domingo, 27 de outubro de 2019

INFORMAÇÃO E AFIRMAÇÃO


 
Há leituras que acompanham as análises de conjuntura que recuperam com certos deslizes a metodologia de Karl Marx, feita na Introdução à critica da economia política de 1857/58 e, adaptam àquele entendimento ao gosto do conteúdo das ideias que querem afirmar. Atribuem a Marx e não a Hegel a ideia de que o real é resultante do pensamento e não o contrário. O método que consiste elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira pela qual o pensamento se apropria do concreto e o reproduz como concreto pensado, é a conclusão de Marx. Isto ocorre porque o concreto, antes de ser concreto pensando é concreto real.
Talvez a confusão de tudo esteja um pouco acima, quando, no mesmo parágrafo Marx considerou que, “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é a unidade do diverso”. As determinações não são das ideias, mas do próprio movimento do concreto.
É de suma importância, em qualquer análise, entender a expressão conceitual do “processo”. O real concreto existe independente das ideias. Mesmo não sendo compreendido, ele está lá. As ideias cumprem o papel de abstraírem do real concreto os aspectos que o constituem, por isso, descobre-se que o concreto é o que é por causa das múltiplas determinações ocorridas e, por meio do estudo tornam-se o concreto pensado.
Mas a realidade pode ser mudada? Pode. O filósofo Tcheco,  Karel Kosik ao escrever a “dialética do concreto” apontou para isso, ao dizer que “a realidade pode ser mudada de modo revolucionário... só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós”. Deveríamos aqui fazer uma longa discussão para considerar se o “concreto” tem a mesma composição da “realidade”, mas não é o caso. Apenas digamos que o concreto é a representação de um composto todo estruturado que segue no processo de superações constantes, enquanto que, a realidade, sem deixar de representar também o real concreto, inclui também os aspectos transitórios e passageiros, como por exemplo, a colocação das forças, as reações populares contra as políticas governamentais etc., que, num momento seguinte se desfazem ou mudam de comportamento.
De acordo com esse entendimento, se o concreto é algo dado pela estrutura, cujo processo segue determinada ordem como é o caso das leis tendenciais do capitalismo, a relação entre capital e o Estado capitalista etc., a realidade pode ser produzida de acordo com as reações das forças políticas e sociais, quando o próprio movimento das contradições reúne necessidades, ideias e perspectivas.
Há um elemento que está subentendido na análise de Marx, que parece sempre escapar: o princípio da totalidade. Na medida em que um aspecto particular começa a ser visualizado e, sobre ele jogam-se todas as energias, os demais aspectos da composição do real concreto e da realidade em geral, quase sempre, com maior relevância, deixam de colaborar para que de fato haja uma ascensão em direção à superação, pelas múltiplas determinações do real concreto, ou seja, pelas mudanças estruturais na economia e no funcionamento do Estado capitalista.
Há quem queira insinuar que, o reforço das particularidades e não da totalidade, na política, fazem parte do jogo das táticas, mas que, no fundo, todos têm em mente os objetivos estratégicos e, portanto, é apenas uma questão de interpretação.
Sem ter vinculo algum com os propósitos aqui demonstrados, apelamos para a Filosofia da Linguagem e destacamos a distinção feita por Ludwig Wittgenstein, em relação à diferença entre a “informação” e a “afirmação”.  A pergunta formulada por ele diz tudo: Qual é pois a diferença entre a informação ou afirmação, “cinco lajotas” e o comando “cinco lajotas!”? Como podemos ver, tanto na formulação quanto na expressão das ideias, a intencionalidade das palavras faz toda a diferença. Aproveitando do apoio destas duas categorias, façamos uma relação com os aspectos conjunturais.
Primeiramente tomemos os limites da tática da “informação”. Tendo em vista que os governantes e estrategistas da direita, inverteram o princípio maquiavélico aplicando o mal a “conta-gotas” e as medidas do bem, “de uma só vez”, ou seja, raramente; as “notícias” sobre as maldades, emitidas, seja pela direita ou pela esquerda, não passam de informações que vão sendo recebidas e esquecidas. Por se tratar de um aspecto apenas da realidade, como por exemplo, a reforma da previdência, na medida em que ela foi aprovada, deixou de ser noticiada e outro tema, “a reforma administrativa” passou a ser noticiado. Logo, o impacto criado sobre a consciência de cada um é semelhante à informação passiva recebida por qualquer indivíduo desinteressado sobre a informação de “cinco lajotas”. 
Por outro lado, quando a notícia traz consigo uma ordem, como essa que solicita que alguém traga “cinco lajotas!”, expressa uma convocação para que se proceda uma ação. Podemos considerar que temos a necessidade concreta que, por meio da ideia, ou seja, da abstração, desperta uma reação e o indivíduo age porque a informação tornou-se uma  afirmação.
De pronto, poderíamos sugestionar que, transportada para a política bastaria afirmar algo, que teríamos uma reação imediata. Se considerarmos que o ajudante de pedreiro age quando ouve a ordem de “cinco lajotas!”, é porque ele está organizado para fazer aquela atividade indicada, mas, na política, o cidadão comum não está. Então a ordem cai no vazio. Por outro lado, temos uma segunda limitação que é de onde vem a voz ouvida. A ordem de “cinco lajotas!” emitida por alguém, fora do canteiro de obras, não causa reação alguma. E, uma terceira limitação, em se tratando de coletividades e não de indivíduos, nem todas as “ordens” motivam a todos; como esta de “cinco lajotas!”, somente mobiliza o servente, enquanto que os demais trabalhadores daquela obra, nada farão com a ordem dada.
De maneira geral, o que temos em nossa frente são alguns limites: primeiro, o recebimento de informação corriqueira que não desencadeia nenhuma reação organizativa. Segundo, a prática de contestar uma “afirmação” de cada vez  de acordo como aparecem e assim que elas deixam de ser informadas, caem no esquecimento. Terceiro, complementa a prática de pegar a afirmação em particular, a incapacidade de relacioná-la, pela antevisão do que virá pela frente nas políticas encadeadas, que o capital e o Estado impõem; dessa forma quem dita os temas a entrarem na conjuntura é a classe dominante. Em quarto lugar, as vozes que ordenam “cinco lajotas!” não são reconhecidas, porque não apontam uma sequência abrangente e estratégica de superação. Quinto, não tendo claro o que propor, misturam-se sentimentos de afeto e de saudade como motivações para o retorno ao que foi desconstruído.
O que significa a política do afeto e da saudade? Grosso modo é a reunião da maioria das forças em torno da reinvindicação “Lula livre”, apenas.  Sem desprezarmos a importância simbólica do que Lula representa, nas ideias que passeiam sobre o concreto estrutural e a realidade conjuntural é o desejo da volta ao governo neo-desenvolvimentista e, portanto, mais capitalismo. Não há um horizonte possível para o socialismo. A palavra de ordem, “Lula livre”, para além de ser uma ordem que atinge limitadamente a população, facilita para que a classe dominante, pela tática de impor uma medida de cada vez, reformule as políticas que deseja.
A falta de amplitude da visão estratégica leva a um desgaste e perda de esforços fundamentais, contabilizando, no calendário histórico, um novo bloco de derrotas das “insurreições sociais”. Para quem, pelo estudo conhece a História da insurreição alemã de 1919, facilmente perceberá que o que ocorreu no Equador e agora ocorre no Chile, só não se transformam em insurreições revolucionárias, porque não se constituiu a tempo o comando revolucionário com autoridade para emitirem a ordem correta. Quando essa onda chegar ao Brasil, lembremo-nos das palavras de Bertoldo Brecht: “É preciso assumir o comando”. Sem isto, os levantes são como o rio que transborda e logo tende a voltar a descansar no próprio leito.
                                                                      
                                                                     Ademar Bogo                                                                       
   
   

domingo, 20 de outubro de 2019

ADEQUADO E INADEQUADO


            
            Karl Marx quando se pôs a pensar a relação entre o concreto e o abstrato, buscou considerar no método da produção do conhecimento, a relação entre as ideias e as ações. Para ele, “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações”. O concreto aparece, portanto, no pensamento, como síntese ou como resultado. É o abstrato ou a abstração que se encarrega de manejar a busca do vir a ser daquilo que ainda não é explicitamente e, por isso, ainda se debate em nossa mente em meio às amarras das contradições. De outro modo, o filósofo Baruch Spinoza, ao tratar sobre o “adequado” e o “inadequado”, destacou que a nossa mente, algumas vezes age, outras vezes padece.
            Nesse sentido, ao reunirmos os dois pensamentos, vemos que o concreto em geral ainda não é concreto em particular, porque a mente humana não concluiu o processo das múltiplas determinações, mas, assim que a em nossa mente se formarem humana as ideias adequadas agiremos com maior eficiência, no entanto, se as ideias forem inadequadas, padeceremos. A lição que podemos tirar até aqui, é a de que precisamos adequar as ideias para que elas possam, pelas múltiplas determinações, arrumarem concretamente aquilo que está desarrumado no abstrato.
            As ideias inadequadas também podem ser consideradas como “ideias confusas”. Elas atrapalham o bom andamento do raciocínio e, não apenas sofrem porque não conseguem irem além do que já são como também fazem sofrer aqueles que pensam inadequadamente.
            Para darmos um passo à frente em nossa hermenêutica filosófica, tomemos como referência a ideia de “poder”. Como o concreto por meio de múltiplas determinações abstratas vem a ser concreto? Ou seja, a concretude do poder, após múltiplas abstrações vem a ser poder de fato com ideias adequadas?
            Como nada ocorre fora de um processo, causas e efeitos se intercedem reiniciando permanentemente as novas superações, temos que considerar, para chegarmos a uma síntese concreta do poder que queremos ter. Quanto a isso, há um novo elemento a ser incluído que é o da “posição” em que cada força se coloca.
            Em política sempre e em qualquer circunstância, deve-se levar em consideração a existência das forças que, aqui resumimos em três possibilidades: na primeira, cada força pode colocar-se na ponta extrema da linha de cada pólo, conformando assim, a relação antagônica; na segunda, ambas se colocam no meio da linha que leva a cada um dos pólos e conformam as posições que costumeiramente denominados de situação e oposição; e, na terceira, podemos ver uma força situada na ponta extrema da linha de um dos pólos, enquanto a outra força opta por vir a colocar-se próxima ao centro. Em que posição, em sua avaliação, estão colocadas as forças políticas hoje no Brasil? Para responder esta pergunta precisamos incluir outros dois conceitos: o de “obrigação” e o de “destino”.
            Quando tomamos a referência de poder, consideramos as relações econômicas e políticas e, facilmente percebemos que são relações da obra burguesa que, pela produção e mercantilização superou a economia feudal e, pela formação do Estado capitalista, suplantou a ordem política e jurídica da mesma estrutura arcaica. Diante disso, é da “obrigação” da burguesia até hoje, reunir todas as forças dominantes para pensarem e se dedicarem às relações que lhes garanta o poder, caso não o façam, não apenas o modo de produção que implementaram desaparecerá como desaparecerão  também dos os burgueses.
            Do outro lado “as forças de esquerda” geralmente colocam o poder como algo “estrategicamente distante”, algo como uma das possibilidades do destino histórico, contando que isso nem será certo nem incerto; não há previsão de tempo. Sendo assim, o concreto, por falta das múltiplas determinações das ideias, que, por sinal, quase sempre são inadequadas, nunca vem a ter a sua síntese, prolongando sempre mais o sofrimento.
            Se voltarmos as nossas atenções para o espectro partidário, vemos que na origem, o conceito de “partido” diz respeito à constituição de uma parte da sociedade que se coloca a favor do todo, enquanto que a “facção” também tem a forma de parte, no entanto, esta luta a favor de si mesma e contra as soluções para todos.
            No Brasil, sem dispensar as honráveis exceções, grosso modo, temos dois partidos que chegaram ao governo e passarão para a História como referências antagônicas: o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Social Liberal (PSL). O primeiro, pela sua capacidade educativa e pela capacidade de reunir em torno de si, por um período razoável, a grande maioria das forças populares, sindicais, religiosas e políticas; e, o segundo, pela incapacidade de não ser um “partido”, no sentido de não ter unidade, representatividade orgânica e idoneidade moral, constituindo-se como uma facção que luta contra o todo da sociedade e contra o próprio país. Mas, qual é no fundo a principal inadequação? É que o PT não existe mais como perspectiva revolucionária, mas o PSL está atuante e ativo como um vulcão  prestes à uma irrupção desastrosa, contra si e contra todos
            É no degrau de cima da escada que estão os maiores riscos e que as ideias inadequadas das análises pioram o sofrimento, porque não conseguem entendê-lo nem evitá-lo. Achar que as denuncias explodirão a facção e com ela explodida provocará o impedimento do presidente da República, parece ser uma inadequação da visão daqueles que se colocam, não no pólo extremo para enfrentar as classes dominantes pela busca do poder de forma mais afirmativa, mas daqueles que apenas torcem para que as forças extremadas percam importância e que elas também venham mais próximo do centro para juntas realizarem as disputas eleitorais.
            Há um elemento continuamente desconsiderado pelas ideias inadequada, o de que o presidente da República “atua” ou pertencia a dois partidos, o PSL pelo qual se elegeu e as Forças Armadas, que muitos achavam que o colocariam “nos eixos” e nada disso aconteceu.
            Se a dialética ainda for considerada nas análises reais e se para cada ação temos uma reação, a realidade nos mostra que estamos mais próximos de um novo golpe institucional como já vimos sinais no Peru e atualmente no Chile, do que o impedimento do presidente. Os recados há tempo vêem sendo enviados ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal é bom não ignorá-los.
            De outro lado, é preciso espantar as ideias e as opções inadequadas. Em termos políticos o poder foi acolhido pelas forças extremadas da direita enquanto que as forças de esquerda ao mesmo tempo que não percebem o pior acreditam ingenuamente que o poder governamental voltará para as suas mãos, com as decisões favoráveis do Supremo Tribunal Federal e a passividade do processo eleitoral. A lição já foi apreendida, que não há processo vitorioso e duradouro sem povo.

                                                                                                          Ademar Bogo   
              

domingo, 13 de outubro de 2019

A REAÇÃO IMORAL DOS FRACOS



O filósofo Nietzsche quando escreveu o livro “A genealogia da moral”, quis demonstrar que há épocas em que se torna necessário inverter todos os valores para enfrentar a vontade do poder. São a vontade do poder e a moral dominante que dão vida ao super-homem: amoral, tirano, egoísta, perverso que, somente ele e seus adoradores pensam ter o direito a viver.
Julgando-se o poderoso estar acima dos demais seres e da natureza, olha para o homem comum com a mesma indiferença que o homem comum olha para o macaco. Essa escala hierárquica leva sempre ao exagero da prepotência que podemos considerá-la como sendo o fator determinante para que os fracos se inspirem e busquem as mudanças na ordem moral do poder dominante.
A rebelião “imoral” dos escravos começa quando o ódio produz valores e motiva a reação contra aquilo que é tido como certo pela classe dominante. Isso porque, a moral dominante nasce de uma triunfante afirmação de si mesma. E, tudo o que o dominado faz, fere os interesses dominantes, por isso, mesmo estando certo é visto como imoral.  A “imoralidade” dos dominados nasce da oposição à moral dominante. Os explorados ao afirmarem por meio do “não” transformam esse gesto em um ato criador da própria moral. Isto significa que a moral dos explorados sempre necessitou do seu oposto para entrar em ação, logo, a moral dos explorados, vista como imoral pelos dominadores, é produto da reação provocada por uma ação anterior.
Essa relação funciona como a clandestinidade e a ilegalidade. O indivíduo não diz de si e nem quer ser excluído da sociedade. É o poder dominante que declara por meio da legalidade quem deve passar para a ilegalidade.
A reação dos explorados não ocorre de imediato. Ela surgirá após o crescimento espontâneo da moral dos dominantes que avança sem se preocupar com o seu oposto, pois, a si mesmos se bastam, principalmente porque se consideram bons, famosos e felizes. Estão tão cientes da superioridade que, quando erram fingem desconhecer os próprios atos e desdenham da população como se esta nada representasse. É o desdém que vai transformando a caricatura aristocrata num monstro insuportável.
Os juízos de valor moral da classe dominante e seus aliados, em nossos dias, são forjados nos interesses particulares e na inversão da força dos direitos privados sobre os direitos públicos. Pela reforma dos direitos públicos os dominadores reformam o Estado produzindo leis que afirmem o ordenamento da administração pública. A lei se coloca acima do Estado e sustenta os algozes da sociedade que passam a governar, em nome da moralidade, com os limites que eles mesmos impõem. Feito isto, eles reformam também a legislação que regulamenta as atividades privadas. Assim, a lei se coloca acima dos cidadãos comuns e abaixo dos administradores que a utilizam como um chicote para açoitarem aqueles que desobedecem.
No entanto, como se houvesse um círculo intermediário de homens que ao nascerem foram imunizados contra os açoites do Estado, toda a legislação age para beneficiá-los. São esses aproveitadores que querem liberdade de aquisição, por isso precisam de leis que lhes entregue as florestas, os minérios, o sistema de ensino e de saúde etc. É dessa forma que os homens de negócio ganham importância mais do que os homens comuns e, juntos com os governantes criam a própria moral, com os valores apropriados para cada situação.
Se é a moral dominante quem cria a imoralidade, significa que a ela é dado o poder de julgar e condenar os gestos com os quais discorda. Inverte o princípio grego e coloca o útil acima do belo; dessa forma faze nascer a censura, o controle da liberdade de expressão e o desrespeito para com a verdade. Mentir, para a classe dominante, passa a ser um ato de utilidade pública. A desinformação torna-se uma tática de autodefesa.
Por todos os ângulos que se olhe, o totalitarismo é mau. A sua perversidade não está apenas nos atos de violência praticados contra todas as formas de vida, mas, também no apego e favorecimento aos seus adeptos, em detrimento da grande maioria que passa despercebida pelas forças dominantes.
Somente a “imoralidade” dos fracos pode criar a verdadeira moral, isto porque, esta que é imposta pelas ações dominantes é a falsa moral. A reação é sempre uma resposta a ação que ofende os direitos sociais. Contra a moralidade dos ricos reage-se com a “imoralidade” dos pobres, para fazer com que, a imoralidade dos ricos deixe de ofender a moralidade dos pobres.
                                                                                              Ademar Bogo            
  

domingo, 6 de outubro de 2019

DESVELAMENTO OPORTUNO


                      
            Para os gregos, o desvelamento era o aparecimento da verdade (Alethéia). Era o momento em que se descobria aquilo que estava oculto ou obscurecido no tempo presente. Era como se um foco de luz batesse sobre o objeto procurado no escuro. Posteriormente, muitos foram os filósofos que trataram do tema da verdade em vista de contribuírem com os esclarecimentos daquilo que era visto como mito ou deficiência compreensiva das pessoas comuns.
            Adorno e Horkheimer escreveram a “Dialética do esclarecimento” para mostrar que o progresso do conhecimento humano sempre objetivou livrar a humanidade do medo por meio do esclarecimento. Para tanto, defenderam que a humanidade sempre que precisou esclarecer teve que atacar e dissolver os mitos. Afirmaram categoricamente esses dois autores que, “a superioridade do homem está no saber” e, “a técnica é a essência desse saber”, por meio dela pode-se conhecer a natureza, incluindo os oceanos e o infinito do espaço, bem como os próprios homens.
            Um enunciado afirmativo parece perdido em meio à elaboração dos longos parágrafos escritos por Adorno e Horkheimer, quando dizem que: “Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos”. Podemos simplificar ainda mais e dizer que, somente a dureza da verdade pode destruir a “conversa mole” que nos é apresentada como justificativa, para aquilo que ainda virá a ser esclarecido.
            O esclarecimento por ser portador do conhecimento verdadeiro, atua sobre as coisas e os mitos, diferentemente de como age o ditador contra os homens quando quer manipulá-los mas se iguala quando quer exterminá-los. “O homem de ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las”. Quando compreendemos a verdade, desvelamos e eliminamos as dúvidas, portanto, a mentira não tem mais sustentação porque, ao ser esclarecida tende a fortalecer a verdade que seguirá esclarecendo e aperfeiçoando a si mesma.
            Aplicando esse raciocínio à História recente do Brasil, facilmente desvelamos os interesses daqueles que, agarrados em mitos, como o da corrupção, comportaram-se, como faziam os antigos gregos que, quando queriam afirmar alguma coisa obscura, criavam um deus que não passava de ser a imagem e semelhança do que eram os próprios criadores. Aos poucos vemos que, os caçadores de corruptos são ainda mais corruptos e desonestos que os acusados de serem.
            Para que a mentira se afirmasse em meio às disputas interesseiras, era preciso punir e desmoralizar alguém. Posteriormente, mesmo que se prove a inocência e a idoneidade de indivíduos e entidades, nada será como antes, mas se os objetivos particulares foram alcançados, para eles está tudo bem. Os capitalistas sabem que as táticas nestes tempos de crises, são como as corridas de tiro curto, começam e já acabam.
            O processo político brasileiro culminou com um golpe institucional, levando à cassação da presidente da República. Assaltado o poder governamental, preparou-se a transição por meio do voto, para que as eleições presidenciais de 2018 trouxessem de volta os militares e a extrema direita ao poder. Mas a intenção real não era apenas esta. Para o capital especulativo era necessário que se instalasse um governo que, além de entregar o restante do petróleo nacional, abrisse o caminho para reiniciar de maneira destrutiva a corrida do ouro.
            A crise mundial do capitalismo trouxe para os capitalistas, principalmente para aqueles que vivem do capital especulativo, a preocupação com os Estados devedores não conseguirem garantir os compromissos do pagamentos dos juros. Para diminuir os riscos das perdas, optaram para que parte desses “créditos” fossem aplicados em algo mais consistente. Esse “algo” consistente não pode ser o processo produtivo, porque, com a perspectiva das economias crescerem em média 2% nos próximos anos, seria desvantajoso e, além disso, não há mais espaço para a evolução do consumo com a atual concentração de renda.
Diante dos riscos eminentes, os capitalistas da especulação tomaram duas medidas: a) obrigar os Estados a gastarem menos, para garantirem o pagamento das dívidas, por isso o apego às reformas dentre elas as que eliminam os diretos sociais; b) entregar o que sobra das riquezas naturais, dentre elas o ouro, cujas reservas principais estão situadas nos territórios indígenas da Amazônia.
Com um governo minimamente humanitário não seria possível empreender essas duas medidas, isto porque, a primeira fere os direitos dos trabalhadores, idosos, estudantes, mulheres etc.; a segunda, porque a nova corrida do ouro na Amazônia precisa ser feita com extrema crueldade e violência contra a natureza e os índios que com ela convivem.
A repetição pelo governo atual do que foram as “Entradas e bandeiras” organizadas por volta de 1670, sob o comando de Domingos Jorge Velho é o que a civilização testemunhará com lágrimas nos olhos. O “bandeirante sanguinário” encarregado de caçar índios e negros, destruir os seus redutos de resistência e explorar o ouro nas várias regiões do Brasil, com seu facão e espingardas primitivas, ficará tão reduzido perante o potencial bélico, as máquinas modernas e o apoio militar, político e jurídico que ganharão as novas “bandeiras”.
Portanto, a previsão do grau de violência que será praticada contra os povos indígenas, agora no século XXI, será ainda mais perversa daquela praticada no passado. Na atualidade, além de não ter mais para onde fugir, o uso do fogo tornou-se uma arma letal, pois, ao destruírem a biodiversidade destruirão também o habitat das populações milenares que, serão obrigadas a cederem os seus territórios para a devastação total. Ataque semelhante, também contra os povos indígenas, foi realizado no século XIX nos Estados Unidos da América, quando milhões de índios foram exterminados por meio de epidemias provocadas e tiros de armas de fogo. Os motivos foram os mesmos que agora aqui estão sendo revelados: terras férteis e as minas de ouro existentes no subsolo dos territórios indígenas. Sem as florestas, destruídas pelo fogo, os índios brasileiros terão apenas parte da sociedade branca para defendê-los se esta desencantar-se dos mitos.
Por outro lado, a humanidade toda, com a crise do capitalismo, está sobre a linha divisória, a um passo do socialismo e a um palmo da barbárie. O medo do socialismo expresso nos discursos dos dominantes mostra que ele é a alternativa possível forjada entre as próprias contradições e fraquezas do capitalismo. Mas, pela desconstrução partidária e das formas organizativas, a sociedade perde cada vez mais a sua integração com a perspectiva revolucionária, a ética e os valores. Diante do enfraquecimento da ordem capitalista, a tendência de entrarmos em um estado profundo de barbárie não está descartado.
 Se tivermos como vencedora a alternativa socialista, o comando será estruturado pelas forças conscientes que saberão desarmar o progresso capitalista pela distribuição da riqueza já produzida. Se a segunda alternativa for vencedora, comandará o processo destrutivo, as milícias privadas que cobrarão impostos para garantirem a ordem da barbárie.
Consideramos, portanto, que esses são os dois projetos ora em vigor: o socialismo e a barbárie. O capitalismo senil não tem mais forças para o reequilíbrio social, por isso ele mesmo beneficia-se temporariamente do estado de barbárie, delegando a grupos representantes da mesma, para que assumam a estrutura de poder do Estado também decadente. Disputar os governos por meio das eleições, mantendo o atual modelo de concentração de riqueza, não impedirá que o estado de barbárie se aprofunde.  
A luta pela defesa dos índios e do socialismo, nunca foi tão importante como está sendo nesta fase terminal de destrutividade geral. Se no passado os índios tinham as florestas como abrigo e proteção, os operários e assalariados tinham no crescimento temporário das economias, a possibilidade de arranjarem emprego. Agora, o mesmo fogo que destrói as flores abrindo o caminho para a chegada dos garimpeiros, o gado e os soldados das forças armadas, é o fogo das crises permanentes da destruição dos empregos, da queima dos direitos sociais e, provavelmente também dos direitos políticos, a matança humana em campo aberto pelas milícias e policiais vingativos e amedrontados.
Eles já agem como “se não houvesse o amanhã”, nós que temos saudades do futuro, temos que sobreviver, lutar e seguir em frente.
                                                                       Ademar Bogo