domingo, 31 de julho de 2022

FIM E FINALIDADE

 

            Maquiavel, com seus 43 anos de idade, arriscou-se a dar conselhos ao “príncipe” italiano, Lorenzo II, orientando-o da seguinte forma: “O principado é construído ou pelo povo ou pelos grandes, conforme uma ou outra destas partes tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar expansão ao seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir aos poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para estar defendido com a autoridade do mesmo”.

            Esse modo de ver, ainda na modernidade, caracteriza bem como é a política representativa: tantos os ricos quanto os pobres visam ter um representante que os defenda. Poderíamos considerar natural essa solução, principalmente porque, o patriarcalismo e o presidencialismo empresarial ou cooperativo, prezam pelo formato da representação. No entanto, deixa de ser natural quando a busca do representante para ambos os lados passa a ser o mesmo indivíduo.

            Considerando que as massas, devido ao baixo nível de consciência e capacidade interpretativa, podem oscilar entre um candidato de direita, de centro ou de esquerda, buscam sempre um defensor dos mínimos interesses e, para chegar a tal posicionamento podem ser convencidas ou induzidas. Do lado da parte dominante, a prioridade é sempre ter um representante da sua classe. Quando se volta a favor de um representante do povo, é porque se sente ameaçada por ele ou porque não consegue encontrar um dos seus para representá-la.

            No Brasil, a classe dominante manteve-se unanimemente colada ao governo nazifascita, eleito em 2018, com todas as manobras anteriores, propagadas e conhecidas. Assegurou com as “desarrumações” da ordem, todas as reformas e concessões pretendidas. No momento em que percebeu as diversas ameaças, buscou a saída da “terceira via”, mas, sentindo que o “povo” não aceitaria, tomou a decisão de migrar para o candidato apoiado pelo povo. Em síntese, enquanto o povo quer um representante que o proteja, a classe dominante quer o mesmo para proteger os seus interesses.

            É evidente que a classe dominante abandonará a passos largos o candidato Bolsonaro, mas isto não significa que ela aceitará a ser conduzida. Enquanto ela tiver a supremacia econômica, será sempre dominante.  No Brasil, mais do que em outros países, desde 1889, com a proclamação da República, inspirada no lema positivista, “Ordem e progresso”, é visível que a burguesia, ao romper com a ordem, paralisou o progresso e, por isso precisa desfazer-se da simbologia política que implementou o desarranjo.

            Nesse sentido, o isolamento de Bolsonaro pelas principais forças e instituições é uma tendência de difícil reversão. A temeridade de golpe, nos modos tradicionais, propagada pelas forças mais conscientes, contribui apenas para valorizar a democracia, mas, no fundo, dá fôlego ao negacionista das urnas eletrônicas, para sustentar um discurso de que “será roubado” e, preparar por conta própria, uma saída menos vergonhosa. O ideal seria discutir as saídas de superação do atual estado de coisas.

Ume golpe liderado pelas forças armadas, além de não ser necessário para garantir os interesses capitalistas atuais, não tem apoio, a não ser em setores marginais representados por uma parte da classe média vingativa, seitas religiosas, milícias etc. Para que haja um golpe, além de todas as circunstâncias favoráveis, as forças armadas precisariam apontar que são capazes de jungir os dois princípios: “Ordem” e “Progresso”. A ordem até podem tê-la garantida, no atual governo, tutorado militarmente, até porque não houve nenhuma mobilização popular agressiva e o fantasma do comunismo não se fez presente; mas o progresso foi e está sendo um total fracasso, demonstrando que além de incapazes, os militares da política, estão completamente equivocados com relação à estratégia adotada. Economicamente, um golpe se justificaria se a pretensão fosse transformar o Estado em uma força investidora, concentradora de um modelo econômico estatizado, pondo a iniciativa privada como força auxiliar do desenvolvimento. O que vimos até aqui é um apego arraigado ao neoliberalismo e ao entreguismo das riquezas nacionais ao capital internacional. Para isso, não precisou, até aqui, dar nenhum tiro e, para continuar dessa forma, não se justifica apelar para nenhuma loucura.

            Porém, não significa que o processo da sucessão presidencial será pacífico e que o ufanismo do “já ganhou” confirme a vitória sem luta. Se o ponto de ataque são as urnas eletrônicas, para tumultuar o resultado final, tendo em vista a extensão do País, nos recantos mais isolados e com menor vigilância, urnas falsas podem ser introduzidas, confirmando assim as irregularidades, que até então significaram denúncias vazias. Em síntese, eles precisam de uma prova, mesmo que seja falsa e há condições de produzi-la. Nesse caso sim, havendo reação popular e a iminência de ser desencadeada uma guerra civil, poderia haver a intervenção militar, para apaziguar os ânimos e convocar novas eleições.   

        No mais, a divisão da sociedade, pela posição de classe, está estabelecida em todos os espaços públicos, e isto nos diz que uma vitória eleitoral, por si só, não normalizará as relações civilizatórias.

            Ficará para as futuras gerações o desafio de equacionarem o separatismo entre as armas e a organização. É o que configuram e pregam os dois lemas e as duas crenças atuais: o da extrema-direita pregando que, “O povo armado jamais será dominado”, e o da tradição revolucionária, verdadeiramente consciente de que, “O povo organizado jamais será explorado”. No primeiro falta a organização, no segundo, faltam as armas.

            Para os exploradores o fim desse governo tem como finalidade reunificar a ordem e o progresso para manter a velha estratégia da dominação política e da exploração econômica. Para nós, o fim do mesmo governo deve ter a finalidade da superação e a afirmação de um novo processo, no qual, não haja mais príncipes unificadores das classes, mas a representação pela participação direta.

                                                                                  Ademar Bogo

domingo, 24 de julho de 2022

RELIGIÃO E ORGANIZAÇÃO DE CLASSE

Há um pensamento atribuído ao filósofo Plutarco que expressa a dependência humana da religião. Disse ele: “Viajando poderás encontrar cidades sem muros e sem caracteres; sem rei e sem casas (!), sem riquezas e sem uso da moeda, sem teatros e sem ginásios. Mas uma cidade sem templos e sem deuses, que não faça preces, nem juramentos, nem divinizações, nem sacrifícios, para obter o bem e afastar o mal, ninguém a viu nem a verá jamais”.

Se já na antiguidade o conteúdo religioso povoava a consciência social, com um forte alinhamento com a política, na contemporaneidade isso foi ampliado em grandes dimensões e já não precisa ir de cidade em cidade para perceber tal proliferação, basta mudar de esquina e encontraremos um templo com um nome adequado aos interesses particulares de criadores de seus próprios mitos.

Longe de igualar e depreciar as instituições religiosas, isto porque, há àquelas que prezam pela coerência teológica e pela conscientização. Na verdade o que deveria ser feito, seria aprofundar os conceitos e as definições com o objetivo de separar o que é religião e o que é mitologia.

O filósofo italiano Antonio Gramsci considerou que as religiões são heterogêneas ideologicamente; assemelham-se ao senso comum e ao folclore. Para ele, uma religião expressa “diversas outras religiões”.  “Há o catolicismo dos camponeses, um catolicismo dos pequenos burgueses e dos operários urbanos, um catolicismo dos intelectuais...” Poderíamos atualizar essa caracterização e acrescentarmos a religião dos governantes, dos pastores, dos exploradores dos mais pobres, das seitas imperialistas e tantas outras. Há diversos elementos que podemos extrair do fenômeno religioso e suas vinculações econômicas, políticas e ideológicas.

Quando voltamos às atenções para a política com seu formato de “democracia representativa”, facilmente percebemos que não é possível alcançar um objetivo neste rumo, sem o contato direto com indivíduos e grupos sociais.  Em outros tempos quando as organizações políticas e sociais reuniam grandes contingentes de massas, as lideranças, não somente eram incentivadas a filiarem-se aos partidos políticos, como também a candidatarem-se para os cargos eletivos, e representarem posteriormente aquelas agremiações.

A junção da luta social com as disputas eleitorais fazia sentido, quando se tomava como referência da análise que, as lutas reinvindicatórias não alcançariam vitórias se do outro lado não houvesse governantes sensíveis aos clamores sociais. O aparelhamento político, sindical popular e também pastoral, era evidente, no entanto, objetivava-se alcançar coletivamente a justiça social.

As encadeadas vitórias eleitorais alcançadas por essa integração de forças mostraram a justeza das táticas adotadas; afirmaram a importância da unidade na luta para garantir os direitos e alcançar as conquistas desejadas. No entanto, o entusiasmo acentuado engoliu a ingenuidade de acreditar que o Estado capitalista, criado para garantir a ordem constitucional e assegurar os interesses do capital, poderia almejar o bem-comum. Se as lideranças populares e sindicais chegaram aos mais altos cargos da política e, as massas populares ao nível mais alto do poder de mobilização, a ruptura com o sistema de exploração não aconteceu. E como qualquer processo tem avanços e recuos, depois de um tempo em ascensão, ocorreu a desmobilização e o enfraquecimento da articulação das forças históricas.

O retrocesso nem sempre elimina todas as fortalezas construídas. Os princípios políticos e os valores morais revolucionários aprendidos ficaram retidos nas consciências como pontos de fixações, para onde a memória sempre convida a voltar e a retomar os desafios renegados. Porém, como não há Estado sem poder e nem política sem forças mobilizadas, outras referências foram construídas ao longo do tempo e formaram um senso comum significativo.

Concretamente, na ausência significativa da formação de entidades populares e sindicais, bem como o enfraquecimento das lutas reinvindicatórias, com perfil de esquerda, proliferam os partidos políticos de direita que, por necessidade de vínculo social, optaram pelas seitas religiosas, atraindo os pastores e agentes dos setores marginais, para serem os sujeitos da política representativa.

Diante destas duas observações, embora com certa diluição, permanencem as referências estabelecidas pelos campos de esquerda e direita e um não conseguiu anular o outro. No entanto, se para a direita os aparelhos de cooptação foram atualizados e tecnicamente modificados para mitificar a política com vínculos nas religiões, do lado da esquerda permanece a lacuna entre a posição de classe e organização de classe e popular.        

 Diante de tudo isso, podemos considerar que há pelo menos três formas de fazer política: a primeira com boas intenções relacionadas sociais organizadas que preza pelos valores civilizatórios. A segunda com más intenções transformando a alienação em mitos, vinculado-os às presas mais acessíveis que são as seitas religiosas, grupos extremistas e forças armadas voltadas para a repressão. Dentre elas, é evidente que a primeira representa o mínimo desejável, no entanto, do ponto de vista dos interesses da classe trabalhadora e das massas populares exploradas, nenhuma delas pode ser aceitável.

Quando pensamos que nas disputas eleitorais, as pesquisas valorizam a posição dos evangélicos e não e a posição de classe, começamos a duvidar se já não estamos em um estágio avançado de barbárie social irreversível. A perda do interesse organizativo e de mobilização permanente é fruto das contradições formadas no próprio interior do capitalismo, mas, lado a lado aos interesses vagueiam as ilusões, de que o atalho eleitoral é o mais adequado para pôr fim ao pior estabelecido. A ingenuidade não mata, mas é útil para aceitar a morte, atribuindo-a ao destino ou à vontade de Deus.

Contra a essa ilusão parece haver apenas a ameaça de golpe que um bufão na presidência, cada vez mais isolado, teima questionar a idoneidade tecnológica das urnas, com as quais ele mesmo já foi eleito. O capitalismo, o imperialismo, a exploração o domínio do capital etc., parecem já não incomodar tanto aqueles que no passado já defenderam o socialismo.

É tempo de voltar a pôr a centralidade na organização de classe e popular para suplantar os mitos sustentados pelas religiões e pelo crime organizado.

                                                           Ademar Bogo    

domingo, 10 de julho de 2022

TOTALIDADE E MEDIAÇÃO

               Totalidade e mediação são duas categorias fundamentais do materialismo quando se pensa discutir o movimento das contradições, vistas em qualquer processo de superação. Interessa-nos hoje, aplicá-las na conjuntura política, para, desse emaranhado de probabilidades, extrairmos algum entendimento sobre a melhor saída par a decadência política.

            É evidente que a política brasileira na atualidade, afundou-se no pântano asqueroso da imoralidade. Não há nenhum sinal de que o atual governo mereça ser considerado, isto porque, não entramos ainda no estágio da ingovernabilidade porque, setores da economia, a força de algumas instituições e a paciência popular, toleramos esse embuste criado a partir de 2016 pelo capital especulativo, os meios de comunicação e as ameaças golpistas militar das forças armadas.

            Nas ultimas duas décadas, ou mais propriamente a partir de 2008 quando se generalizou a crise do modelo neoliberal, por todos os continentes e, o capital produtivo começou a perder espaço para o capital especulativo, parasitário e violento, outras forças que não as da tradição institucionalizadas, positivista e defensoras do badalado “Estado de Direito”, mas, as vinculadas ao crime e ao caos, houve sem dúvida nenhuma, uma ruptura com os princípios da manutenção da ordem. E, os estragos não são ainda piores porque o representante maior dessa lógica insana, Donald Tramp foi derrotado nos Estados.

            Há respingos daquela ideologia ainda palpitando em alguns lugares, como é o caso brasileiro, mas, a onda da crença na ordem e na afirmação do progresso econômico, continua sendo afirmada em cada eleição encerrada mundo afora. E se tivéssemos que simplificar a hipótese em discussão, deveríamos dizer que, o capital produtivo entregou a responsabilidade para os trabalhares e para as forças progressistas de salvaguardarem os princípios da democracia burguesa representativa da ordem capitalista.

            Não precisamos ir muito longe para comprovarmos essa interação. Temos em nossa frente a aliança feita entre as duas principais representações da luta de classes do Estado de São Paulo, na década de 1980, as quais haviam produzido os dois maiores partidos políticos, PT e PSDB, que se digladiaram com tenebrosas críticas, por diversas vezes, mas agora, de algum modo, independente da sigla, as representações morais se unem para derrotar o mal maior do crime organizado na política.

            Já escrevemos sobre isto. Para tornar a Revolução Francesa vitoriosa e implantar de vez o capitalismo, a burguesia produtiva correu aos trabalhadores, embora com a intenção de subjugá-los, como força auxiliar, para o triunfo sobre as forças representantes da velha tradição. Aquela burguesia que, juntamente com os trabalhadores, compôs uma totalidade e afirmou o Estado capitalista como mediação, para centralizar o poder político, pelas próprias contradições geradas pela concentração do capital, foi derrotada pelo capital fictício especulativo e outras formas do capital digital, narcotraficante etc.

            Em decadência, a velha burguesia produtiva, obrigou-se a recorrer novamente às massas trabalhadoras e setores progressistas da sociedade; não mais como protagonista, mas como força auxiliar para não ser totalmente subsumida pelo banditismo político, elevado ao governo, com o suporte das forças armadas, um verdadeiro peso para o Estado, tendo as milícias civis, como forças emergentes na sustentação da barbárie e da ordem ditatorial paralela.

            A aproximação entre Lula e Alckmin é a expressão dessa tentativa limítrofe, para, com a mediação do Estado, sustentar a ordem capitalista brasileira, com a economia de mercado razoavelmente funcionando e com os direitos sociais e políticos em vigor. Se por um lado, esses objetivos, civilizatoriamente são os mais adequados a serem defendidos e alcançados no momento presente, não significa que eles sendo vitoriosos nas eleições, representem a totalidade das forças envolvidas.

            Na verdade, a totalidade das contradições, estrutura-se sobre outras referências, que são a decadência irreversível do capitalismo e da ordem estabelecida, e sobrevivem por meio da destrutividade e da absorção de todas as riquezas naturais. Para esse processo destrutivo, a mediação é a desordem e a violência, praticadas pelas próprias forças do capital especulativo e setores marginais da civilização. O Estado, quando possível de ser controlado, por meio de eleições ou golpes de Estado, é gerenciado como um instrumento de desconstrução da engenharia política instituída; quando não controlado por essa via, atua por meio de boicotes, pressões, ameaças de golpes e ações incontroladas das milícias e das forças policiais imbricadas nas articulações dos crimes.

            Concluímos que a totalidade e a mediação, continuam sendo as duas categorias fundamentais a serem consideradas como referências na análise política. No entanto, investir apenas na mediação, entendida aqui como a conquista de governos, sem o entendimento de que é preciso enfrentar a totalidade das contradições capitalistas, é apenas propor-se a adiar a verdadeira decadência.

            Não podemos esquecer que, tanto as soluções quanto os agravamentos das contradições, surgem, na evolução da mesma sociedade. Todos sabemos que as forças do neopentecostalismo, as milícias voltadas para a políticas, as concepções neofacistas etc. nasceram ou se fortaleceram enquanto o PT governava o País e, por sua vez, faziam retroceder a organicidade das forças populares.

            Não basta garantir democracia representativa, é preciso enfrentar as forças que propagam e investem na barbárie. O bolsonarismo não é apenas uma excrescência do capitalismo, é também uma expressão antecipada do pior que há de vir, se nada for feito. O capitalismo decadente  tornou-se um terreno fértil para germinarem tendências oportunistas e também ingênuas. É preciso avançar. Tomar o comando da História e impor de vez a derrota definitiva aos militares e a todas as forças aliadas do crime, que aprenderam com experiências como a do Haiti, como podem jungir no mesmo projeto, o terror e o oportunismo político.

                                                                                            Ademar Bogo