domingo, 26 de janeiro de 2020

A IDEOLOGIA ALEMÃ


            Quando Marx e Engels polemizaram com Bruno Bauer, Feuerbach e Max Stirner, enfrentaram pensadores bastante qualificados, com os quais haviam formado o mesmo grupo dos “jovens hegelianos”, mas, devido aos desacordos nas ideias foram obrigados a contestá-los rigorosamente com diversas elaborações.
            Se as polêmicas mais duras travadas com Bauer se deram em torno da emancipação política dos judeus, cujo autor defendia que eles antes deveriam abandonar a religião, porque, para que houvesse de fato a emancipação, o Estado deveria ser laico. Bauer via que, sem as demandas religiosas o Estado poderia atender as demais reinvindicações e garantir os diversos direitos sociais e políticos. Para Marx, esse discurso ideológico era um disfarce, pois, para os capitalistas alemães, pouco importava se os judeus seguiam ou não uma religião. Na vida social, as contradições eram materiais e não espirituais. Precisavam sim de enfrentar o Estado e a classe dominante para extinguirem todas as mediações que impediam os judeus de serem livres e iguais.
            Por outro lado, ao discutirem as ideias de Feuerbach no sentido histórico, ironicamente Marx e Engels consideraram que não valeria a pena explicar para aquele e outros filósofos, que eles não haviam feito avançar um único passo a libertação do “homem”, ao terem reduzido a filosofia e a teologia a um monte de lixo. Também não gastariam tempo explicando que somente seria possível conquistar a libertação real, no mundo real, com o emprego de meios reais, porque, certamente não entenderiam que não seria possível libertar os homens enquanto eles fossem incapazes de obterem a própria alimentação, a bebida, a habitação e a vestimenta em quantidade e qualidade adequadas.Além disso, a libertação deveria ser vista como um ato histórico e não como um ato de pensamento e, ainda mais, condicionada por condições históricas criadas pela indústria, comércio, agricultura e outros intercâmbios materiais.
            Sobre Stirner, chamado de São Max, que havia escrito o livro, “O único e sua propriedade”, Marx o criticou porque queria fundar uma causa sobre o nada e, por meio de lamúrias expressava o “brado crítico”, repetindo sempre que “tudo há de ser sua causa” e que a “causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade e outras mil causas acabavam caindo sobre os seus ombros.
            Marx fez a seguinte descrição sobre o texto de Stirner: Ele investiga a “causa de Deus”, “a causa da humanidade” e conclui que são “causas egoístas”, isto porque, tanto Deus quanto a humanidade só se preocupavam com o que era deles e se encontravam em situação sempre favorável. No entanto, Stirner se perguntava: “e eu?”, e logo dava a resposta: “Eu, de minha parte, tiro disso uma lição e prefiro, em vez de continuar a servir a esses grandes egoístas, ser Eu mesmo o egoísta”. A verdadeira conversão então, se daria as avessas, iria em direção ao egoísmo e entraria em competição com “Deus” e com “a verdade”, porque queria Stirner criar a sua própria verdade.
            Marx e Engels perceberam que aquelas ideias deturpavam a verdadeira análise da realidade e por isso as denominaram de “ideologia”, para que elas não ganhassem força na mente dos judeus e trabalhadores alemães, atacaram-nas com veemência, demonstrando que elas serviam à classe dominante que precisa em cada época, controlar também as ideias que manipulam as consciências pelo mundo afora.   
           
            No Brasil, se “a ideologia alemã”, por meio das ideias de Bauer, Feuerbach e de Stirner, não ofereceram grandes perigos, o mesmo não podemos dizer da outra surgida quase um século depois, conhecida como “Nazismo” e que agora vem-nos a perturbar. A ideologia nazista, nascida na Alemanha por volta do ano de 1924, quando surgiu o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que tinha, além de Adolfo Hitler como líder maior, o propagandista das ideias escusas, o ministro da propaganda que atuou por mais de doze anos, conhecido pelo nome de Joseph Goebbels.
            No nome do partido “Nacional Socialista” estava presente a enganação das ideias nazistas, isto porque ao invés de ser uma força socialista era uma organização paramilitar de perseguição ao “diferente”. Na verdade, era um movimento de extrema direita que visava segregar parcelas da população em busca de criar uma “raça superior”, para tanto precisou criar uma ideologia e propagandeá-la para justificar o extermínio dos judeus, dos ciganos, deficientes físicos e mentais, negros e todos os adversários políticos, principalmente aqueles que defendessem as ideias marxistas.
            Esse partido foi sufocado em 1945 com o final da Segunda Guerra Mundial, mas as ideias permaneceram e, seguidamente reaparecem, tanto na base social quanto nas fileiras governamentais, como é o caso do Brasil na atualidade.
            O sinal de que “a ideologia alemã”, travestida de Nazismo, na atualidade, não deve apenas ser identificada nas palavras expressas pelas autoridades, como fez o Secretário da Cultura demitido recentemente, quando organizou uma cerimônia com as características e as simbologias utilizadas por Goebbels, no intuito de “nazificar” a cultura brasileira. Há outros elementos que combinam com o nazismo, mas como eles são apresentados envolto pela ideologia nazista, as verdadeiras intenções ficam disfarçadas.
            A primeira semelhança está na mentira. “Uma mentira contada mil vezes, transforma-se em uma verdade”, defendia Goebbels. Essas mentiras são de todos conhecidas. Elas vão desde a manipulação dos dados estatísticos para dizer que a economia está crescendo, à defesa à indissolubilidade da família, que, a começar pelo presidente e a próxima secretária de cultura, são especialista no assunto de desfazer as próprias famílias por diversas vezes.
            Em seguida podemos comparar os campos de extermínio da Alemanha Nazista que, com tecnologia e força repressiva especializada, milhões de pessoas (na maioria judias), foram mortas. Em nossos dias, os germes dos campos de extermínio são os presídios e, as forças especializadas são a milícias paramilitares que agem em conivência com o poder político. De outro modo, avança-se para oficializar as matanças por meio da aprovação de leis que isentam de culpa os policiais, quando eles alegarem “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
            A censura e o corte de verbas de incentivo à produção à cultura, o fechamento da Agencia de Cinema (ANCINE), o desmantelamento do sistema de educação em nome da “purificação das ideias”, que acreditam terem sido esquerdizadas pelo pensamento do professor Paulo Freire, são outras formas de proliferação da ideologia nazista. Por outro lado, a pregação de que precisam “combater as ideologias” como se eles não fossem os seus maiores propagadores, é de fato a mentira contada milhares de vezes.
            Poderíamos seguir enumerando, situações em que as mentiras repetidamente comunicadas visam ganhar o status de verdade, mas interessa é percebermos que “A ideologia alemã”, agora com o nome de “nazismo”, continua viva entre nós e, as mesmas perseguições que sofreram Marx e Engels, os judeus, os negros, homossexuais e outros, se repetem com um público cada vez mais ampliado.
            Os motivos do renascimento dos fantasmas ideológicos que, de tempos em tempos aparecem com outras faces, inovando a trindade asquerosa, composta agora por Trump, que nega o aquecimento global; Bannon, o novo Goebbels da propagação da mentira e, Carvalho, que prega o achatamento da terra, deve-se à crise do capitalismo e a falta de alternativas para manter a reprodução do capital. São tempos em que se tornam propícios os surgimentos de tais excrescências como pestes repentinas inventadas por combinações de carências e interesses escusos.
            Como fizeram Marx e Engels ao enfrentarem a ideologia alemã, é tarefa da militância, nos tempos atuais, fazer o mesmo e combater as mentiras com o esclarecimento das verdadeiras intenções que se escondem nas dobras das informações produzidas pelos servidores da segregação, do ódio e da perseguição às forças que visam sobreviver para superar o capitalismo.
É a ideologia nazista e imperialista atualizada, pelos lemas: “Deus acima de todos” mesmo que desiguais; a família em primeiro lugar, mesmo que ela já não se identifique como tal; o Estado laico, com a presença da religião como base partidária; a segurança pública com o armamento privado; a educação profissional quando não há mercado para os profissionais que se formam; etc., que precisa ser contradita e combatida diariamente. Não existe luta política sem a disputa das ideias e, não existem ideias fortes, sem existirem causas fortes.

                                                                                                                     Ademar Bogo

domingo, 19 de janeiro de 2020

ATRAÇÃO E REPULSÃO


O filósofo humanista francês, Teilhard de Chardin, (1881-1995), jungiu no século passado, com esplêndida capacidade, o conhecimento biológico e metafísico que podemos transportá-los para a política dos dias atuais.
Para ele, a vida em si é uma propriedade universal da matéria cósmica. Nesse sentido, ela esteve desde o início, submissa às leis que guiaram as mudanças até chegar à evolução humana, quando a vida recebeu a contribuição da espiritualização do homem e do universo. E qual é a lei principal que sustentou esse processo evolutivo? Não é outra senão a lei da “atração” que, metafisicamente falando, poderia também ser denominada de “lei do amor”. Parecerá espantoso, mas, depois de conhecermos os argumentos do filósofo, compreenderemos com facilidade, porque estamos ameaçados, na atualidade, pela lei da “repulsão” que, movida pelo ódio, coloca-se contra a vida, à igualdade e a integração universal.
Para Chardin, habitualmente, somente consideramos a face sentimental do amor, porém, na plenitude da realidade biológica, o “amor” é a afinidade que existe entre um ser e outro ser, considerando, portanto, que não é privilégio da espécie humana a virtude da atração; com outros corpos vivos acontece o mesmo, porque, a atração é uma propriedade da vida e não apenas dos corpos.
O aprendizado principal a ser extraído dessa tese é que, se não existisse a atração não poderia haver nenhuma forma de organização e o universo como um todo, seria um composto de átomos individualizados espalhados, sem nunca terem a possibilidade de formarem um corpo. Ainda bem que o universo funciona de outro jeito e, um átomo atrai outro átomo, para formarem as células, estas, reunidas formam tecidos e os tecidos formam órgãos e os órgãos formam os corpos que se atraem e se relacionam.
A atração entre todos os tipos de seres cumpre a mesma função que a lei da gravidade. Encarnada nos corpos vivos, “a lei” transforma-se em “sentimento de união” responsável pelo desejo de ir ao encontro uns dos outros para formar organizações: familiares, grupais, de classes e também social quando os objetivos se combinam. Isso tudo é tão importante, que o filósofo converteu a atração em “amorização”, dizendo que ela é fundamental para garantir a integração da humanidade.
No entanto, sabemos que a atração não é a única força que atua sobre ou dentro dos corpos; há também a força da “repulsão” que age com a mesma intensidade e, em certos momentos também organiza grupos e classes que se insurgem movidas pelo sentimento de ódio. Forma-se, nesse sentido, uma dupla polaridade na mesma evolução: de um lado, a atração movida pela força do amor e, do outro lado, a repulsão movida pela força do ódio.
A repulsão movida pela força do ódio quando se torna hegemônica, acentua as atitudes destrutivas de modo tão evidente que as ofensas substituem as expressões de cordialidade e, a sociedade é tomada de assalto por um sentimento de inimizade. Os grupos repulsivos são facções que agem contra todos, inclusive contra os próprios aliados, porque o ódio é uma força repelente. Ele alimenta-se da prática de atitudes perversas das forças repulsivas, armadas de ideias nazistas; armas de fogo e do fogo como arma; agrotóxicos, leis, preconceitos e linguagem bruta, desbocada e ofensiva, lançadas contra todas as formas de vida e da unidade amorosa entre os seres. Sem justificativas, abre-se um período de violência destrutiva poucas vezes vistas nos períodos anteriores da História, quando agiam mais direcionadamente contra os inimigos humanos, agora, os inimigos são os humanos, as florestas, a cultura, a educação, as organizações, que embora frágeis, buscam resistir em torno do princípio da preservação da vida.
A repulsão contaminada pelo ódio cumpre a função de atuar em meio à crise do capitalismo, para salvaguardar os interesses dos grupos dominantes e seus aliados que, não suportam os próprios defeitos, por isso vingam-se contra os direitos sociais, contra a possibilidade de haver o mínimo de bem-estar social e, por isso também desrespeitam, descuidam e desarmonizam a convivência entre, as espécies, as nações, as etnias, as religiões e o entendimento sobre os valores culturais.  
Dessa forma buscam fazer funcionar “a sociedade do espetáculo”, com dois instrumentos poderosos: a imoralidade e a mentira. Para eles tudo aquilo que fere os seus interesses repulsivos, é visto como imoralidade, daí então, uma exposição de obras de arte, um livro, uma personalidade como Paulo Freire ou o conjunto dos professores etc., caem no crivo da falsa moral que se encarrega de criminalizá-los. O segundo instrumento é o da mentira repetida e multiplicada, para que os adeptos da repulsão se alimentem do ódio e tenham sempre alguém do lado oposto para culparem pelos problemas sociais. Enquanto isso, os verdadeiros culpados que defendem a família, são os mesmos a desrespeitam; os que defendem os direitos são os mesmos que os aniquilam; os que defendem a segurança são os mesmos que matam pessoas inocentes. 
 As investidas contra a vida em geral, desencadeadas pelas forças repulsivas, demonstra que a humanidade vive pressionada por uma permanente “pulsão de morte”. A indiferença e a atração ao descartável, justifica-se pela repulsão que vigora como força massacrante das possibilidades de preservação e evolução da vida em todos os sentidos. Viver, já não se trata de preservar, cuidar e reservar para as gerações que virão, trata-se de fugir do extermínio, chorar os mortos assassinados pela mão armada das milícias;  sofrer penas nas filas do SUS, do INSS e na busca de trabalho a espera de que a mentira repetida mil vezes, um dia venha a ser verdade, como estas de que “a economia está crescendo” e que “a oferta de emprego está aumentando”.
No entanto, enquanto eles mentem os dados levantados revelam que a economia mundial ameaça entrar em colapso. As pesquisas feitas pela OXFAN mostram que a renda dos 3,8 bilhões de pessoas mais pobres do mundo, no ano de 2018, caiu 11%, enquanto que, no mesmo ano, a cada dois dias surgiu um novo bilionário. Isso traz consequências para a economia mundial que ameaça entrar em colapso, devido à especulação financeira como ocorreu em 1929. A relação é muito fácil de ser explicada, significa que, se diminui o consumo e a riqueza acumulada em dinheiro vai para a especulação, diminuem os investimentos em produção, com isso deixa-se de gerar empregos e de arrecadar impostos. O Brasil vive intensamente este dilema. Se por um lado, o agronegócio, nos últimos anos cresceu e chegou a representar 20% do PIB, a indústria, segundo noticiam os jornais, nos últimos 3 anos, fechou 17 unidades por dia. A previsão é que até 2022 seguirá essa decadência. Portanto, o governo nas mãos das forças repulsivas, não apresenta nenhuma perspectiva de melhora.    
Por outro lado, devemos voltar-nos para a tese inicial da busca da “atração”. Como atrair e atrair-se? Devemos pensar que um processo de mudanças, precisa prezar pela associação das pessoas que pretendem valorizar às suas vontades. Há, na espécie humana, uma enorme fragilidade que acompanha a sua composição e facilmente revela os seus defeitos chamados de desvios para mal. Atraímo-nos para fazermos o bem e, aos poucos, parcelas dessa associação, em nome do prestígio e do poder, desviam-se para o mal nesse sentido, a atração vive entre pressionada por dois tipos de repulsão, uma que é de fora para dentro, vida de outras forças e classes, ou que vêm de dentro para dentro, criada no próprio corpo como frações oportunistas.
 O momento é perverso para nós que desejamos a atração. O vazio interno causado pela insatisfação civilizatória faz com que cada indivíduo busque fora de si os recursos para a satisfação e o prazer pessoal, por isso, consome e consome-se sem compreender que não existe a conservação do lado de fora sem a conservação do lado de dentro do corpo.
Em síntese, o capitalismo constituiu-se na principal força repulsiva e desagregadora da sociedade e, os capitalistas, cada vez menos em quantidade, encarnam o capital e apresentam-se como os controladores da atração dos pobres entre si. Fazem isto de muitas maneiras, mas, fundamentalmente, atraindo uma parcela de alienados para defenderem as suas políticas, com ensaios de mobilizações em diversos países do mundo para, em seguida, penetrarem com as forças de repressão e a legitimarem a ordem repulsiva pelas vias jurídicas.
Sabemos que não há atração pelo desinteresse e nem repulsão sem motivos. No entanto, para qualquer iniciativa, a organização, desde a reunião dos átomos no inicio da humanidade foi a principal escola. Sem a maioria, as forças da atração não se tornam vitoriosas e as forças repulsivas não se sustentam no poder. Ambos os lados precisam de causas para serem defendidos. Levamos vantagem, porque a causa da atração é sincera, a causa da repulsão é mentirosa e mesquinha.
A atração é então mais do que uma nova forma de entender a política, é uma necessidade obrigatória a ser satisfeita em benefício da reprodução da existência, da humanidade, das espécies e da sociedade estruturada em novas bases. A atração é uma luta permanente, local e internacional, para salvar a maioria da humanidade e de todas as formas de vida.
                                                                                                          Ademar Bogo

domingo, 12 de janeiro de 2020

AS CONSTRUÇÕES POLÍTICAS


            O conceito de “construções em análise” pertence a Freud, que o formulou em 1937, para dar crédito à Psicanálise frente à visão depreciativa que os cientistas alimentavam sobre a mesma.
            A preocupação de Freud é estabelecer o lugar e a função das duas partes que compõem a análise psicanalítica: o analista e o analisando. Ou seja, é a harmonização do encontro das duas pessoas que possuem duas tarefas distintas. Nesse caso, se à pessoa que está sendo analisada cabe a tarefa de recordar algo que foi por ela experimentado ou reprimido, ao analista resta completar aquilo que está esquecido, fornecendo elementos que permitam edificar as construções analíticas.
            Esse trabalho não ocorre propriamente como uma escavação em que o arqueólogo realiza em uma ruína antiga soterrada, isto porque, enquanto na ruína existem muitas coisas destruídas, na análise pessoal as coisas estão vivas e latentes. Mas, tal qual faz o arqueólogo que busca as colunas, as paredes e a ordem da estrutura da construção, o analista busca as lembranças, as associações e o comportamento do sujeito da análise.
            Trazendo para a política, as relações ficam um pouco mais complicadas, porque não se trata da investigação de uma ruína soterrada que a pesquisa do arqueólogo visa reconstruí-la, e  nem tampouco de um indivíduo em análise que quer reconstruir, por meio das lembranças a sua própria história. Ou seja, na política nos deparamos com coletividades, categorias, classes ou grandes contingentes de massas, elas mesmas arruinadas, que dependem de iguais habilidades dos arqueólogos e analistas para refazer as construções.
            Há dois elementos culturais que pesam muito quando se pensa em análise individual ou social, que são denominados de “tradição” e de “figuração”. Se com a tradição vivenciamos o passado, pela figuração vislumbramos o futuro, montamos cenários e planos. Nesse sentido, um doente que está em tratamento ou um sujeito que está desempregado, ou ainda, um conjunto de pessoas em luta, relacionam experiências vividas enquanto desejam algo que virá.
            Um detalhe importante é preciso ser colocado, tanto a tradição, quanto a figuração, não fazem parte do patrimônio exclusivo de uma só classe; ambos os elementos podem ser utilizados pelas forças dominantes e pelas forças dominadas. Os objetivos, se quisermos voltar à ilustração da ruína soterrada, depende de cada escavador. Um pode escavar com o objetivo de trazer de volta o passado e garantir que os registros históricos permaneçam para orgulhar e educar as futuras gerações; outro pode fazer o mesmo trabalho, no intuito de destruir provas.
            De outro modo ocorre com as análises das tradições marcadas por fatos históricos recontados por duas partes com os objetivos contraditórios. Se as gerações que nasceram próximas da segunda metade do século passado, fizerem um pouco de esforço, irão recordar que, por quase três décadas, frequentemente aparecia o nome de Nelson Mandela, condenado à prisão perpétua na África do Sul. Em 1994, já livre, candidatou-se à presidente da República e governou o país até 1999.   
            A luta de Nelson Mandela para as forças de esquerda, sempre representou um exemplo de resistência, de combate ao racismo e às injustiças sociais. Para as forças de direita ele sempre fora um incômodo. Preso em 1962 pela ajuda decisiva do sistema de inteligência dos Estados Unidos, não se rendeu e passou 28 anos de humilhação nos cárceres da África do Sul.
            Como todas as informações e experiências históricas pouco recontadas vão se apagando da mente humana, de um momento para outro, ao se assemelharem as situações, muitas lembranças vêm à tona e podem incentivar ou desmotivar as reações.
            Como também os interesses de classe são opostos, um fato pode ser visto e relatado de duas maneiras diferentes. Se as lembranças da luta e resistência do povo Sul africano contra o Apartheid, aparecem pintadas com cores pálidas nas mentes das gerações mais velhas e, praticamente nem entraram na mente das gerações mais novas,  percebendo que, em diferentes partes do mundo surgem muitas reações contra o racismo, as forças de direita aparecem e recontam a vida atribulada de Nelson Mandela, sugerindo pela análise política que “lutar é perder tempo”. Primeiro porque, insinuam os dominadores, que podemos amargar longos períodos de prisão e, segundo, porque a luta de classes é inútil diante da possibilidade de alcançarmos o objetivo figurado por meio da institucionalidade disputando pelo voto a presidência da República como fizeram os africanos do Sul ou como nós brasileiros com praticamente o mesmo tempo de enfrentamentos para elegermos o presidente do Brasil.
            Deveríamos levar em consideração o que disse o filósofo Walter Benjamin, quando tratou sobre o conceito da História que, “o passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção”. O índice misterioso é desvendado pela reabilitação das lembranças quase apagadas do cotidiano, ecos de vozes que emudeceram ou exemplos que cobram a reconstrução.
            O sujeito da analise histórica é sempre aquele que também se analisa. Os hábitos políticos cultivados a partir de certas referências de tempo fizeram o inverso, o analista analisa o analisando dando a ele as interpretações segundo as suas próprias noções de transferência. Quando essas interpretações pendem para a radicalidade, enquanto há evidências para a revolta, os esforços se coadunam e mantém viva a busca do objetivo figurado; quando as interpretações pendem para a acomodação, o reformismo e o censo de oportunismo levam à cooperação com os próprios dilemas e tiram a possibilidade da redenção do passado.
            Há em nosso passado histórico soterrado, ruínas de partidos, de estratégias e de programas que indicavam quais eram as intenções ingênuas. Do passado vêm-nos o eco de gritos de protestos, vem-nos a imagem de gerações torturadas e mortas que insistem para que as gerações do presente empenhem esforços para garantir a redenção.
            Escavar essas ruínas por meio da análise, para reconstruí-las teoricamente, é fundamental, para que os sujeitos da História do presente possam decidir o que deve ser rejeitado e o que deve ser ressignificado. Repetir aquilo que foi soterrado sem análise é reconstruir as mesmas bases que levaram à ruína.
            Temos como certo o que nos disse Benjamin, “...o passado nos dirige uma apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente”. São apelos das forças de direita e também de esquerda, mas principalmente daqueles que sonharam com a superação do capitalismo. Nada pode ser rejeitado ingenuamente e nem impunemente. O novo é o que se reconstrói durante e depois da escavação. O que será o novo? Somente a análise e o esforço da escavação nos dirão.
                                                                                              Ademar Bogo

      
           
           


domingo, 5 de janeiro de 2020

A GUERRA E A BARBÁRIE SOCIAL



            O ano mal começou e a política cobra de cada ato uma reflexão. Há indícios que a ignorância e a truculência imperem no ano de 2020. Mas, por enquanto não há motivos suficientes para temer o início e a realização de uma guerra mundial, nos moldes como foram a Primeira e a Segunda Guerra, quando, praticamente os países do mundo todo foram envolvidos.
            É importante considerar que, com o término da Segunda Guerra Mundial, o mundo foi dividido, na época, em duas partes, uma, influenciada pelos Estados Unidos e a outra pela União Soviética. De lá para cá, sempre que algum país percebe algum risco ou ameaça recorre a um dos lados que se coloca a favor e o protege. Essa prática vem continuando, mesmo após a queda do muro de Berlim em 1989 e o desfazimento do bloco socialista na década de 1990.
            No entanto, o imperialismo norte-americano, buscou, por meio da supremacia militar, influenciar os rumos do destino político dos países desde 1945. Não vem ao caso, destacar em detalhes, mas, nos últimos 70 anos, como se fosse um jogo de xadrez, nenhuma peça, em termos de alternativas do uso da violência foi descartada pelos Estados Unidos da América em suas intervenções.
            No período em que vigorou a política da “Guerra Fria”, havia uma reserva de cuidados em relação a qualquer iniciativa a ser tomada, no entanto, a partir do colapso político sofrido pela União Soviética, os Estados Unidos passaram a entrar no campo das disputas políticas com maior desenvoltura e desrespeito.
            O controle dos países “dependentes” e subservientes foi estabelecido, a partir da Segunda Guerra Mundial, por meio de diferentes táticas. Inicialmente lideraram as investidas de dominação, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outros. Grande parte dos países, principalmente os da América Latina, foram induzidos a contraírem dívidas que se tornaram impagáveis. Sentindo as ameaças das reações populares, uma “rodada” de golpes militares foi arquitetada e, diversos países viram as suas “democracias” serem substituídas por ditaduras militares, da noite para o dia. Duas décadas depois, devido ao desgaste administrativo das ditaduras, o império monitorou as aberturas políticas assegurando a ordem capitalista, até que, por necessidade política a partir de 2010, principiaram a quebrar a ordem antes válida para eles e, diversos governos foram destituídos com a manipulação das leis, vários deles foram obrigados a renunciar aos mandatos, e, outros, levados a julgamentos e condenados nos tribunais.
            No caso do Oriente Médio, as intervenções do imperialismo norte-americano foram mais incisivas. As guerras e intervenções, com o objetivo de assassinar lideranças importantes como: Saddam Hussein (2006); Osama Bin Laden (2011) Muammar Al-Gadaffi (2011), para citar alguns, em busca de controlar a região para dominar  exploração do petróleo.
            Nesse momento, mais do que perguntar “se haverá a terceira guerra mundial?”, é importante analisarmos as consequências das políticas intervencionistas que deixam para trás estados de barbárie instalados e que nunca mais voltam à ordem anterior. Por que não se estabilizam os países após a derrubada dos governos e as relações sociais se desarmonizam ainda mais? Pela visão intervencionista norte-america que, apesar de manter a atenção no funcionamento dos governos locais, investe na formação de “poderes paralelos”, paramilitares, que se encarregam de fazer o controle por meio da manipulação das reações populares ou pela perseguição e execução dos desafetos.
            Nesse sentido, enquanto essa estratégia intervencionista funcionar, “não interessa” aos Estados Unidos a declaração oficial da Terceira Guerra Mundial. No entanto, há processos profundos em andamento que afetam o mundo todo e, se não caracterizam a “Terceira Guerra, podemos considerar como batalhas abrangentes em torno de interesses particulares com consequências universais. O exemplo mais ilustrativo a esse respeito é a disputa pelo petróleo que, nos últimos anos, vimos ocorrerem conflitos no Brasil, com o golpe contra a presidente Dilma, a tentativa de invasão da Venezuela para derrubar o presidente Nicolás Maduro e a presença continua e criminosa do imperialismo no Oriente Médio, no Iraque, na Síria e Afeganistão. Temos ainda os conflitos comerciais em andamento e a especulação financeira.
            A tendência para os conflitos continuarem localizados ou não, depende das potencias contrárias, que sempre agiram em termos de estabelecer limites, até onde a intervenção pode ir, em termos de implementação das vontades imperiais, mas isto não alivia e nem controla o avanço do estado de barbárie que vai sendo instalado em cada lugar, aumentando assim o sofrimento de milhões de pessoas que buscam refúgio em outras partes do mundo ou morrem vitimas da violência local comandada pelas milícias armadas.
            Nesse sentido é que importa considerar que a guerra, sendo ou não mundial, não está distante de nós. Com características próprias, ela ocorre ao nosso redor no mesmo grau de violência da guerra oficial estabelecida. Se compararmos a guerra da Síria, em que estiveram presentes as forças estrangeiras da Rússia e dos Estados Unidos, principalmente, de 2011- 2018 foram contabilizadas 511 mil mortes. No Brasil, entre os anos de 2006-2016 foram assassinadas 543 mil pessoas. Isso representa uma taxa em torno de 32 mortos para cada cem mil habitantes. Essa taxa feita com todos os países da América Latina chega a 19,2 pessoas assassinadas por cada cem mil habitantes.
            Os capitalistas por meio da mídia, incluindo aí as redes sociais, ao longo do tempo vêm criando a cultura do extermínio em massa em nome da segurança pública, mas não o fazem responsabilizando o próprio capital que é a causa geradora das desigualdades sociais, responsabilizam os pobres e dentre eles os negros.
            Junta-se a isto, a base fundamental do pensamento intervencionista do imperialismo que é enfraquecer a organização política e rebaixar o senso crítico da população para que não consiga diferenciar o verdadeiro e o falso nas informações que formulam e divulgam. Investe em referências sentimentais e saudosistas como é o caso da família, da pureza sexual e da religião, quando na realidade tudo é feito em nome do mercado.
            Se a solução para os capitalistas é a guerra e a violência, para os povos a solução é a união internacional, para que, as forças que comandam as mesmas políticas globalizantes sejam combatidas, ao mesmo tempo em todos os lugares do mundo. A paz sonhada, está intimamente ligada à superação do capitalismo.
                                                                                                          Ademar Bogo