domingo, 17 de setembro de 2023

VONTADE E CONSCIÊNCIA

 

            Sempre que fazemos análises conjunturais, não escapamos das referências históricas, sejam elas mais recentes ou mais antigas. Muitos elementos se cruzam e, no final, aparece um produto na forma de um texto que registra as compreensões produzidas. De certo modo, na pressa ou na preocupação com a centralidade dos fatos, deixamos escapar a percepção se aquele resultado é o reflexo de nossa vontade ou de nossa consciência.

            Para pensarmos sobre estas duas categorias, embora a vontade seja um dos momentos da consciência, mas, tomada em separado ela é uma pulsão voltada para a realização de certos desejos favoráveis aos interesses imaginários; imitando a projeção de algo a vir a ser do próprio gosto.

            O gosto investido na democracia representativa é sempre burguês. Os trabalhadores ao se apossarem das estruturas reproduzem, com seus mandatos, os regimes como se fossem vícios insuperáveis. Essa imutabilidade do vício, ao fixar-se nas ideias, leva a repetir os discursos com os mesmos termos. O filósofo Georg Lukács captou esse itinerário possível, ao dizer que: “Desse modo, a história é entregue como tarefa ao pensamento burguês, insolúvel”.[1] Disso devemos deduzir que, não importa quem executa, mas de onde vem as ideias a serem postas em ação. Com isso deixa-se passar o entendimento sobre a origem das configurações sociais reais e, adota-se a visão formalista de que há coisas de Estado, intocáveis, e, outras, na esfera de governo, passageiras.

            O grande dilema para Lukács, na sociedade movida pelo capital, é não perceber que as relações sociais são mediadas pelas coisas e, por isso, os afazeres cotidianos seguem o movimento delas, sem transparecer que as pessoas cumprem e executam conscientemente seus atos históricos, porém não compreendem e assim formam “uma falsa consciência”.

            O efeito causado pelas coisas na visão dos indivíduos que analisam a realidade é que, política se faz com respostas aos problemas sociais. Pensa-se de imediato em fazer a economia crescer, gerar empregos e movimentar o mercado. As ideias ilustram essas intenções e se apegam ao conceito de “justiça social” para dizer que os direitos devem ser garantidos. Quando entram os conceitos abstratos, desaparece a classe social e a consciência daquela classe; esses lugares são sempre preenchidos com “a consciência da ordem”.

            Quando alcançamos a consciência da ordem ou do “estado de direito”, essência da política burguesa, desde a Revolução Francesa, os lados da divisão social se apresentam: o primeiro desejoso de impor a sua vontade, ataca as leis e as instituições; o segundo agarra-se à “consciência da ordem”, e se dedica a praticar a “política do anexo”; ou seja, esse lado também tem suas vontades, mas elas são entregues aos seus representantes para realizá-la. Portanto, esses lados estão “desclassificados” e “desconscientizados”. Podem inclusive oscilarem e revezarem-se nos papeis que os lados assumem.

            Vontade e consciência vistas aqui separadas uma da outra, refletem o total esvaziamento da luta de classes em substituição ao apego e aceitação do estado de direito governado temporariamente por indivíduos aliados, geralmente falsos nas intenções e na consciência. O pragmatismo político brasileiro, desde a abertura após a ditadura militar, no início da década de 1980 e, repetido em outros países, foi levar para dentro da ordem quem agia conscientemente contra ela e a qual precisava ser destruída. As forças revolucionárias foram convencidas de que a política é feita dentro da institucionalidade e, com isso, aprenderam a aliarem-se aos defensores do capital e do Estado. Este movimento que arrastou e mantém como reféns as organizações populares, que reivindicam dos governos, medidas aliviadoras dos problemas, abriu espaço para as forças da extrema-direita de se posicionar mais pela vontade do que pela consciência, contra a ordem favorecedora das forças de esquerda, para controlá-la com outras mediações.

            Extintos os partidos revolucionários, o instrumento de ação passou a ser os governos conformistas, pois, ao mesmo tempo em que se conformam à ordem, conformam os aliados a aceitarem o mínimo, oferecido assistencialmente, enquanto o capital se expande sobre as terras, florestas, minérios etc. Desse modo a vontade de organizar um novo partido revolucionário, desapareceu junto com a consciência revolucionária.

            A veemência com que o Supremo Tribunal Federal atua, para punir, parte dos implicados na tentativa de golpe do dia 8 de janeiro de 2023, reflete o instinto repressivo e totalitário do capital, que criou e mantém em ação o Estado capitalista para garantir o funcionamento da ordem a ele favorável. Por isso, o entendimento de que o Estado pertence ao capital e não aos indivíduos ou classes, é de fundamental importância, para entendermos a rigidez da repressão exposta. Ou seja, não importa se por trás dos movimentos das forças “desordeiras” estejam as concepções, comunistas, nazistas ou golpistas, importa o perigo que elas representam para a acumulação e expansão do capital.

            As punições políticas e jurídicas para os capitalistas são irrisórias. A prática do abandono de seus representantes é corriqueira. Quando necessitarem de novos representantes golpistas ou mobilizadores e destruidores, os encontrarão com facilidade. Importa para eles que a exploração seja mantida. Para as forças de esquerda e populares é um enorme fracasso apenas aguardar que o judiciário puna os envolvidos na tentativa de golpe, sem nenhuma preparação para enfrentar o retorno dos ataques comandados pela vontade oposta.

            Em síntese, não há como fazer política contra a ordem sem classe e sem consciência de classe, no máximo, nesse jogo, se constituirá uma torcida favorável aos governantes para que façam alguma melhoria e se reelejam. Para constituir a classe e formar a consciência é obrigatório despertar a vontade e pensar em ter uma organização de classe ou mais propriamente um partido da classe.

                                                                               Ademar Bogo



[1] LUKÁCS. História e consciência de classe. 2003, p. 136.