ou empresa.

            O trabalho, portanto, mudou, por que não mudaria a política e as formas organizativas? Parte dos trabalhadores, de todas as idades, passou a trabalhar em lugares e tempos incertos. No entanto, se por um lado a tecnologia contribui para a inserção nas atividades laborativas, desde as crianças aos mais idosos, ela também encarrega-se de reduzir os direitos sociais e trabalhistas e a qualidade dos serviços públicos.

            Se a humanidade somente se coloca as tarefas que consegue resolver, embora não se tenha ainda uma clara evidência das formas organizativas, permanecer com a ideia da manutenção da “estrutura sindical”, do “partido político cartorial” e dos “movimentos reivindicativos” ou na identificação de “esquerda e direita”, representaria, fazer política, mesmo estando nos dias atuais, como se estivéssemos ficado presos no século passado.

            O que temos de válido e insuperável enquanto perdurar o capitalismo? Em primeiro lugar, o processo revolucionário de sua superação. A exemplo do que fez a burguesia mercantilista ainda no seio do feudalismo, que se introduziu como uma nova classe entre os senhores e os servos, os trabalhadores autônomos estão, pela descentralização do trabalho e apropriação da tecnologia, manejando-a como meios de produção próprios, intrometem-se entre os patrões e os proletários clássicos. Significa a formação de uma nova força construidora de novas de produção e, apontam para novos desafios políticos.    

            Em segundo lugar temos como válido no processo de superação do capitalismo, a forma partidária de organização política. Essa forma partidária deve ser entendida como a “parte” consciente dessa sociedade a ser transformada. Nesse sentido, é ainda válido e aproveitável o conceito de “partido de quadros” que permeou os processos revolucionários anteriores com o nome de “Frente”, “Movimento”, “Organização” etc. É urgente que se crie esta referência organizativa, com a função de usar todos os recursos para estar presente em todos os lugares.

            Em terceiro lugar, é válida a afirmação do direito público sobre o direto privado. Na medida em que passamos a perceber que o público é mais do que um direito, é também um valor que permite o atendimento à coletividade, como deve ser o sistema digital e todas as redes partilhadas, a propriedade privada sobre os meios de produção passará a ser vista como um roubo e uma ofensa contra o bem comum. A exigência da socialização será inevitável.

            Em quarto lugar, valida é a forma insurrecional que direciona os esforços de todas as forças e indivíduos para o mesmo objetivo. Cada coletividade terá a sua função e o seu papel a cumprir. Para tanto é necessário que a “parte consciente” se faça presente em todos os lugares, postos de trabalho coletivos, familiares ou pessoais.

            Para que isso tudo seja possível é fundamental o estabelecimento de uma causa comum. Enquanto isso não estiver posto, haverá dispersão de entendimentos e de forças que se empenharão em responder aos dilemas sociais, com as mesmas medidas tomadas pelas forças contrárias. A ausência de uma proposição clara permite que as forças inimigas se utilizem das ideias distorcidas do comunismo para amedrontarem a população e serão bem sucedidos, pelo fato de ele não estar posto como a verdadeira e definitiva solução para os problemas da humanidade.

            Cabe aos indivíduos dispersos, formados para cumprirem determinadas tarefas no período anterior, se darem conta das mudanças e superações efetuadas na base econômica e social e, a partir disso, reunirem-se para estabelecer coletivamente as novas tarefas políticas.

                                                                                                          Ademar Bogo      

           

 

               

domingo, 16 de maio de 2021

O NADA A SER VENCIDO

            No latim, Nihil significa “nada”. O filósofo Nietzsche, no seu livro, “Vontade e potência” aprofundou esse tema por meio do título: “O niilismo vencido por ele mesmo”, ou seja, se quisermos atualizar o tema podemos traduzir para: “O nada vencido pelo nada”.

            Para Nietzsche, o niilismo era um fenômeno que podia representar um sintoma de força crescente como também de fraqueza crescente. Por sua vez, a tentativa de escapar do niilismo, sem inverter os antigos valores, produzia o efeito contrário. A referência posta em análise no texto do filósofo era a decadência européia. Dentre os “sinais de decadência” destacavam-se, a preguiça, a pobreza, o crime, o parasitismo, a sobrecarga, o esgotamento, a necessidade de estimulantes. Também, a inaptidão para a luta era um sinal de degenerescência e, o luxo, um dos primeiros instintos de decadência.

            Na medida em que vivemos no mesmo modo de produção capitalismo, com um Estado sustentador da “ordem e do progresso”, o fenômeno da decadência permanece como um processo arrasador, isto porque, os governos, na euforia de mostrar força, esquecem que não podem modificar “os antigos valores” propulsores de todas as anulações de qualquer alternativa positiva.

            O nada só pode oferecer o nada. Esta máxima nos remete a observar o governo atual que, além da brutalidade, ignorância e inabilidade nada tem a oferecer de bom para o país a não ser a própria decadência.

            O governo decadente, desde o início vem “nadificando” o pouco já existido. Iniciou pela entrega da soberania nacional, depois jogou fora o respeito e a admiração do Brasil perante as outras nações. Atacou com vontade destrutiva as reservas ambientais e a dignidade humana. Reduziu a nada as oportunidades de trabalho mergulhando nas profundezas da crise econômica. Arrasou os investimentos na saúde impondo a falta de vacinas além de com sua inabilidade política paralisar a produção das mesmas. Destruiu qualquer vestígio de ética governamental e asfixiou por meio do corte no orçamento, o funcionamento das universidades e os programas de financiamento na educação. Paralisou a reforma agrária etc., as únicas coisas que escaparam e estão em crescimento são: a corrupção, a indecência e o crime.

            A CPI em andamento no Senado, mal iniciou e já possui elementos suficientes para declarar o governo inepto e culpado por diversos crimes. Até o final deverá revelar que o mito de fato havia sido construído pelas mentes mentirosas e reproduzido nas mentes doentias, religiosas e alienadas e nas estruturas comportamentais perversas dos setores da classe média, amantes dos regimes ditatoriais, impostos pelas forças armadas também deslumbradas com a política, como se fosse uma atividade anexa aos quartéis.

            O nada que era revela-se o nada que é. Apenas traz para o cenário nacional o degradante perverso reprodutor da decadência social. Por outro lado, a nadificação ensina muito, como bem destacou Nietzsche: “Foi a degenerescência dos senhores e das classes dirigentes que causou a maior desordem da história. Sem os Césares romanos e a sociedade romana, a loucura do cristianismo não teria triunfado.”

            Evidentemente, as lições e os aprendizados servem para os dois lados. As forças retrogradas também aprendem com as forças progressistas no governo e por isso reagem. Mas é preciso aprender com os pequenos países e povos oprimidos, como é o caso da reação boliviana e da resistência palestina, pelo menos. Poderá ter existido na História da humanidade um povo com igual capacidade de resistência como o povo palestino, mas superior a ele não. Essa resistência nos mostra que, por mais potentes e aparelhados os inimigos da libertação, é possível enfrentá-los e reverter as tendências impostas tendo em vista a anulação da existência da oposição.

             Se as elites nada representam de útil aos trabalhadores e para as massas empobrecidas, nada têm também a oferecer, a não ser a própria decadência. Tivemos até aqui, o Brasil colônia, depois o Brasil império, a proclamação da República, o Estado novo, a Nova República  e, no último dia 13 de maio, recordamos que já são 133 anos da abolição e os descendentes dos escravizados continuam na miséria; as populações indígenas seguem sem garantias; os trabalhadores pobres  distantes da terra, sem casa e sem trabalho.

            O que se esperar de um governo que arma os grandes proprietários e grileiros e, das forças armadas, cujo ministro da defesa as representa, discursa em praça pública garantindo que irão defendê-los?

            Os perversos intimidam os pobres com a emergência do comunismo, enquanto duplicam o valor de seus salários, promovem banquetes com caríssimos ingredientes e riem da falta de vacina, do reduzido auxilio emergencial e dos mortos contaminados pelo vírus na pandemia.

            É preciso reagir como os cristãos famintos contra Nero que os prendia e os jogava na arena para serem comidos por leões, enquanto assistia rodeado de admiradores e malfeitores. Levantar-se como o povo palestino para mostrar aos fabricantes de armas que a rebeldia dos oprimidos não se dobra diante da ignorância dos opressores e, como o povo boliviano, indígena e resistente, senhor de sua própria História.

            Não basta destituir os que nada fazem para o povo, ou esperar que ele seja vencido por si mesmo, é preciso organizar-se para não deixá-los voltar a nada oferecer. O nada será totalmente vencido pelo nada, quando tomarmos de vez o destino da História em nossas mãos, fazendo com que, o tudo de bom favoreça ao tudo e a perversidade jamais volte a ser a lógica da política.

                                                                                              Ademar Bogo

domingo, 9 de maio de 2021

MEDIAÇÃO E FINALIDADE

            O movimento das contradições podemos encontrá-lo na consciência ou nas coisas. O alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, compreendeu, por esse movimento, que a dialética é a força que nos faz ir em direção ao “ser outro”. O outro pode estar fora como dentro de mim mesmo. É aquele que me faz perder as ilusões criadas ou me assegura que é possível de ser mais do que já sou.

            Para o filósofo alemão, a dialética tem a sua existência realizada em três momentos: primeiro, “O ser em si”; segundo, “o ser outro ou que está fora de si” e, terceiro, é o momento do “retorno ou superação de si”. Esse processo pode ser aplicado em uma semente que morre e sai de si para virar árvore, cujo ciclo, lhe permite, depois da planta crescida voltar a ser semente; como também acontece na formação, evolução e transformação das ideias e do conhecimento.

            É evidente que o “momento dialético” não se forma sozinho e nem tampouco se move puramente pela força da contradição, outras duas categorias ajudam a fazer o processo ganhar sua própria consistência que se denominam de, “mediação” e “finalidade”. No exemplo acima, a mediação está representada pelos próprios elementos da natureza. O ser outro da semente não é ela mesma, mas a árvore que se serve também como finalidade de ser o que virá a ser e também de repetir-se enquanto origem na na suaperação da quantidade e da qualidade das sementes.

            Dito isto, voltemo-nos para a realidade social e, por nossa própria conta e risco, levemos aquele pensamento filosófico, elaborado para outros fins, mas que aqui pode nos fazer entender como são adequadas as comparações em um mundo em que as mediações fingem apartarem-se das finalidades.

            Os fatos corriqueiros mostram o “ser outro” quando notamos que a realidade social mudou, mas não mostram as mediações e as finalidades intencionadas. Tomemos como exemplo o fato conhecido e descrito desde o ano 65 de nossa Era, quando Nero incendiou Roma e culpou os cristãos. Utilizou-se ele das mediações do fogo, do poder político, da cidade e dos cristãos para alcançar a finalidade de esconder a crise econômica ameaçante de pôr o império romano abaixo e, a crise política criada pela nobreza que, desconfiada, fugiu para os campos tomando as terras da Europa para organizar os feudos, base do que viria a ser o modo de produção feudal alguns séculos depois.

            O “ser outro” dos fatos ou tendências, nos faz compreender que “se algo é isso aqui”, só pode vir a ser “isso ali”.  No Brasil, vemos cotidianamente a reedição do “ser outro” pelas tragédias e figuras, como o já denominado “reencarnado” Bolsonero. Ele também usa como mediação, o fogo e as armas de fogo; o poder, as favelas, os “cristãos” e os comunistas; as mentiras e ameaças de golpe para criar fatos e esconder as suas finalidades.

            Em síntese, a combinação das diversas mediações usadas pode ser reduzida em uma principal, capaz de abrigar todas as outras e denominar-se de “violência”. A violência acompanhada de outras tantas formas de crueldades, medeia os processo destrutivos e vingativos desde a formação do Brasil.

            A violência contra a natureza travestida de progresso elegeu como mediações o Estado, o fogo, as armas para abater os índios, a escravização, as máquinas, o agrotóxicos, o boi e a grilagem das terras públicas. Os noticiários mostram em suas reportagens, qual é a finalidade do incêndio criminoso da floresta amazônica desde o ano passado. Nos lugares por onde o fogo passou, os pretensos proprietários pedem a regularização de 150 mil novas propriedades. A terra torna-se um “ser outro” desflorestada, e o incendiário um criminoso proprietário.

            Agora os olhares assustados do mundo inteiro se voltam para o Brasil observando duas linhas de violência e atentados contra a vida: uma implementada pelo alastramento da Covi-19 e a outra pela chacina no Rio de Janeiro que vitimou 29 pessoas.

            A mediação criminosa usada no agravamento da pandemia é o negacionismo científico, mas, por trás rastejam as finalidades que vão desde os objetivos “cloroquinicos” até a satisfação da estrutura comportamental perversa do presidente, que sente prazer em causar sofrimento à população. O sujeito da política torna-se o ser outro do crime e, “o governo do povo, pelo povo e para o povo”,sem a mudança de postura, torna-se um governo do crime, pelo crime e para o crime.

            É nesse sentido que se explica a chacina na Comunidade do Jacarezinho, no Rio de janeiro. A violência como mediação presente no movimento das contradições, ganha diferentes formas, mas têm a mesma natureza, na aprovação governamental do roubo de madeira na Amazônia, o incentivo ao incêndio das florestas, a provocação de aglomerações sem o uso de máscara, a prescrição da cloroquina como tratamento precoce e a ação da polícia miliciana vitimando a tiros três dezenas de pessoas.

Especificamente, a tragédia efetivada nesta semana na Comunidade do jacarezinho no Rio de Janeiro, vêm na esteira de criar um “fato outro” que, como o incêndio de Roma, esconde a crise econômica, mas, principalmente, distrair a atenção sobre a CPI encarregada de investigar os crimes do governo em relação à pandemia. As execuções foram encomendadas, premeditadas e objetivadas.

            Mas há algo maior a ser enfrentado. O Rio de Janeiro, tornou-se o laboratório do poder miliciano que, aos poucos, ganhará acento nos principais pontos geográficos do território nacional para estabelecer uma ordem paralela ao Estado.  Estudiosos no assunto revelam que as milícias já controlam 25% dos bairros no Rio de Janeiro e essa iniciativa de matança em massa, assinando friamente “cristãos” nas próprias casas, aponta para que, da mesma forma, sejam mortos os comunistas tão odiados e difamados pelo “gabinete do ódio” que já manifestou o seu desejo de eliminar pelo menos trinta mil militantes de esquerda.

            Há, portanto, dentro da contradição principal o principal aspecto da contradição que é o ter um parte do poder policial agindo contra a segurança e a ordem pública. A desinformação e manipulação da população faz parte da estratégia de estabelecer, em nome da democracia, a execução sem a pena de morte estabelecida. A criminalização verbal feita contra os comunistas, atribuindo esta marca contra qualquer desafeto equiparando-nos a bandidos desalmados, constitui a naturalização da implantação do ordenamento do crime organizado.

A incapacidade de interpretação dos fatos e a aceitação dos mesmos com naturalidade são assustadoras. O neoliberalsimo que mostra sinais de um moribundo terminal deixa uma perversa herança de ter educado para as mais novas gerações a praticarem o principio de “cada um por si”.

            Diante de tudo isto é preciso pensar que não se trata de uma simples onda neonazista que, como uma nuvem fria abate-se sobre as nações para depois ir embora. Trata-se de uma construção estrutural que representa a decadência da civilização capitalista a favor do estado de barbárie governado pelo crime organizado. A violência marginal e policial, principalmente com o incentivo do armamento da população, tende a dinamizar as relações sociais e vir a controlar serviços e outras atividades empresarias e governamentais.

            A superação do capitalismo é a única saída civilizatória. O ser outro a surgir desses escombros, deverá ser construído com o esforço da organização política e a elevação do nível de consciência das massas. Para isso é preciso superar todas as limitações. O crime remodelou as suas formas organizativas, recolocou suas forças e se afirmou sobre outras bases sociais e de massas, inserindo-se profundamente na política; enfrentar essas forças com a ingenuidade e as fraquezas de ontem é pedir para sermos eliminados amanhã.

                                                                                                          Ademar Bogo