domingo, 30 de agosto de 2020

MANSIDÃO E BRUTALIDADE

                O italiano Antônio Gramsci, vivido na primeira metade do século vinte, elaborou e discorreu mesmo na cadeia, sobre diversos temas que, vez em quando ressurgem atualizados como este da “Espontaneidade e direção consciente”.

            Para ele “a espontaneidade pura não existe”, isto porque, ela não funciona como na mecânica. No entanto, sendo o movimento espontâneo uma característica das classes subalternas, o problema maior que ele traz em si é a falta de uma “direção consciente”. Há muitíssimas formas de direção encarnadas na espontaneidade das massas, mas nenhuma delas ultrapassa o nível da “ciência popular”, ou se quisermos do “senso comum”; e é essa concepção de mundo que, segundo Gramsci, se opõe ao marxismo.

            Essa forma de fazer política equipara-se ao nível da visão histórica do folclore e da feitiçaria convertidas em “ciência política”; hoje podemos dizer ela se reduziu                                                   às mensagens escritas nas redes sociais. Isto também, segundo Gramsci é uma “teratologia”, ou seja,  uma especialidade médica que estuda as anomalias da gravidez. Mas a palavra nos inspira a convertê-la em “teatrologia intelectual”, que seria o estudo da performance teatral dos contextos conjunturais. Podemos citar como exemplo, a oscilação para cima que teve ultimamente a aprovação do governo. E o que faz a “teatrologia intelectual” contrária? Estuda o por que dessa performance de direita das massas? A resposta é curta. Porque não existe espontaneidade consciente. Para que haja consciência de massa de esquerda e, mais ainda, revolucionária, precisa existir uma ou várias direções conscientes e revolucionárias que estejam vinculadas, por ideias, propostas, objetivos, ações etc., e não apenas programas assistenciais como aqueles que sustentaram o “lulismo”, até o dia que o neo-fascismo ofereceu mais em dinheiro. 

            Diante disso é possível dizer que, estando as direções “folclóricas”  no nível do senso comum, enquanto as reações espontâneas de descontentamento não acontecem, as mesmas direções tidas como “conscientes” ficam inoperante, pois, não sabem o que fazer senão “teatralizar” por meio de eventos políticos, mas que, pela repetição, tornam-se folclóricos e  ficam cada vez menos atrativos, como é o caso das eleições. No passado elas empolgavam as massas porque havia alguma recompensa imediata; agora, com as proibições de doações, os currais eleitorais foram transferidos para o sistema virtual, no qual o esforço reside no movimento dos contrários da informação: afirmar e desmentir.

            A espera da espontaneidade, sem uma direção consciente e capaz de orientar as massas, é o mesmo que parar e esperar pela própria morte. Um exemplo bastante ilustrativo pode ser rememorado através das mobilizações de 2013 que ocorreram no Brasil. É verdade que, infladas pela mídia de direita e dirigida pelas redes sociais e grupos neofascistas, conseguiram afastar os partidos e os movimentos organizados dos postos de comando. É uma lição a ser aprendida. A espontaneidade contribui para ambos os lados, direta e esquerda, quando uma direção consciente se vincula, desde que as reações apontem para recompensas ainda maiores daquelas imaginadas pela “ciência popular”.

            Nisso, parece que,os “artistas da teatralização” que se utilizam das ideias de Gramsci para fortalecer a concepção da “revolução pacífica”, pela via eleitoral, esquecem de, como ele, fazerem a distinção  entre elementos puramente “ideológicos” e elementos da “ação prática”, entre a sustentação da espontaneidade como “método” de transformação histórica, e os politiqueiros que sustentam a espontaneidade como forma de fazer política no nível do senso comum.

            Para os marxistas, em toda a História do capitalismo, as crises econômicas são inevitáveis. Elas são criadas no próprio movimento de ascensão do capital e, por isso, ninguém pode evitá-las. A orientação materialista histórica sempre foi para que as forças revolucionárias estejam preparadas para estes momentos de acasos.

            No intrigante momento em que vivemos, no qual confluem para o mesmo lugar, a mansidão das massas e a brutalidade das autoridades governamentais, as forças de oposição encontram-se alijadas do processo. Por quê?  Só há um processo que alimenta em si o movimento dialético de afirmação e desgaste. Não existe outro processo em vias de avolumar-se para estabelecer um enfrentamento entre os elementos contrários no movimento da totalidade da política. Ou seja, se há contradições elas estão polarizadas no próprio governo e não entre o governo e uma reação contrária de esquerda.

            Confiando no desgaste político do governo, devido ao uso de métodos que prezam pela “brutalidade vingativa”, e o descaso pela vida, as forças de esquerda apoiam a agenda “humanitária”, como foi o caso da ajuda emergencial, no entanto, cruza os braços em termos e não se move para elevar o nível de consciência e organização das massas, que ainda guardam nos recantos da memória, a dinâmica da troca assistencial do coronelismo, com um agravante, de que, se antes as práticas coronelistas controlavam as massas em redutos locais, agora, essa base ampliou-se para um controle coronelista federal.

            Iludem-se aqueles que, pelo PT ter governado por 13 anos o país, que isso seja, na memória social coletiva, um “patrimônio histórico” indestrutível. Esquecer de considerar que esse patrimônio foi construído sobre os ombros frágil de, um agora idoso líder chamado Lula, próximo a sair de cena, fará cair o patamar da aceitação de outros indivíduos que não sejam da elite coronelista ou representante dela, é desconsiderar o movimento dialético para trás.

            A brutalidade coronelística nunca deixou de ser um método eficiente de fazer política no Brasil. Por intermédio da memória da figura paterna enérgica que se estendeu para o poder judiciário, vinculado a coação jurídica e policial sobre os grandes contingentes populacionais empobrecidos e perseguidos cotidianamente, a voz de uma autoridade forte, cria um sentimento dúbio que mistura temor e admiração. Foi assim que os militares voltaram ao governo, não apenas por seus méritos, mas também por conivência das forças de esquerda que confiaram no Estado, no emprego e nos programas assistenciais, como eixos da condução política. Estes são os mesmos eixos utilizados pelos capitalistas e malfeitores que hoje governam o país.

            Sendo assim, ao tirar de alguém as mediações daquilo que ele sabe fazer, torna-se inútil. Na família ninguém gosta de pais inúteis, assim como as massas não gostam de inúteis na política. É o que vemos acontecendo com as esquerdas fora do governo, estão ficando cada vez mais inutilizadas e, dento dos governos, concorrem para saber quem é mais eficiente no embelezamento do capitalismo. Ou seja, aonde foi colocada a perspectiva de transformação social?

            Por fim, mansidão e truculência na política e na vida social, não deveriam, mas podem não ser contraditórias e sim complementares. Culturalmente, o patriarcalismo impôs o poder paterno; o machismo o poder do macho; o capital o poder de exploração; o Estado o poder das leis; a religião o poder moral; o racismo o poder do branco e, o coronelismo, o poder político. E os defensores da política do senso comum querem desmanchar tudo isso com as esparsas disputas eleitorais?

            Conscientemente devemos acreditar que, a espontaneidade que virá pela onda de reação das massas, não será favorável às esquerdas se elas não assumirem agora uma posição que aponte para a superação do sistema que gera a miséria, a fome, a doença, o analfabetismo, o autoritarismo, o fascismo, o racismo, a exploração e a dominação capitalista. Emprego e política pública são oferecimentos do descaramento daqueles que querem manter a ordem manejando o Estado, por meio das disputas eleitorais. Faz parte da capacidade de uma elite de esquerda que se profissionalizou alimentando as ideias do senso comum. Essas ideias e essas forças devem desaparecer, se o marxismo voltar a ser a verdadeira ciência dos movimentos revolucionários a serem com ela construído.  

                                                                       Ademar Bogo

domingo, 23 de agosto de 2020

CRISE OU DERROTA DA RAZÃO


            O filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677), ao tratar “A servidão Humana ou a força dos afetos”, procurou dar atenção à razão, mostrando que, “quem vive sob a condução da razão se esforça, tanto quanto pode, por retribuir com amor ou generosidade, o ódio, a ira, o desprezo  etc., de um outro para com ele”.

            Do ponto de vista da bondade, o filósofo nos mostrar que, quem se conduz racionalmente se esforça para não ser atingido pelos afetos contrários, e poderíamos chamá-los de “irracionais”. Esse entendimento, de forma simplória, nos apresenta um retrato da civilização contemporânea, que nos levaria associar as duas denominações: “crise da razão” ou “derrota da razão”.

            O período mais intenso do embate sobre a razão ocorreu deu na modernidade. Os acertos feitos por Immanuel Kant pareciam ter pacificado o conflito entre os racionalistas e os empiristas, mas, na medida em que a ciência e a tecnologia ganharam expressão no âmbito da civilização capitalista, o próprio emprego da razão, ao penetrar em todos os espaços, serviu mais à competição e a concorrência do que aos cuidados e a formação da consciência social, trazendo para os dias atuais, ondas de reações, irracionais, imorais e anti-sociais.

            Na contramão do que pensou Spinoza, a civilização capitalista construiu relações que tornou vencedores aqueles que não se conduzem puramente pela razão, mas sim, pela alienação. Portanto, aqueles que deveriam retribuir generosidade para os outros que agem com ódio, ira e desprezo, encontram-se exprimidos entre as paredes do senso comum cooptado e a exaltação da tecnologia.  

            A superação repentina pela globalização das relações estruturadas, orientadas pelas ideias bibliográficas, formadas pelas diferentes concepções conservadoras, progressistas e revolucionárias, trouxe enormes dificuldades para o aprofundamento do conhecimento. As redes sociais hoje manobram, como diria o filósofo Hegel, os “espíritos”, fazendo que o tempos de trabalho e de estudo sejam engolidos por um só tempo,  o da superficialidade da informação.

            O pensamento crítico, de reflexões profundas, diante das multidões mal informadas, mas seguras de que “estão por dentro”, desfez-se das categorias estruturantes das análises e voltou-se para esclarecer os efeitos, em grande medida, fantasiados pela ideologia das classes dominantes que atuam criando ondas de hegemonia por meio de conceitos que visam alimentar a falsa guerra do bom contra o mal.

            Dominada pela “democracia representativa”, a humanidade, sob o domínio das redes sociais e da própria mídia tradicional, passou a acreditar no oposto de que essa suposta conquista se opõe ao “totalitarismo”. Aristóteles, na Antiga Grécia já havia igualado as duas formas de governo como sendo a mesma coisa, “o governo de um” e “o governo de um grupo”.

            A crise ou a derrota da razão levou ao domínio das forças políticas e sociais obrigando-as a se colocarem diante do mesmo comando, formado pelo capital produtivo, mas, principalmente pelo capital especulativo. São esses dois senhores que, atordoados pelas sequentes crises, manejam as servidões, em parte impositiva e, em maior parte voluntária.

            Diante dos avanços tecnológicos, nos encontramos atordoados pelo dilema do “quefazer”. Aparentemente revivemos os tempos do início da revolução industrial inglesa, quando os operários, ao verem os empregos sendo suprimidos pela presença das máquinas, sem sucesso, optaram por destruí-las. Nosso dilema é ainda maior porque a intervenção tecnológica não desarruma apenas o mundo do trabalho, mas também a ordem das organizações e a capacidade das ideias para enfrentar a alienação cultural dominante.

            É uma “engenharia do caos” como disse Giuliano da Empoli, que cria e manobra as circunstâncias de fazer com que o mal venha para o bem. Ou não é? O que está ocorrendo no Brasil hoje é o espelho de que as perversidades e ofensas são relevadas quando se dá a recompensa. A mais de uma centena de mortos na pandemia, não abalou, pelo contrário, melhorou a aprovação do governo, isto porque, a ajuda emergencial para uma massa sem consciência critica, leva a compreender que, sem o pior presidente seria ainda pior viver neste malfadado tempo.

            As saídas? Muitos são que as procuram sem ainda chegar ao ponto da reação. Muitos outros não procuram porque seguem com a agenda posta pelos senhores da ordem dominante. No entanto, é importante, antes de qualquer coisa, voltar-se para o entendimento da razão contemporânea, como fizeram Marx e Engels em 1845, quando interpretaram “A ideologia alemã” e estabeleceram ali os fundamentos do Materialismo Histórico. Isto porque, não haverá mudanças sociais revolucionárias, sem que as forças sociais se tornem revolucionárias e, uma revolução só ocorre quando houver consciência de sua condução.

            A derrota do capitalismo virá também, se houver no mesmo movimento a derrota do espiritualismo, do moralismo e do ilusionismo. O resgate da razão permitirá a correta orientação das ações desencadeadas pelas forças que suplantarão o capital e o Estado. A nova ordem afirmar-se-á pelas diversas negações que hoje afirmam a servidão.

                                                                                                   Ademar Bogo

           

domingo, 16 de agosto de 2020

GRATIDÃO POR GRATIDÃO

             Enquanto muitos autores dedicaram-se ao longo do tempo a estudar a “A História da Filosofia”, Walter Benjamin, na primeira metade do século passado inverteu a combinação e dedicou-se a desvendar “A Filosofia da História” que Michel Löwy detectou no seu conteúdo três fontes: o romantismo alemão, o messianismo judaico e o marxismo.

            As contribuições desse autor, devido ao abreviamento da própria vida, ficaram incompletas, mas isso não impede de considerarmos que a influência do romantismo messiânico e religioso, na História Moderna, derrotou iminentes figuras políticas e processos, como Maquiavel, os vários propositores do socialismo utópico e, para resumirmos, passou pelo “sandinismo” nicaraguense, pelo “chavismo”, chegando até nós por meio do “lulismo” brasileiro.

            A concepção romântica e messiânica da História, na visão de Benjamin, é a compreensão de que ela com concebe o “devir histórico” como um tempo indeterminado de progresso na busca do “reino de Deus” e nunca se coloca como um processo de transformação por meio da revolução.

            Ao tomarmos como referência a categoria de análise do messianismo religioso não estamos dizendo que a religião comandou a política, mas sim que a execução da política ganhou contornos religiosos de um entremeio de juízo final, que redimiu a parte ofendida, mas não condenou a parte culpada. Aliás, embora, sempre relutamos incluir em textos de análise citações religiosas, neste, elas cabem, porque as esquerdas no governo fizeram acontecer o Evangelho de João ( 14:2) “Na casa do meu pai há muitas moradas”.

            A influência desse enunciado religioso esteve e está expresso literalmente nos programas de governo de esquerda desde o Federal até os municipais, nessas décadas do novo milênio com essas palavras: “governo para todos”. Isso serviu para mostrar que há lugar para os banqueiros, industriais, agronegócio, mídia conservadora e também para os pobres (nos programas assistenciais). Para os negros e índios apenas nas cotas educacionais, mas não na demarcação de suas terras, porque a posse das reservas e das áreas de quilombos deveriam ser, como sempre foi desde a chegada dos portugueses, “democraticamente” reservadas para o grande capital.

            Olhando de soslaio para o tempo messiânico, que diversos autores denominaram de “ascendência do lulismo” no Brasil, percebemos que, há menos de uma década, por volta de 2010, a sensação era de que a oposição institucional da direita havia sido aniquilada e que, a rigor, agora se repete com a pouca expressão da esquerda; com uma diferença de que o aniquilamento não é aparente, mas dura e ofensivamente real.

            Um consolo, no entanto, nos serve como alento, de que esse enfraquecimento das esquerdas não é mérito do “bolsonarismo” e, por isso, por ele nunca fomos derrotados. A derrota, como diria Benjamin, aconteceu pela intervenção de um “autômato” que teleguiou a condução da política com o espírito messiânico de que, a bondade é infinita e que a redenção não se dá sem o perdão dos culpados.   

            Por outro lado, ou mais precisamente, pelo lado ofensivo da extrema direita, vê-se, neste momento, que estamos no meio do caminho entre o início e o fim da pandemia, pois, é provável que as mortes causadas pelo vírus, por um bom tempo ficarão próximas de mil pessoas por dia; isso deveria levar a execração pública do presidente e conduzi-lo ao julgamento no Tribunal de Haia. No Entanto, a sua popularidade começa ganhar consistência, ameaçando com os mesmos instrumentos assistencialistas usados pelos governos anteriores, fazendo render para uma melhora fictícia na redução da pobreza, maior do que a que foi alcançada pelo governo Lula, pois atende a 60 milhões de brasileiros, isso é mais do que suficiente para eleger um presidente da República.

            As análises agora estampam títulos que buscam explicar o reverso do messianismo, expondo que “o lulismo está ameaçado”. E por que não estaria se as massas mais pobres continuam sequestradas no mesmo cativeiro da cooptação das consciências? O que os governos anteriores fizeram foi apenas entregar a chave para o presidente atual. Agora, veremos se as vozes formais e populistas virão a publico para dizer que se havia tirado da miséria e levados para o status de pobres milhões de brasileiros. Coisa que sabíamos que era apenas uma fantasia pois o que ocorreu foi apenas uma distribuição, sustentada por dinheiro público, de comida e não de renda que continuou ainda mais concentrada.

            E não precisa de grande formação política para perceber que, se as políticas assistências como “Bolsa família” que sustentou a popularidade dos governos anteriores, e agora continua existindo, mostra que muito pouco foi feito para redimir os pobres da miséria e que, na “casa com muitas moradas”, esta na qual a pobreza habita, continua sendo visitada pela assistência, produtora de gratidão, mas não de consciência.

            Somado a isto, vem o auxílio maior, corroborado pelo consenso entre todas as forças políticas para que o governo ultrapassasse o teto dos gastos e estabeleça o pagamento nunca visto, de um crédito de R$ 600,00 que se prolongará enquanto continuar a pandemia, mas, para o governo interessa pagá-lo, nesse valor, até o mês de Novembro, quando se realizarão as eleições municipais. Depois será insustentável para o Estado, mas poderá ocorrer um consenso de reduzi-lo para R$ 200,00 e será suficiente para reeleger Bolsonaro porque está acima do valor oferecido pelos governos anteriores.

            Não tenhamos dúvidas, o prolongamento da agonia da pandemia beneficiará o presidente da República que receberá a gratidão das grandes massas desempregadas e famintas, pelos benefícios garantidos e, mesmo ele não tendo um Partido para disputar as eleições municipais, a classe dominante saberá utilizar os benefícios para afirmar as bases para a próxima campanha presidencial.   

            Se no tempo presente a História reduziu as possibilidades de reação, foi porque as forças que poderiam agora reagir, foram atreladas ao processo institucional e desaprenderam a fazer política fora do processo eleitoral, cujo voto passou a respeitar mais a gratidão do que a consciência. E para reverter essa situação somente com uma intervenção contra o crédito emergencial pela substituição da distribuição de renda fixa pela promessa da distribuição da riqueza. Caso contrário, as forças de esquerda ficarão no limbo por um longo período.

            Gratidão por gratidão, se com a referência passada já foi retribuída com 4 mandatos do PT, agora, mesmo que o benefício venha pela mão agressiva de um neofascista, é dela a vez de receber o reconhecimento dos pobres assistidos. Então será o tempo de perguntar: o que foi o lulismo senão uma intervenção assistencialista e messiânica, que tratou as massas, da mesma forma que vinha sendo tratada ao longo da História do Brasil, como gado nos “currais eleitorais”?

            O tempo sempre foi favorável com aqueles que constroem grandes obras. Mas ele não pode ser visto como eterno e nem como redentor sem punição. Se o messianismo mostrou e nos mostra pelo “bolsonarismo” que o assistencialismo é uma forma momentânea mas astuta de fazer política, é sinal que o caminho a seguir tem que ser outro. O tempo cobra uma meta de chegada e o processo de superação proposital do capitalismo, precisa ser posto em marcha.

            Já é tempo das forças de esquerdas combaterem as ilusões em suas fileiras e na mente das massas exploradas. Desde a crítica ao socialismo utópico é que o marxismo vem mostrando que é preciso mais ciência e menos emoção e oportunismo na prática política. O capitalismo não será superado com a união de todas as forças e nem pela suposta “democracia eleitoral” que só existe e permanece em vigor enquanto favorecer a ordem dominante. A superação do capitalismo virá pela vitória da luta de uma força sobre a outra. As duas juntas não formam uma vitória, porque não constroem nenhuma derrota.

            Se a gratidão social é alheia à consciência para quem a dá, ela não é para quem a recebe. Tanto as forças de esquerda, quanto as do nazismo, já mostraram o que podem fazer na política com o apoio popular. O que as massas populares ainda não viram é que, em ambos os domínios elas ficaram de fora da “casa grande”. Enquanto esta casa não for derrubada, seja de qualquer mão, a ajuda sempre será bem vinda e mão ingenuamente beijada e gratificada.

“Mesmo os cães famintos sabem que não é boa a ideia morder a mão que os alimenta”; diz o roteirista norte-americano. Mordem sim, aqueles que os importunam enquanto comem. Portanto, conheceremos a verdadeira política, quando o tratador for extirpado da cultura e os tratados assumirem o comando da própria história. Até lá, o messianismo continuará sendo o espírito da política no capitalismo.

                                                                       Ademar Bogo

             

domingo, 9 de agosto de 2020

O ACASO E O SEU CONTRÁRIO


            “O capitalismo neoliberal é a raiz dessa crise e somente há um caminho para a justiça e a paz reinarem no mundo: socializar as estruturas contestando de fato a desigualdade socioeconômica, a absolutização da propriedade...”. Esta frase espera-se que seja de algum líder político importante, um socialista radical que quer e luta por transformações sociais. Não é. Pertence a D. Pedro Casaldáliga, o profeta da defesa dos Direitos Humanos e das florestas, falecido ontem, dia 8 de agosto, somando para os cristãos e lutadores sociais, mais uma pesada perda no ano de 2020.

            Não há como negar, e se o futuro não surpreender aqueles que ainda viverão, os historiadores irão confirmar que o ano de 2020 será, para o Brasil, o ano de maior acumulação de perdas. As explicações estão no acaso e no seu contrário.

            Considerando o “acaso”, reuniu-se em um ano só e no mesmo lugar, como se fosse uma encruzilhada em que os elementos viajantes personificados na economia, na política, na moral, na pandemia, na desmobilização social e o fechamento das escolas e universidades dentre outros transeuntes.  Mas seria também o ano de 2020 a encruzilhada da História?

            Ainda é cedo para calcular qual será a queda do Produto Interno Bruto (PIB), mas, com certeza chegará à casa de dois dígitos. Mas, se o acaso provocará essa queda em um só ano, o seu contrário, nos mostra que esse infortúnio foi algo voluntariamente provocado nos anos anteriores de aceitação da política colonial formulada pelos Estados Unidos da América, que nos tornaram um país de economia primária. As consequências é que, depois da pandemia, os pulmões da economia terão sido também afetados e ela não terá como reagir sem a ajuda dos “respiradores” externos. Isto significará o comprometimento ainda maior das riquezas nacionais e a perda da soberania sobre os minérios, a água doce, o petróleo etc.

            Na política também ainda é cedo para contabilizar as perdas, sejam elas ligadas ao aspecto entreguista juridicamente oficializado, seja naquilo que ainda se podia chamar de “resquício de democracia” relacionada à liberdade de expressão.  É cedo para saber como este governo ou período de governo que pode se prolongar mais do que o previsto e de como entregará o país para o poder civil. Aqui também o antônimo do acaso, está na contrariedade anterior de não ter estabelecido parâmetros para conter os retrocessos, quando a ascensão utópica da reação política pós-golpe de 1964, trouxe para o centro das manifestações, as forças políticas, sindicais, populares, intelectuais e religiosas, mas que entregamos a um reduzido grupo desatento, despreparado e resistente, como disse o Bispo de São Félix do Araguaia, distante de qualquer centro operário, de tocar nas estruturas e na absolutização da propriedade. Essas mesmas forças, caladas e desmobilizadas, assistimos a derrubada do governo a presidenta que havia se enfraquecido por confiar demais nos banqueiros, industriais e fazendeiros do agronegócio, quando na verdade deveríamos assumir o poder como uma verdadeira democracia popular para evitar que a catástrofe política agora vivida não se realizasse. 

            Nas demais áreas os apontamentos indicam que as perdas no conhecimento, na organicidade social e política e, principalmente, no desaparecimento de vidas preciosas que, arrancadas antes do tempo, deixarão lacunas no campo das ideias, dos exemplos e das experiências vividas.

            Nesse momento depressivo da utopia, podemos recorrer à poesia e a filosofia. Renato Russo disse: “Estou cheio de me sentir vazio”. Reflete realmente o que nos tornamos ou podemos nos tornar no ano de 2020, “sacos vazios”, ou pior, corpos cheios de vazios.

            Pela Filosofia podemos compreender e tomar o vazio colocando-o a nosso favor; isto porque, o vazio não é a ausência de tudo, mas a presença do vazio. Há, portanto, espaço a ser preenchido, e isto é bom.

            Chegamos ao ponto em que Marx volta para nos mostrar que, “As circunstâncias fazem os homens, assim como os homens fazem as circunstâncias”. As circunstâncias, são os vazios; fazer as circunstâncias é “encher os vazios”. Isso significa dizer que é preciso perceber onde eles estão. Localizados, devemos fazer o que nos disse, D. Casaldáliga, para segurar mais um de seus ensinamentos: “A alternativa é acreditar que outro mundo é possível e se entregar individualmente e m comunidade ou grupo solidário e ir fazendo real esse mundo possível”. 

            Se o acaso cria as condições adversas, também pode criar condições favoráveis. Atentar-se que, o real concreto é a fonte de inspiração para assumirmos o papel de sujeitos da História.  As perdas irreparáveis tornar-se-ão menos dolorosas quando pensarmos que nada foi vivido em vão. O destino da humanidade deixará de ser ruim no dia em que os explorados e deserdados assumirem a comando do próprio destino.

                                                                                   Ademar Bogo