domingo, 21 de novembro de 2021

A NOVA MORADORA DE RUA

          O filósofo Nietzsche, em sua “Genealogia da moral”, nos diz que, “não nos é permitido enganar-nos nem encontrar a verdade por acaso”. A razão para este entendimento está, certamente, em mostrar que não devemos confiar demais nas evidências superficiais e nem considerarmos como verdadeiro apenas o fato depois de acontecido; os processos também são verdadeiros ou enganosos.

Esses ensinamentos servem para todos e para quaisquer circunstâncias. Para quem já viveu o suficiente para aprender que a classe dominante é sempre dominante enquanto existir, e que, além de ser proprietária do capital controla também o Estado capitalista, fazendo-o agir coercitivamente a seu favor, é de fundamental importância não confiar em verdades ocasionais, principalmente porque a História, nunca dá razão às posições conformistas continuadas e submissas perpetuamente à ordem estabelecida.

De posse desses entendimentos confirmamos que historicamente as forças de repressão são mantidas, treinadas e alimentadas, para estarem à disposição do poder centralizado, para agirem sempre que as forças de oposição movimentarem-se contra a ordem, sustentada pelos interesses dominantes. Na ausência de ameaças iminentes, principalmente, as forças armadas, desaparecem dos noticiários e pouco se debate sobre qual é de fato o seu papel na estrutura do Estado.

 Costumeiramente as forças armadas protegem o país dos inimigos externos e das possíveis ameaças contra a soberania nacional. Há séculos não ouvimos rumores de que algum país vizinho tenha demonstrado interesse de agir nessa direção. No entanto, as guerras não são travadas apenas contra Estados, elas também podem ser desencadeadas contra outras espécies e forças da natureza. Nesse momento temos a “invasão interna” de territórios indígenas e a devastação das florestas indefesas, sem que as forças de defesa se movam para protegerem estes povos e as demais espécies de vida devoradas pelo desmatamento. Se isto não ameaça a nossa soberania territorial, enquanto nação, ameaça a nossa soberania moral e política, levando-nos a perder a admiração, o respeito e a autoridade frente às demais nações do mundo.

 É nesse ponto que se torna um perigo a apatia política. Há poucos dias, o Ministro do Meio Ambiente, ao participar da 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), na Escócia, escondeu a verdadeira realidade da devastação ambiental no Brasil, oferecendo dados amenos para fingir concordar e estar comprometido com as propostas lá afirmadas. No entanto, vergonhosamente escondeu que a taxa de crescimento do desmatamento da Amazônia, oficialmente, cresceu 22% entre agosto de 2020 e julho de 2021.

 Há, evidentemente, após diversas derrotas, sem mudar a natureza, uma mudança de postura política do poder Executivo. Como exemplo, podemos citar a prioridade da vacinação e o uso de máscara; a anulação da implantação da “escola sem partido” que impunha a mordaça aos professores; a confirmação da urna eletrônica; o “desacovardamento” do Supremo Tribunal Federal que restituiu direitos e recompôs a ordem tradicional da política e, dentre outras, a perda de apoio popular do presidente da República.

A verdade de acaso vem à tona quando o comportamento do presidente da República se transmuta, no sentido de enquadrar-se aos anseios da “velha política” por ele anteriormente rejeitada. Nessas práticas reina a arte dos negócios políticos, gerenciados pelo “Centrão”, cujo centro não leva a uma posição de equilíbrio entre as forças políticas, apenas reafirma o modo de politicar em torno dos próprios interesses. Essa articulação, além de amenizar as tensões entre os poderes, começou a render frutos e o governo passou a ter vitórias significativas no âmbito das aprovações de seus projetos; o principal deles é este que liberou o aumento dos gastos para o próximo ano, permitindo furar o teto tão contestado anteriormente pelos neoliberais, quando os limites orçamentários foram estabelecidos.

A inflexão comportamental para agir aparentemente dentro da ordem foi o suficiente para fazer sumir dos noticiários e também de muitos debates, o risco de golpe, a presença do banditismo político no governo, o papel dos militares na estrutura do Estado, e tantos outros temas que intimidavam e preocupavam as forças de esquerda e progressistas, alinhadas tradicionalmente com a ordem capitalista.

Se Nietzsche tem razão ao dizer que “não nos é permitido enganar-nos”, o engano deixa de ser, para pessoas conscientes, um direito adquirido a se enganar; isto porque, aquilo que é proibido, o é, por não ser permitido. Ou seja, só é permitido enganar-se se não houver nenhuma proibição. Nós temos dezenas de proibições descritas por derrotas já experimentadas. Portanto, se “a verdade não se encontra por acaso”, esteja ela no caos ou no ascenso das soluções, é preciso encontrá-la e afirmá-la.

A suposta sensação de calmaria e a amenização das ameaças raivosas vindas do planalto central, (com licença da metáfora) foram noticiadas após o “cachorro louco” que, popularmente se expõe no mês de agosto, neste último mês de setembro aceitou a coleira e agora estaria amarrado. Mas a pergunta a ser feita é se ele deixou de ser louco? Se acreditarmos que sim, estaremos indo contra a verdade, pois a ciência atesta que raiva canina não tem cura.       

 Suponhamos que o cão esteja realmente amarrado, mas ele está vivo, e o tempo de espera joga a seu favor. Para retomar as ameaças precisa apenas de algumas habilidades para soltar-se, e aí sim atacará com maior violência. Não é demais alertar que as derrotas sofridas pelo governo, vieram da mobilização popular, aliás, foi com elas, quando estiveram a seu favor, mesmo em quantidade insuficiente, que ele tentou intimidar os outros poderes, e, também, quando as forças de esquerda e os movimentos sociais, impusemos a resistência e fizemos a conjuntura mudar de cor.

De outro modo, devemos perceber a intensa atividade da “ditadura da informação”, com a qual os milicianos tentam confundir as consciências ingênuas, religiosas e apáticas, de que a “mentira os libertará”. Dessa forma e neste lapso de tempo, o princípio da “paciência histórica”, validado pelas experiências revolucionárias do passado, de ir avançando aos poucos até chegar ao objetivo parcial, serve também para as forças de direita e, esta possível “calmaria” é muito favorável ao governo, que espera, com o “auxilio Brasil” recuperar a popularidade, quanto para a “terceira via” indefinida, mas que circula ao redor do cão amarrado, em busca de ocupar aquele território e usufruir daqueles votos.

O comodismo de nossa parte, como se “o já ganhou” justificasse o sofrimento da espera, que no momento nos separa por quase 14 meses, deve ser despertado pelo alerta de que “tudo pode acontecer” e, sem a mobilização permanente nas ruas, favorável à morte política do cão raivoso, a verdade do acaso, vigorará também, nas ideias distorcidas vagantes e enganosas vigentes em nossas fileiras.

O século XXI já demonstrou que a democracia saiu dos palácios e dos parlamentos e se tornou uma eficiente moradora de rua. Ali é o seu lugar. Quem quiser verdadeiramente encontrá-la, deve ir ao seu encontro e lá permanecer.

                                                                                              Ademar Bogo

                 

 

domingo, 7 de novembro de 2021

NEGACIONISMO E PACIFISMO

 

            Quando nos debruçamos sobre a compreensão filosófica da política, de imediato percebemos que cada época cria os seus próprios problemas filosóficos e políticos. Por isso, se no tempo presente, filosoficamente perguntamos “o que é o negacionismo?”; politicamente perguntamos, “como enfrentá-lo e superá-lo”?

            Restritamente, o negacionimo deve ser visto como uma ideologia com implicações práticas destrutivas, de todos os alicerces e conceituações teóricas. Tal ideologia penetra em todas áreas do conhecimento e estruturações, mas, com maior vigor, na relativização da ciência, passando pela economia, poder judiciário, educação religiosa, comunicação, preceitos morais, com repercussão no poder político e esferas governamentais.

            Negar não é um equívoco; faz parte do movimento dialético no qual identificamos uma lei conhecida como “negação da negação”. No entanto, devemos distinguir entre negação e negatividade. A dupla negação tem como resultado, uma afirmação. Nesse sentido, a negação é vista como um movimento de superação e não de eliminação da parte negada.

            O filósofo Hegel (1770-1831) didaticamente explicitou o que significa o movimento dialético, ao tomar como referência o surgimento e o desaparecimento botão no desabrochar da flor, inicialmente “refutado”. No entanto, a flor que faz surgir o fruto induz a imaginar um falso existir da planta, quando na verdade ele é a representação de todo o processo e a promessa de revelação da verdade da própria planta.

            Por outro lado, a negatividade é o movimento das ideias atuantes em um processo de descrença e , contra algo positivo, no intuito de recusá-lo. Sendo assim, esse negacionismo é a aplicação concreta da verdade em busca de afirmar os próprios interesses. Trata-se, portanto, de um processo diferente daquele procedido pela negação, que evolui sustentado pela própria formação, qualificando-se. A negatividade e o negacionismo, ao contrário, evoluem, objetivamente, desqualificando o existente, fazendo com que a verdade e a ciência convertam-se em uma rasa ideologia.

              Quando voltamos as atenções para a política vemos que o “negacionismo” e o “pacifismo” são duas enfermidades de igual periculosidade para o processo civilizatório. O filósofo italiano Antônio Gramsci (1891-1937), em seus “Cadernos do cárcere”, reporta-se à hipótese ideológica do pacifismo, dizendo que “a revolução passiva” é vista como intervenção legislativa e organização corporativa, ancoradas pela estrutura econômica que, por sua vez, visa modificações no “plano de produção” com alguma profundidade, mas sem ameaçar o controle do lucro.

            De modo geral, o pacifismo, na medida em que não aprofunda a intervenção sobre as estruturas de dominação, não se apresenta como uma oposição contrária ao negacionismo, senão que, também se compromete a negar a ruptura e, com isso mantém a mesma natureza do processo.

            É evidente que, do ponto de vista situacional, o negacionismo e o pacifismo mantém características diferenciadas, pois, enquanto o primeiro visa anular, por meio do julgamento ideológico o mérito da ciência e exclui da distribuição das “comendas” e premiações, por discordâncias e caprichos, os cientistas merecedores de louvor, o segundo, por meio da pacificação, busca conservar os pilares da civilização, como se todo o processo de negação do botão tornado flor e esta configurada em fruto, parasse neste estágio, impedido de seguir adiante por falta de decisão reprodutiva ou concordância com a natureza da ordem.

            Se o sinônimo oposto do negacionismo é a verdade, do pacifismo é o radicalismo. Na medida em que negatividade é um mal para a política, a passividade não representa um mal menor, isto porque, ao se pretender efetivar mudanças por dentro da estrutura que, propositalmente produz frutos “sem sementes”, as prováveis negações impulsionadoras de novas negações convertem-se em negatividades e, neste caso, os perdedores continuarão perdendo dentro da manutenção da mesma ordem garantidora da sociedade desigual.

                É evidente que a concepção da “transformação pacífica”, já se tornou também uma ideologia, pois, pretende fazer acreditar que esta seja uma verdade absoluta, quando as provas contrárias, cotidianamente e, corruptamente, são apresentadas e oficializadas pelo poder Legislativo.

            Na medida em que a ignorância ganha espaço na política há duas maneiras de enfrentá-la: combatendo-a educadamente, como quando um dos lados não quer o conflito e, insistentemente pede “calma”; a outra é desestruturar a estrutura que dá sustentação e facilita a reprodução das forças políticas negacionistas. Podemos até dizer que as duas formas de combate são complementares, pois, ao construir uma, constrói-se também a outra; mas então precisamos considerar que o pacifismo é apenas uma tática e não a totalidade da estratégia.

                                                                                                                                                                                                                                                                                 Ademar Bogo