domingo, 25 de setembro de 2022

NÓS E ELES

                                                                          

            Há, na atualidade, com a decadência da visão política, uma falsa compreensão, de que não se pode estabelecer a referência de lados, nem contra ou a favor, como se as disputas fossem encenações e as classes sociais,  um velho conceito perdido no passado, pondo em seu lugar o patriotismo e a consensualidade.

            Já é evidente e, se percebe nitidamente, que a classe dominante burguesa ligada ao capital produtivo e condutora da Revolução Francesa, perdeu a capacidade de dominação para lumpemburguesia, arauta do capital especulativo, parasitário que se movimenta nas entranhas do Estado capitalista, pensado pelo filósofo Hegel para, como sujeito social, ser o garantidor da liberdade nesta sociedade desigual.

            Antes de Hegel, vigorou a filosofia de Immanuel Kant, criador da ideia da razão pura individualizada, como referência de afirmação, inclusive da Paz mundial. Para ele a razão era o sujeito social, isto porque, se em todos os lugares do mundo existem indivíduos pensantes, bastaria que um pensamento bom fosse formulado e todos o praticariam. Daí uma de suas máximas era: “Nunca devo proceder de outra maneira senão de tal sorte que eu possa também querer que a minha máxima se torne uma lei universal”. A burguesia ascendente queria leis universais, porque, não tinha liberdade para transportar seus produtos de um lado para outro. Queria imposto único e liberdade para ir e vir sem barreiras impedimentos dos monarcas e senhores de terras.

            O egoísmo burguês, fortalecido pela visão kantiana, pareceu rejuvenescer, quando Hegel, também alemão, em 1821, um pouco antes da realização das revoluções liberais na Europa, apresentou a ideia de que a razão era apenas o entendimento da importância sobre liberdade e a vontade, mas, para realiza-las precisariam do Estado capitalista e elaborarem outro sistema jurídico capaz de combater o Direito natural. Sendo as leis justas, livre seria aquele que as respeitasse, por isso o “reino da liberdade” estaria no Estado e garantido para todos.

            Os burgueses organizados e dispostos a tornarem-se a classe dominante, convocaram as massas populares e impulsionaram as revoluções liberais de 1848. Marx e Engels foram contemporâneos dessas revoluções e, inclusive, neste mesmo ano publicaram o Manifesto do partido Comunista, porque tinham entendido que a razão kantiana era um alento para o individualismo, pois, o capitalismo era um processo em andamento coroado de conflitos e a paz mundial, jamais seria alcançada enquanto persistissem as desigualdades sociais locais e entre as nações. Por outro lado, o Estado não poderia ser o garantidor da liberdade como pensava Hegel, porque, no capitalismo, as vontades das pessoas exploradas não se realizam; o próprio sistema jurídico legitima a exploração da força-de-trabalho e dá mais garantias para a propriedade privada do que para as pessoas.

            Mas eis que alcançamos um momento na História, o qual parece ter misturado as concepções e já não sabemos se defendemos o Estado que garante o reino da liberdade de exploração do capital ou se defendemos os burgueses investidores em produção, porque eles perderam o poder de convocação, como fizeram os burgueses liberais em 1848,  para a lumpemburguesia da especulação, das milicias e do crime organizado, presente nos negócios públicos.

            Além de tudo, nos deparamos com o processo eleitoral angustioso. Parece que falar em “nos” e “eles”, por um lado, significa esquecer o passado e, por outro uma divisão entre os bons e os maus. Esses pronomes pessoais, quando pronunciados no caso reto, representam o sujeito do enunciado. Sujeito, sabemos que é quem faz ou sofre a ação. Logo, ao dizermos, “nós lutamos por dias melhores”, tem tudo a ver, porque além de combinarmos corretamente o sujeito, o verbo e o complemento, ainda revelamos que fazemos ações contra os diversos impedimentos. No entanto, todos falam em dias melhores e, para chegar ao ponto decisivo, parece que o “entre nós”, nos dividimos em dois lados, um para combater o “eles maus” do presente, e o outro para conluiamos  com “eles bons” do passado.

            De volta a Kant iremos encontrar os burgueses individualistas inseguros que querem a paz e desejam a ordem moral, com a qual o fazer por dever será suficiente para alcançarmos o bem comum. Por outro lado, se tomarmos a filosofia de Hegel como roteiro, encontraremos os burgueses ansiosos por defenderem o Estado, a Constituição, as leis presentes nos códigos e as instituições, simplesmente essas referências constituem a garantia da liberdade e a democracia no estado de direito.

            Se ousarmos vir um pouco mais aquém do passado e desejarmos retomar a luta de classes, a superação da liberdade burguesa com a reelaboração das leis, a superação do Estado e um novo direcionamento da propriedade privada etc., encontraremos Marx, mas perderemos todos os burgueses aliados e grande parte do “nós” que já não acredita no socialismo.

Diante disso é compreensível porque setores da burguesia, sem forças para defenderem-se da lumpemburguesia e incapazes de abrirem uma terceira via, juntam-se a “nós”, para ajuda-los a salvar a ordem que lhe faz tanto bem. Certamente é porque aqui encontram um “nós” que, em termos de ideias já tornou eles.  Ou seja, filosoficamente eles querem que voltemos ao passado, valorizando os contratualistas, Kant e Hegel, mas, politicamente desejam que não voltemos a Marx pois teriam um fim assustador. E “nós”, para não assustá-los, não falamos de Marx e agarramos o Estado, as leis, os códigos, a moral burguesa etc. e nos tornamos guardiões dessas mediações da dominação.

            Nesse sentido, a lumpemburguesia, em busca de impor a hegemonia política, não combate os burgueses da produção que afetivamente os rejeitam,  nem os trabalhadores, as massas populares desorganizadas e os cristãos das seitas religiosas; temem porém, os comunistas por serem os únicos capazes de fazerem a leitura correta da História. Mas não apenas, atacam e transformam em comunistas aqueles que abertamente defendem o Estado de direito como garantidor da liberdade.

            A lumpemburguesia não tem consistência filosófica. Não prega o “mundo da liberdade” hegeliano, não vê nas leis a garantia da ordem e nem no Estado capitalista a importância da harmonia entre os poderes. Ao contrário, odeia Kant e também Hegel, porque não querem a paz mundial e nem tampouco aceitam que as leis garantam a liberdade de exploração pois a força de dominação para eles está na especulação, na violência e na alienação. Sendo assim, as leis e as instituições impedem a realização das vontades pessoais, por isso só veem um caminho para a satisfação das mesmas, o totalitarismo com regimes ditatoriais. Sem leis nem poderes institucionais podem, de um momento para outro, devastarem as florestas, entrarem em terras indígenas, metralharem favelas; prenderem militantes contrários; liberalizarem as armas; tornarem secretas informações perigosas; venderem e negociarem o patrimônio público etc.

            O mundo sendo governado pela  lumpemburguesia e aliados, é o pior dos mundos. No entanto, estaremos enganados se acharmos que a burguesia do capital produtivo, compradora de força-de-trabalho e acumuladora de capital pela extração da mais-valia, defensora da democracia representativa e do estado de direito, seja a nossa aliada. Seria o mesmo que alguém fosse jogado em uma alcateia e, para se salvar tentasse fazer amizade com uma parte dos lobos famintos.  

            Por acreditarmos que Marx e Engels estão com a razão, embora estamos em desvantagem para efetiva-la, terminamos com o último parágrafo do Manifesto; “Os comunistas detestam dissimular as suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que os seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem existente. Que as classes dominantes tremam à ideia de uma revolução comunista! Nela os proletários nada têm a perder a não ser os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar”.

            A palavra de ordem final “Proletários de todos os países, uni-vos!”, é a consciência da verdadeira união a ser proposta, do contrário, o “nós” de pronome pessoal direto, como sujeitos da História, nos convertemos em “eles”, como pronome pessoal oblíquo, força auxiliar dos sujeitos burgueses que tudo fazem para manter a ordem e a reprodução das desigualdades sociais.

                                                                                                           Ademar Bogo

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