domingo, 26 de março de 2023

CONFLITO E CONSCIÊNCIA


            O filósofo Nietzsche ao trata da Genealogia da moral, nos mostrou que “o homem olhou com mau olhado por muito tempo as suas inclinações naturais e identificou-se com a “má consciência” (XXIV). Esse “mau olhado” poderia ter origem na necessidade de defesa das forças da natureza e no combate aos ataques dos animais e de ameaças climáticas. O ocorre que, no decorrer da História, todas as energias de combate e imposições voltaram-se contra os semelhantes humanos.

            A má consciência não é de tudo má. Ela é a demonstração dialética de que o errado é errado. O outro lado é o certo e, se nos envergonha o oposto, fazer o contrário, deveria consistir o caminho do enfrentamento. Na medida em que o mal não é combatido, nem com o mal e nem com o bem, mas com a justiça, é preciso estabelecer primeiro o que é justo e depois buscar alcançá-lo com os atos.

            O defeito da “boa consciência” é que os seus portadores aceitaram as pregações da ordem e passaram a desenvolver a crença na justiça dos tribunais. O crime é universal, mas o julgamento é singular. Um tribunal, de posse de uma lei, impõe o veredicto sobre a ofensa de cada ato; quando na verdade, o ato é a expressão de um comportamento coletivo de uma força particular formada com a “má consciência”

            A má consciência em nosso tempo, transformou o dever de servir em “poder de servir-se”. Joias e colares são pequenas expressões do luxo que energiza a corrupção do poder público. “Vender-se” é para certos meios o imperativo moral do agente que anseia prosperar sem o esforço do trabalho.

            No entanto, tal qual o animal selvagem que não escava a sua toca sem as unhas, o homem de má consciência não transitaria pelo mundo dos desvios sem os instrumentos do roubo. A grande derrota da civilização liberal foi entregar, o poder de decidir, entre fazer o certo e o errado ao indivíduo. As religiões pregam o livre-arbítrio a ser aplicado por um indivíduo que não é livre nem de si mesmo. A ética civilizatória não deveria ser uma questão de escolha se faço ou se não faço. O certo não poderia ter subdivisões no comportamento, um para o público e outro para o privado.

Ser ético em qualquer circunstância é um dever não uma obrigação. Se fazemos por obrigação, quando podemos enganar cometemos desvios. Não respeitamos a sinalização no trânsito por causa da presença do guarda ou do castigo da multa que deveremos pagar, mas, pelo dever do respeito à vida.

Mas o dever também nos chama a combater a má consciência em todos os demais aspectos de suas manifestações. Dos direitos sociais consta também o direito á mobilização, à greve, à ocupação e, principalmente, de reunião e organização. Assim como a força da luta não se cria individualmente, a consciência crítica não acontece fora da coletividade. Na medida em que os indivíduos portadores da “má consciência” se reúnem, porque desejam transformar em justo o que é injusto, o outro lado não pode ficar se esquivando atrás de outros indivíduos que possam atuar em sua defesa na institucionalidade.

A consciência crítica é decorrente da luta de classes. Portanto, a classe é a substância que sustenta a consciência. Paralisados diante um governo, e amedrontados pelo perigo do fogo das armas como se elas representassem um vulcão que tudo pode queimar,  nada se pode fazer. Quando os métodos não funcionam é porque as táticas foram saturadas. É evidente que ninguém fará mudanças pulando para dentro de um vulcão, mas contornando-o.

As forças maldosas sempre usam as mesmas saídas. Quando perdem temporariamente  parcela do poder institucional, agem violentamente com a parte que lhes sobra. Ou seja, perdendo o poder executivo, atuam com o legislativo com aprovação de leis, criação de CPIs e com parcelas do judiciário. Na atualidade o crime organizado tornou-se um braço armado da política e, setores evangélicos o braço religioso. Mas todos esses fragmentos não formarão a hegemonia, se formos capazes de atrair, não para dentro dos governos, mas para as lutas sociais, a maioria dos trabalhadores e as massas populares.

É hora de mobilizar, realizar grandes acampamentos que permitam simbolizar a força da consciência de combate aos redutos mal-intencionados. Renovar as táticas é renovar o fôlego das ações. A má consciência não pode ter razão porque ancora-se no direito à propriedade ou na representatividade alcançada pelo voto.

Ao contrário dos portadores da “má consciência” que prometem crueldades, nós prometemos a nossa força e a nossa consciência. Mas não basta apenas prometê-las é preciso colocá-las a serviço das mudanças.

Não se pode esperar por algo que não virá. Tudo o que há de vir há também de ser feito.

                                                  Ademar Bogo

domingo, 19 de março de 2023

A IMORALIDADE GENÉTICA

 

         O filósofo alemão Jürgen Habermas escreveu um livro, em 2001, com o nome de, “A constelação pós-nacional” e, dentre os vários assuntos pretendeu discutir a clonagem de seres humanos, considerando ele, ser uma “Escravidão genética”, isto porque, a princípio sabemos que o patrimônio genético pertence ao indivíduo que o utilizará para fazer o seu próprio destino. Na medida que essa lógica ética é desfeita, forma-se uma ambiguidade entre “quem somos e quem queremos ser”.

            O problema é complexo, mas o entendimento é simples. Na História da Filosofia encontramos a mesma sustentação levantada por Habermas que: “Ninguém deve dispor de uma outra pessoa e controlar as suas possibilidades de ação de tal forma que seja roubada uma parte essencial da liberdade da pessoa dependente. Essa condição é violada quando uma pessoa decide o programa genético de uma outra” (p.210).  

            A escravidão tendo sido vista na História, primeiramente como “Modo de produção escravista” e teve uma possível duração, desde 4 mil anos antes de Cristo até 476 depois, quando os bárbaros tomaram Roma e assassinaram Rômulo, daí em diante passou a vigorar o Feudalismo. No entanto, como se fosse uma reprodução genética, no período do Brasil colônia, a forma de trabalho escrava foi implantada por Portugal, trazendo, nos corpos acorrentados a força de trabalho do continente africano.

            Feita a abolição da escravatura brasileira, os descendentes dos escravizados, na sua totalidade, portadores da genética de ancestrais africanos, passaram a viver como seres de condição inferior, de índole diferenciada e de comportamento moral duvidoso. O único critério válido para a preservação desses contingentes de massas rejeitados, foi a força de trabalho de baixo custo.

            O trabalho, geralmente com baixa remuneração, manteve vinculadas, a genética dos senhores, proprietários brancos, com a genética dos descendentes dos escravizados pretos. Trata-se, portanto, de um racismo estrutural histórico, de fácil localização, como foi amplamente divulgado, que trabalhadores baianos foram resgatados do trabalho escravo de vinícolas no Rio Grande do Sul.

            O critério dessa análise é filosófico, mas o dado é estatístico. O Rio Grande do Sul é o Estado que possui o índice de envelhecimento de sua população, mais alto no Brasil. Os dados do IBGE mostram que, em 1970 para cada 100 crianças e adolescente de 0-14 anos, havia 14,8 idosos acima de 60 anos. Em 2020, esse número passo para 103,3 idosos para cada 100 crianças e adolescentes.

            A tradição do trabalho combinado com o dever moral, acompanhou a evolução produtiva no Sul do país. Mas, os avanços tecnológicos, louvados pelos devotos da modernização e da globalização, não alcançaram ainda dispensar a presença humana dos ofícios produtivos cotidianos.

            O Brasil, no ato da assinatura da Lei Áurea em 1888, possuía cerca de 17 milhões de pessoas, na sua grande maioria habitando o meio rural e, por alto, estimam que foram libertos 700 mil escravizados. Todos sem nenhum direito, apenas um dever, o de deixarem as fazendas e migrarem para as cidades. Essa tendência continuou e chegamos hoje a 85% das pessoas vivendo em centros urbanos.

            De outro lado, temos o Nordeste do Brasil e dentro dele o Estado da Bahia que possui 81,1% do total de sua população preta; consequentemente portadora do sangue dos ancestrais escravizados. Pelas tendências históricas levantadas, percebemos que, a busca da força de trabalho de pessoas pretas para a produção agrícola, a genética escravista volta os olhos para a África, representada aqui pela Bahia, por ter a maior concentração populacional preta fora do continente.

            Mas o espanto maior é que, se o processo de escravização do período colonial foi sustentado pela força da lei, as novas formas de produção escravistas também se apoiam nas crueldades jurídicas, principalmente aquelas estabelecidas pela reforma trabalhista de 2018, com a qual a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT - de 1940, foi estraçalhada, dando espaço para outras formas de exploração, como é o caso do “trabalho intermitente”.

            O pequeno período pelo qual passamos governados pelo nazifascismo, entre 2019-2022, demonstrou como as medidas desemancipadoras andam depressa e as manifestações autoritárias das ideias, expressam o vigor da genética no âmbito social, teimando em não deixar desaparecer as formações estruturais de dominação do passado.

            De certo esse racismo é mais que genético e é muitíssimo disfarçado. A visão de que o preto deve ser serviçal obediente da elite branca, reproduz-se nas cozinhas das mansões, por onde passam diariamente, cerca de 6 milhões de empregadas domésticas. Isso ocorre também no lazer. No ano de 2019 cerca de 6 milhões de turistas visitaram a Bahia, na sua grande maioria foram servidos por trabalhadores e trabalhadoras pretas.

            Compreende que o capitalismo, acima de tudo, é quem permite por intermédio da propriedade privada a reproduzir as formas de trabalho mais desumanizadoras já existidas. Mas o nosso país ultrapassa todas as balizas da civilização. Na medida que o preto volta  a ser escravizado nas formas de trabalho, o índio dizimado para ceder o seu território para a extração do ouro e a criação de gado e quase a metade da população passa extremas necessidades, não se pode dizer que o capital tem a razão. O seu controle é fundamental em todos os setores. Por isso, enquanto houver um governante associando-se à iniciativa privada para fazer a economia crescer e gerar mais empregos; enquanto as altas taxas de juros recompensam os investidores com o dinheiro público e o Estado propondo-se garantir a ordem para fazer funcionar uma sociedade desigual, estaremos a mercê das ilusões.

          A genética existe para que as etnias se reproduzam preservam em guardem suas belezas, valores e caraterísticas estéticas e não para marcarem a linha divisória dentro da sociedade. A igualdade social virá com a sociedade de princípios igualitários, mas, fundamentalmente, se lutarmos para que ele aconteça. Enquanto ouvirmos ou falarmos sobre a existência da escravização, estaremos mais perto da barbárie do que do socialismo. Mas sito nos coloca diante do ponto de emergência que é a luta e insurreição popular.

                                                                       Ademar Bogo

sábado, 4 de março de 2023

FAZER MAIS E FALAR MENOS


            A ironia é um recurso antigo. Atribuída ao filósofo Sócrates, por ter sido um astuto observador do profundo desconhecimento dos indivíduos sobre si mesmos e, por essa razão, a ignorância e a incoerência habitavam as mentes e os comportamentos dos cidadãos atenienses.

             O filósofo dinamarquês, Kierkegaard (1813-1855), nos diz em seu livro, “Conceito de ironia” que, “A forma mais corrente de ironia consiste em dizermos num tom sério o que, contudo, não é pensado seriamente”. Pode significar também o contrário; ao dizermos, em tom de brincadeira algo que queremos tornar sério, no entanto, raramente é levado a sério.

            Interessa, portanto, o irônico parecer diferente do que é. Suas expressões ou esconderem a seriedade na brincadeira ou a brincadeira na seriedade. Passando-se por bom, distrai as suas fraquezas; fingindo ser mau, esconde a insegurança e a covardia.

            Cotidianamente somos vítimas de elaborações irônicas vindas, principalmente dos políticos profissionais, que sempre se colocam numa posição de conduta ilibada e, todas as decisões tomadas, visam o bem da nação. O presidente da República brasileira que governou o país entre os anos 2019-2022, utilizou-se muito da ironia para intimidar os opositores e animar os seus aliados. Contra os primeiros, ameaçava com o golpe de Estado, para impor a ordem e imperar, única e soberanamente como o mais novo ditador das américas. A favor dos aliados utilizava o mesmo golpe como promessa. No final revelou-se o esplêndido covarde incapaz de permanecer sequer em contato e próximo dos alucinados seguidores. Hoje figura como um mito desfeito, sendo objeto de chacotas e formulações irônicas, quando se quer tomar como um exemplo de negação, incoerência e repugnância a um tipo de autoridade imprestável.

            Em outra frente, diferentes setores da sociedade civil, da política e da mídia, que impulsionaram a vitória do mito desasado, acima descrito, ao perceberem o real concreto produzido pelo ranço fétido dos preconceitos, capitaneados pelos representantes do status quo e os setores arrebanhados, a quem prometiam um mundo de melhorias e vantagens, ironicamente mudaram de opinião e, como se voltassem atrás para recolherem uma moeda desprezada para usá-la como troco, passaram a elogiar, defender e a ficarem próximos de quem queriam distância. Os pobres, vermelhos, refugados ainda lhes são úteis.

            Os representantes dos monopólios da comunicação representam bem as inversões irônicas. Por vários anos empenhados em destruir a esquerda, formaram opiniões negativas contra ela. Depois, senão revertidas, mas ao utilizarem os crimes, falcatruas, desmandos e incompetência da direita governante, aliviaram o teor das críticas, numa demonstração de alinhamento, com a intenção de enquadrar, no momento seguinte, o novo governo eleito. A defesa das altas taxas de juros, as irresponsabilidades do agronegócio, a liberdade do mercado e a defesa da propriedade privada, permaneceram no ideário de tais poderes emissores da ironia, mas voltam a pontuar aspectos dos discursos de campanha com as reações populares em andamento.

            Mas a ironia é democrática e, também nós podemos ser alcançados por ela. Se as forças de direita covardemente erram quando ameaçam destruir as forças de esquerda, sem terem as condições para isto; as forças de esquerda erram quando ameaçam impor ao capital certos controles, depois se acovardam diante das leis e, recolhidas entre as paredes da governabilidade, emitem discursos que agradam o mercado e os defensores da “responsabilidade fiscal”.

            Não precisamos nos estender aqui, os exemplos, ironicamente já “pululam”, exaltam-se e revelam que, a aparente coragem de brigar com o ministro da Fazenda, por centavos no preço dos combustíveis, representa a verdadeira covardia, de não seguir a linha dos discursos de campanha,  e fazer uma revisão da privatização da Petrobrás e desvincular as vendas do dólar e do controle do mercado externo. Somente dizer que: “O petróleo é nosso!”, não baixa um centavo sequer o valor do litro de gasolina no abastecimento de nenhum veículo.

            O mesmo ocorre com o latifúndio e as grandes propriedades que não cumprem a função social no meio rural. O próximo embate irônico voltado para a criminalização, será sobre as ocupações de terra. Os defensores da governabilidade, defensores verbalmente da reforma agrária, com medo de ferir os interesses do agronegócio, serão incapazes de darem um passo na direção da distribuição da terra. Oferecerão em troca, para esfriarem os conflitos, créditos subsidiados para os assentados. Irônico será, se os representantes dos movimentos aceitarem e, para não comprometerem o governo, se recolherem para trás da agroecologia.

            Devemos superar a ironia presente na política através do pensamento sério. As responsabilidades históricas devem ser enfrentadas com a coerência da certeza de cada passo. Iludir-se com as palavras, é iludir, iludindo-se de que, pelo simples direito de falar, tudo podemos. O poder, é verdade, está também nas ideias, elas ajudam estabelecer um programa, com metas definidas, mas, a força das ideias precisa da força das ações e, ironicamente, se não se pode falar o que não se pode fazer, deve-se fazer o que não se pode falar. É o que nos cobra o tempo presente: “Fazer mais e falar menos”.

                                                                                                                          Ademar Bogo