quinta-feira, 25 de abril de 2019

OS LAÇOS DOS CADARÇOS


        
É correto afirmar que há relação estreita entre teoria e prática, mas também é verdadeiro que há uma prática “sem teoria” ou ingênua e, por sua vez, pode haver também uma teoria sem prática. A teoria com prática, pode se dar em dois níveis: sendo a primeira, aquela que fazemos cotidianamente e que se dá por meio do fenômeno da relação entre a consciência e o objeto, ou mais propriamente, aquela que nos faz aprender pelo contato com a aparência. A segunda diz respeito à pesquisa e a experimentação que, por meio dos métodos corretos, perfura-se a aparência em busca do conhecimento da essência.
Na prática, é bem verdade que não conhecemos todas as aparências. Primeiro  porque não as vemos  nem as sentimos na totalidade e, segundo, porque, as vemos disfarçadas ou de forma inversa do que são ou representam. Por exemplo, a aparência do Estado, para a maioria dos funcionários públicos e demais trabalhadores que prezam pelos direitos trabalhistas; aos camponeses que reinvindicam a reforma agrária, escola, créditos etc.; os estudantes que esperam pelo crédito estudantil ou àqueles que recebem os recursos mensais do “bolsa família”,  ele é uma estrutura imprescindível e a torcida é que seja cada vez mais eficiente para garantir esses direitos.
                        Há uma dificuldade enorme com as leituras da realidade que fazemos para separarmos na prática as visões metafísicas  das visões dialéticas ou apartar o subjetivismo daquilo que é científico. Nesse sentido é importante reafirmar que a ação tem a sua importância, mas, porque então há sujeitos que lutam e têm clareza dos inimigos coletivos e não possuem a sabedoria de diferenciar a contradição principal da secundária? A mudança conjuntural da mudança estrutural? A reforma da revolução? A relação entre causa e efeito e, se quisermos, os aspectos idealistas que levam a acreditar mais na vontade de Deus, da justiça e do processo eleitoral, do que na força da organização e da ruptura com a ordem?
Na atualidade, cada vez mais sentimos que há uma articulação intrínseca entre a dimensão econômica e a dimensão ideológica que, juntas, atribuem a responsabilidade das reformas institucionais no plano político, para tirar o capitalismo da crise. Nesse caso sofremos um ataque cotidiano da força das ideias. Mas seriam apenas, como diriam Marx e Engels, as ideias dominantes da classe dominante dessa época que nos dominam?
Em relação a esse assunto, o próprio Engels, no prefácio para a publicação, na Inglaterra, do texto, Do socialismo utópico ao socialismo científico, de 1882, apontou a necessidade das rupturas com a tradição, em três sentidos: a primeira, com a influência religiosa; a segunda, com a crença no bi-partidarismo que, no caso da Inglaterra, os operários acreditavam na possibilidade de se valerem do Partido Liberal, e, a terceira ruptura, deveria ser com a tradição sectária, herdada dos primeiros ensaios de atuação independente que levava os sindicatos a criarem os próprios fura-greves. Ou seja, nenhum desses elementos estão propriamente presos à classe “materialmente dominante”. Não estaria Engels nos dizendo que, “o conjunto das ideias dominantes” são produzidas também pelas crenças, forças partidárias atrasadas e organizações dos próprios  trabalhadores dominados?
De outro modo, os autores do Manifesto do Partido Comunista de 1848, já haviam se deparado com as concepções socialistas equivocadas: “O socialismo feudal”; “O socialismo pequeno-burguês”;  “O verdadeiro socialismo”e as rejeitaram. Para livrarem-se dessa herança, denominaram de, “Manifesto do partido comunista” o programa que haviam escrito para a Liga dos Comunistas, recentemente organizada, mas que tinha como finalidade marcar posição na época das “reformas liberais” efetuadas na Europa naquele período.
De verdade, olhando para tais elaborações, podemos perceber que estamos com os pés trocados, amarrados pelos cadarços, pé esquerdo nosso com o pé direito da classe dominante e, com isso a marcha que segue em frente não sai da relação entre situação e oposição. Ou seja, se eles se movem um passo, nós nos movemos um passo; se eles param para um entendimento entre si, nós esperamos que eles voltem a se moverem para nos movermos também.
Essa marcha de contorno de um quarteirão, nunca será grande porque ela começa e termina no mesmo lugar do ponto frio da institucionalidade. Não vemos que o que nos prende atados às forças da direita são apenas os laços dos cadarços. A saída é, na próxima esquina, não dobrar à direita, mas seguir em frente.É no engano da curva que as forças se desequilibram.

sábado, 20 de abril de 2019

INSTINTOS PUNITIVOS



Freud nos disse que há três profissões difíceis: educar, curar e governar. As razões para tais dificuldades são múltiplas, dentre elas, a necessidade de estabelecer relações entre sujeitos que, dominados pelos instintos agressivos contra as pessoas, fazem com que a civilização para se preservar precise impor limites e manter as manifestações dos homens sob controle. Portanto, a inclinação para a agressão constitui em qualquer indivíduo, uma disposição instintiva original e auto-subsistente que aparece naturalmente.
 Para corroborar com a teoria freudiana, tomemos os instintos vingativos, ligados aos comportamentos individuais e sociais, relacionando-os com o mundo do Direito e da justiça, para compreendermos os instintos punitivos contra as pessoas. A primeira disposição instintiva para a agressão está relacionada ao direito do direito justo que o acusado tem. No entanto, essa forma de pensar não corresponde ao entendimento das vitimas ou de seu círculo social mais próximo, isto porque, se dependesse deles, haveria linchamento direto e não o julgamento. A segunda disposição de agressão instintiva refere-se ao condenado que, por direito, deve pagar a dívida com a sociedade na prisão e depois reintegrar-se a ela. Nessa direção, já descrevemos em outros estudos que, quem gosta do presidiário é a família, a sociedade em geral, torce para que ele permaneça na prisão nas piores condições possíveis e nunca mais saia de lá.
            Essa “pobreza psicológica” diria Freud, têm origem na formação do comportamento cultural que veio se formando desde a antiguidade, quando mal se entendia a criança “como gente” e que devia ser educada em casa com palmadas. Com o avanço da civilização, melhoraram as garantias jurídicas e, no processo educativo, alguns desses instintos foram sublimados, mas não eliminados, podem voltar a qualquer momento como instintos violentos na casa em que cada indivíduo vive. Mas, é evidente que, pela vontade de muitos pais, governantes e maus educadores, jamais largariam a vara e a palmatória.
A “pobreza psicológica” imagina que, mesmo existindo diversas leis coercitivas, pode prosseguir a violência contra a mulher, como se a relação afetiva tivesse o seu braço afetivo ligado à ignorância e à brutalidade; contra índios, negros, pobres e LGBTTI. como se fossem seres não merecedores da vida em sociedade.
A tradição da “pobreza psicológica” tem também na violência política a sua transmissão na crise sistêmica, Nero culpou os primeiros cristãos; na inquisição foram culpados os hereges; os liberais em 1848 culparam Karl Marx e os socialistas; Hitler culpou os judeus; as ditaduras nas Américas a partir da década de 1950  culparam os comunistas e, na atualidade, os novos golpistas subservientes ao império, culpam os socialistas, Paulo Freire, os professores e os petistas.
            A presença dos instintos punitivos que compõem a “pobreza psicológica” das forças de direita, faz surgir a motivação para que seja instaurado um processo judicial, mesmo sem provas. Após a condenação, convocam a força policial para que ela dê as lições merecidas por meio do uso legítimo da força. Para a parte que goza de consciência e sentimentos de solidariedade, é um martírio infindável; para a parte que goza da “pobreza psicológica”, surge uma mistura de desejo e de prazer de ver ou saber que um desafeto ou qualquer sujeito fora do circulo de relações pessoais, esteja preso ou morto.
            No momento político atual, a extrema crise do capitalismo, faz com que as atenções se voltem contra os socialistas e não contra não contra a concentração da riqueza, da exploração produtiva e do capital especulativo. Para as forças progressistas e socialistas, bastante desgastadas, pelo espírito tolerante em não fazer uso do “instinto punitivo” contra a concentração da riqueza quando estiveram no governo, a saída para a crise do capitalismo é o socialismo. No entanto, para a maioria da população, com a ajuda de parte significativa dos que votaram nas forças de esquerda nas últimas eleições é a força militar. Os dados mostram que, enquanto os militares têm 66% de aceitação, os partidos políticos possuem apenas 7% de apoio da opinião pública.
A leitura da realidade feita pelos olhos da população influenciada ou não pela mídia oficial é de que, para “acertar o Brasil” precisa usar a justiça, a polícia e a violência, dando aos que são contra, o mesmo tratamento dado aos presidiários. Foi sem dúvida nenhuma, a formação do “instinto punitivo” criado pela “pobreza psicológica” das forças de direita que, a partir de 2014, causou os dois fenômenos em vigor: o reencontro com os militares e o desencontro com as forças socialistas que, se mantém, no Brasil, com um grau significativo de admiração, devido ao carisma do ex-presidente Lula.
            Para as forças honestas e resistentes é de bom tom compreender que, a curto prazo, o “instinto punitivo” de direita  e as forças que as representam, levam vantagem e, os socialistas estão em desvantagem para implementarem o “instinto punitivo” contra a concentração da riqueza e não contra as pessoas.
            Por outro lado, a maturidade política e a consciência criativa indicam que a vantagem imediata não significa solução à vista para a crise, nem uma vitória estratégica para quem está no governo. Para que os militares no governo, eleitos pelo sentimento punitivo contra os socialistas, manterem a popularidade, precisam fazer crescer a economia, o que não será possível em prazo algum. Logo, para sustentarem-se no poder, terão que fazer uso do “instinto punitivo” contra as massas e generalizar a repressão. E, a repressão sem admiração, não perdura por muito tempo. A repressão que os admiradores das forças militares querem é essa que, as seis horas da manhã a policia Federal esteja na porta da casa de um de seus desafetos e que, imediatamente, o ato se transforme em notícia nas redes sociais.
            Sendo que as alternativas da sustentação da ordem pelo crescimento econômico é pouco provável e, pela repressão generalizada é inviável, resta para os defensores do golpismo,o fracasso. Olhando bem de perto, o capitalismo não tem mais fôlego de renovação nos parâmetros terrestres e jamais poderá gerar um novo “bem-estar social” para agradar as massas. As novas fábricas que poderão vir a ser instaladas para produzirem mercadorias, serão as fabricas de armas que não elevam a qualidade de vida de ninguém. Mesmo com a probabilidade de chegarmos em 2030 com 9 bilhões de habitantes sobre a terra, não há mais lugar para o crescimento do consumo e, sem isto, não há milagres, o processo produtivo estará submetido aos movimentos do capital especulativo. Pelo lado da repressão, também não há futuro, a população odeia os ditadores, principalmente os que não possuem carisma algum para exercerem o comando da política.
            Nesse sentido, mesmo estando temporariamente desorientadas, as forças socialistas têm o tempo a seu favor. Precisam apenas recompor a autoridade perdida e mostrar por meio da agitação e da propaganda, que o “instinto punitivo” não deve se voltar contra as pessoas, mas contra a riqueza concentrada. A única solução dos problemas sociais está na distribuição da riqueza por meio da ação que organizará um sistema que impeça de que ela venha novamente a se concentrar.
            Para isso é preciso desapaixonar-se das disputas eleitorais, mesmo que essa tática venha a ser utilizada, mas ela não possui força suficiente para inverter a ordem econômica. Isto remete a ter que pensar como reconstruir a identidade socialista, que se preocupe com a humanização e não com a truculência e a força. Recompor o programa, a moral, e desenvolver a consciência socialista, são as tarefas do momento.
 Enquanto segue o tempo de poucas vitórias, o esforço deve ser o de construir diques que esvaziem as cheias da popularidade enganadora do Estado policial, combinado com o desgaste político internacional. Façamos esse favor às forças de direita que lutam contra o fantasma do socialismo, que mesmo decaído é maior que a competência rasa daqueles que hoje governam.
            A democracia para as forças de direita é como um utensílio: serve enquanto dele se servem; em caso de risco, ela mesma é a primeira a romper com a ordem dominante como fez em 2016. Não é certo que esse instinto punitivo fechará o Congresso Nacional, mas já colocaram uma tranca na porta do poder judiciário que há tempos sustenta os pilares do Estado policial. Mas, se há poderes que se formam a favor da ordem, como este que vemos se fortalecer a cada dia; há outros que se formam contra a ordem baseados nas forças populares que escolhem o caminho da contestação propositiva. Os golpista que ora ceifam os campos, descuidados com as palhas secas que espalham sobe a terra, podem ser surpreendidos por uma fagulha acesa, como por exemplo, uma das 83 balas incandescentes disparadas contra o carro de uma família a passeio no Rio de Janeiro, e iniciar assim um incêndio incontrolável.
                                                                                                                      Ademar Bogo

domingo, 14 de abril de 2019

PROPOSTAS ENCANTADORAS



Não podemos negar que vivemos presos a intensas disputas de projetos. Os projetos são mais do que intenções, estão encarnados nos dilemas e nas preocupações de cada época, tanto no sentido da manutenção quanto no sentido da superação da ordem.
            O projeto dos proprietários dos meios de produção, das terras, dos Bancos etc., tem a hegemonia das relações sociais de produção e da especulação. Para tanto, os capitalistas seguem as leis tendenciais do capitalismo situadas na exploração, na acumulação, na concentração e na expansão do capital. Os praticantes dessas tendências seguem o capital  e o fazem funcionar por essas orientações, desde a pequena até a grande empresa imperialista. Isso quer dizer que, por exemplo, se na tendência à exploração, quem comanda é a lei da mais-valia, nas relações de produção capitalista, não há ninguém que possa anulá-la. Nem mesmo aqueles governos tidos como progressistas que, além de tudo, enganam os trabalhadores quando dizem que “estão desenvolvendo outro projeto”. O projeto é o mesmo que as vezes chega a funcionar "sem governo".
            Diante disso é que podemos refletir sobre a natureza dos projetos que repentinamente se apresentam como se fossem programas de governo dentro do modo de produção capitalista, assim classificados: neoliberal ou desenvolvimentista; conservador ou progressista; entreguista ou nacionalista; totalitário ou populista e, às vezes, nada com nada; ou seja, há governos que simplesmente não possuem programa ou melhor, possuem o programa “do nada” nadificado, mas funciona. Funciona porque o nada não é a ausência de tudo, é sim a presença do nada que se deixa conduzir pelas leis tendenciais do capitalismo. Então, um governo paralisado não se pode dizer que seja uma poesia, mas faz parte da arte de desmontagem do que há para divulgar o que havia.
            No entanto, em se tratando dos modos de produção, só há de fato dois projetos: o capitalista e o da transição socialista. O projeto dos capitalistas é certo que existe e, diariamente os que compram e os que vendem força de trabalho, acordam cedo para fazê-lo funcionar. Mas, e o dos trabalhadores existe? Levantamos todos os dias para construí-lo ou caímos na interpretação equivocada do conceito de estratégia, que ela somente se realiza a “longo prazo”? Se assim é, significa que aquilo que dizemos ser, “disputa de projetos” é,em grande parte, a oposição que fazemos ao governo do nada, em processo de nadificação, cujo presidente declara nada entender de economia, mas segue verdadeiramente as leis tendenciais do capitalismo, com privatizações, negação de direitos e abertura de fronteiras para a devastação total do país.
            É nessa linha divisória que fica à mostra a espessura dos pilares que sustentam a formação da consciência das classes. Do lado dos capitalistas, que se voltam para o sistema de ensino, o querem funcionando pelas diretrizes da “Indústria Cultural” com acento na formação técnica; ao formar os jovens para o mercado, estão reproduzindo a força de trabalho necessária e fortalecendo a coluna vertebral do seu projeto capitalista. Para esconder que o capitalismo está em crise, renovam o ódio contra Marx e os marxistas, como se os culpados pelas crises econômicas fossem os que dizem a verdade.
No entanto, do lado dos trabalhadores, a juventude não se prepara para fortalecer a coluna vertebral do seu projeto de classe. Quem deveria fazer esse papel, seria a organização política partidária que integraria cada indivíduo, por meio de um programa, com metas e prazos. Não temos, por isso vacilamos. Nem formamos para o mercado, nem para o socialismo.
            O projeto político maior é o da transição para o socialismo, para isto, num primeiro momento se luta, se educa, se forma as consciências, se estruturam os poderes para, num segundo momento, sem deixar de fazer tudo o que se faz no primeiro momento, tomar posse do poder maior por meio da ruptura da ordem. Isso não tem nada demais e nem está fora da naturalidade dos projetos. As forças de direita fizeram tudo igual e romperam a ordem em 2016, quando construíram um consenso para interromper  o mandato da presidenta eleita, tentam da mesma forma romper a ordem na Venezuela e, em nosso país, agora, a “ordem reconstruída” está cambaleante que funciona com certa liberdade ainda de expressão, mas, não nas ações.
            É real a insatisfação de Narciso com a sua própria imagem, tanto nas forças de direita quanto nas forças descontentes, com razoável consciência critica. A razão está em que nenhum dos lados consegue apresentar inovações que imponham o fim da dispersão. Quem descobrir isso por primeiro conduzirá o país pelas próximas décadas.
Pela direita, a “inovação” está apontado para o velho que, pelo argumento da força, satisfaz os interesses do império, mas desagrada os aliados internos. Pela esquerda, ocorre a mesma coisa, apela-se ainda para o passado e ainda não aprendeu a falar a nova língua. Como alertou Marx, sobre o principiante que aprende um novo idioma, “só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela”.
Já é tempo de fazer a avaliação definitiva. Gastam-se horas de análise, páginas escritas, mensagens de voz, filmagens e comunicações ao vivo, com a velha linguagem, comunicando aquilo que a velha pauta da direita encaminha para a discussão a cada semana. Jamais se viu um governo sem programa “desprogramar” também todas as forças que, na fúria da alucinada critica, se esquecem que, como as moscas, rodeiam o mesmo ponto.
            O projeto político aparece como os preparativos de uma festa a ser realizada em um prazo relativamente próximo com as multidões empenhadas nos preparativos, realizando item por item daquilo que terá serventia. Por isso, uma coisa pequena, faltando, na data estabelecida, provocará um grande estrago na programação. É tempo da elaboração de um novo programa, com nova linguagem, compreensível, com didática simplificada, com propostas reais e encantadoras.
                                                                                                                                                                                                                                                                                               Ademar Bogo
                                                                                             

domingo, 7 de abril de 2019

OS DILEMAS DO MITO


Compreende-se por mito, uma narração que afirma a criação de algo estranho feito de qualquer natureza, e que, além de si próprio, origina também certos efeitos que ganham muita força enquanto não são esclarecidos.
            São as palavras  ditas para um determinado público que formam o mito. Por isso, ele se afirma pela oralidade vinda do narrador que, com sua própria voz, cria expectativas incontroláveis no modo de pensar. No entanto, o mito só faz história enquanto se fizer temer ou admirar pelas crendices produzidas nas consciências ingênuas ou interesseiras. Para tanto, precisa que a mesma versão sobre os seus poderes seja recontada muitíssimas vezes e, se possível, sempre com acréscimos que o torne ainda mais temido ou admirado.
            Por sua vez, o mito enfrenta dois grandes dilemas para se garantir existindo: o esclarecimento da verdade e a depreciação de seu poder. O primeiro diz respeito aos avanços dos conhecimentos. O conhecimento é a força da verdade que esvazia o mito de seu conteúdo promissor ou ameaçador. O segundo problema diz à depreciação do poder do mito que não consegue praticar aquilo que a narrativa prometeu. Neste caso, as palavras vão perdendo a rigidez. A força de intimidação não encontra as ações correspondentes para alimentar a grandiosidade imaginada e, aos poucos, os atributos positivos tornam-se defeitos.
             Ao perceber que a sua força converte-se em fraqueza, mais fraca que a força dos próprios criadores e mais desmoralizada que a imagem dos oponentes difamados, o mito depara-se com a verdade e, uma profunda dúvida penetra o seu crânio esvaziado: "será que me fizeram preparado para essa função?"
            Produzido pela oralidade o mito não gosta de nada escrito, para não ter nenhum programa a seguir. Ele é então uma ideologia mentirosa. Mente para esconder a sua incapacidade de pensar e agir. Quando pensa, erra; quando age, mais destrói do que constrói.  
            Um mito no passado era mais duradouro do que um mito do presente. Na Antiga Grécia todas as coisas e seres existiam por causa das intimidades entre os deuses e as pessoas que chegavam a ter relações sexuais entre si. Agora não, os deuses foram substituídos pela figura loira do imperador e as relações não são imaginárias, mas reais. Por outro lado, internamente, a homoafetividade, a educação, o desarmamento, os radares, a aposentadoria, a urna eletrônica e, até a soberania nacional, passaram ser coisas e relações incômodas, que o mito procura desestruturar com a sua esferográfica.      
            O mito do presente também vive da própria oralidade sua e de seus ajudantes. Se muito falam pouco escrevem e, quando escrevem brigam com as palavras. Confundem “cheque” com “xeque”. Acertam quando oferecem os cheques preenchidos para pagarem a dívida pública, liberar emendas e outros pagamentos emendados. Erram quando dão ultimatos, “xeque mate” nos direitos sociais.
            O mito não sabe separar o certo do errado; usa os próprios critérios para as classificações. Acha que a ditadura militar é a nova política e, a velha política é a democracia, sendo que, na História da humanidade os impérios interventores sempre foram os mais duradouros.
            Não tendo escrita, o mito valoriza os palavrões e despreza a educação. Para ele, como as labaredas que saem das narinas do dragão, as armas de fogo educam e defendem. O professor deve pôr sobre a mesa um livro e um revólver, que é para os alunos se sentirem seguros da violência. O revólver é a “nova palmatória”, que não bate, mas intimida e, se precisar, atira para matar.
            Como o diabo que teme a água benta, o mito teme as ideias criticas, porque, com as ideias vêm as ações. As ideias formam as consciências e as ações derrubam os pedestais.Surgem então os dilemas do mito: insurgir-se ou implodir-se. Para insurgir-se, precisa produzir atos de violência e ignorância. Para implodir-se precisa admitir que de fato foi uma ilusão que nasceu para morrer rapidamente.
            Mitologia é uma invenção perigosa do passado recriada no presente. O mito sempre é uma ilusão acordada que desperta com uma promessa verbal encantadora.
            De outro lado, é preciso acreditar na força iluminada que desvenda as impossibilidades de uma mentira dar a luz a um libertador. Como disse o filósofo Nietzsche, “Ontem a Lua, ao nascer, pareceu-me que ia dar a luz a um Sol...”. Não deu, porque o Sol já havia nascido e, com a sua luz iluminou o caminho a seguir derretendo o mito feito pelas  ilusões mentirosas.
                                                                                  Ademar Bogo