domingo, 29 de março de 2020

ÚTIL E INÚTIL



             E eis que de repente a civilização vira um caos.  A rejeição pelo contato físico tornou-se um valor e o silêncio passou a povoar as ruas, os estádios, os clubes, as praias e os cemitérios; tudo, como diria o filósofo Hegel, por causa do “espírito objetivo” que vaga sem ser visto, mas, que mesmo sem consciência se dirige ao lugar mais sensível no humano, os pulmões de onde sopro que mantém a vida.
            A morte por asfixia para, as multidões, parece tão certa como o é para um indivíduo condenado à forca. A sensação é de que, mais dia, menos dia, virá a execução, a não ser que nos escondamos para que o vírus não nos ache. Então surge o dilema, se não escondermos faltarão leitos e respiradores, se nos escondermos faltará comida. A conclusão é simples: chegou o momento em que a civilização, para além da classificação das classes sociais, deverá classificar agora, os úteis e os inúteis para a sustentação desse imenso campo mundial, cuja produção mais acelerada é o Coronavirus.
            Nos textos do francês Lévis-Strauss, encontramos a frase: “A História não produz acontecimentos inúteis”. De certo, porque, não há só acontecimentos bons ou ruins, há também aqueles que são bem ou mal interpretados. Sustos sempre atiçam mais as atenções e obrigam a prestar mais atenção em detalhes que, na normalidade, pouca importância é dada.
            Sendo assim, a evolução do capitalismo, de um momento para outro, leva-nos de volta aos seus próprios fundamentos, aos princípios da Revolução Francesa: “liberdade, igualdade e fraternidade”, tão importantes para os burgueses da insurreição de 1789.
            Para muito além das palavras escritas estão os interesses dos formuladores desses princípios. A liberdade, desde o início do capitalismo nunca foi vista de acordo com  a definição do filósofo Renné Descartes que, “A liberdade consiste unicamente em que, ao afirmar ou negar, realizar ou enviar o que o entendimento nos prescreve, agimos de modo a sentir que, em nenhum momento, qualquer força exterior nos constrange”; mas, de acordo com as determinações burguesas que queriam a liberdade dos servos para poderem contratá-los como empregados, mediante o pagamento dos salários. Por isso, o principio da igualdade era muitíssimo importante, porque, somente podiam vender a força de trabalho e entregá-la diariamente, aqueles que respondessem por si próprios e, como proprietários de uma mercadoria especial, igualavam-se aos proprietários do dinheiro. Como donos, podiam realizar a troca e, se achassem conveniente, assinar um contrato assegurando aquele negócio.
            Enquanto os trabalhadores sempre foram compreendidos como trabalhadores, os capitalistas, embora muitos inseridos no trabalho produtivo, afirmaram-se como “homens de negócio” e, aqui já podemos proceder a primeira comparação entre utilidade e inutilidade social, isto porque, apenas se negociam as mercadorias quando elas estão produzidas. Dessa maneira, todos são considerados “livres” e “iguais”, mas, ao contrário dos capitalistas, os trabalhadores nunca podem faltar ao trabalho.
            Na atualidade compreendemos, a veemência com que o governo, empresários e comerciantes defendem o fim da quarentena para os trabalhadores, porque sem eles a economia para. Então, podem ser confinados os idosos e as crianças, mas acima de tudo,  os jovens, homens e mulheres, sob a argumentação de que eles possuem a “capacidade da resistência”, devem suspender o isolamento porque voltar ao trabalho é o que interessa. É importante considerar que há setores essenciais que não podem parar, na área da produção, comercialização e serviços, mas é necessário que haja organização para que os trabalhadores envolvidos tenham garantias de que a vida estará sendo preservada.
            No entanto, “organizar” e “garantir” são verbos que os capitalistas não sabem conjugar, isto porque, em primeiro lugar, do ponto de vista da produção e da comercialização, o sistema é completamente anárquico e competitivo. Cada capitalista produz a quantidade que achar e, pela concorrência, mesmo sendo componentes da mesma classe social, enfrentam-se em busca de maiores lucros. Em segundo lugar, do ponto de vista das garantias, na grande maioria das vezes, o cuidado com a vida dos trabalhadores é desprezível.
            A ilusão de que os avanços tecnológicos sustentam o progresso e trazem melhorias sociais, revela que, isto é verdadeiro para aquilo que interessa ao mercado e não para aquilo que interessa vida de quem trabalha. Tome por exemplo a “mascara”, que há décadas é usada em hospitais pelos profissionais da saúde para preservarem a própria vida, e, de repente ficamos sabendo que ela deixa de ser eficiente após duas horas de uso. Por que a tecnologia não evolui em certos setores?
            Claro fica também, o temor do governo de que possa haver mobilizações das massas mais pobres. Nesse sentido há duas contradições produzidas pela civilização, a serem apresentadas: a primeira diz respeito ao grau de empobrecimento da população que não possui reserva alguma para suportar qualquer imprevisto. Mas, são essas massas já desconsideradas pelo capital, que os comerciantes, defensores do Estado “não intervencionista na economia”, esperam para gastarem o auxilio temporário das políticas públicas. A segunda contradição é  evidência desprezível do princípio da “fraternidade” criado na Revolução Francesa que os burgueses jamais puseram em prática e, o Estado capitalista quando pratica é na forma de esmola pública. Não nos enganemos, controlada a pandemia, os governos empenhar-se-ão em salvar as empresas, em detrimento do sofrimento dos miseráveis do mundo.
            De outro modo, reaparecem as deficiências das organizações de classe, que, não apenas nesta pandemia, mas também em outras catástrofes naturais, já não possuem mais militantes dedicados à socorrer, mobilizar e organizar os grandes contingentes sociais que não encontram canais para expressarem as próprias vozes.
            Voltando ao pensamento de Lévis-Strauss, que “a História não produz acontecimentos inúteis”, de fato este do Coronavirus mostra que, se são os trabalhadores que devem interromper a quarentena enquanto os capitalistas podem ficar em casa, inúteis são os capitalistas; se é a fraternidade das pessoas de boa vontade e as políticas públicas do Estado que devem socorrer as pessoas mais pobres, inúteis são os capitalistas. Se quisermos estender a nossa análise, podemos perguntar aonde está a fraternidade capitalista internacional? A primeira coisa que lembram de fazer os arautos da globalização é fechar as fronteiras repetindo o gesto dos mais atrasados nacionalistas. Vemos sim é a disponibilidade de cubanos e chineses estendendo as mãos para quem queira agarrá-las para amenizar o sofrimento humano.
            Não há nenhum vestígio de fraternidade capitalista e nem de solidariedade do imperialismo. De certo é porque essas atitudes não cabem no mundo da rapinagem que, ao longo do tempo ensinou a explorar e a realizar guerras. Quem vive de negócios não pode ser fraterno e, quem tem a guerra, a intervenção militar e os bloqueios econômicos como práticas homicidas, não pode ser solidário. Portanto, fica evidente que o mundo não precisa do capitalismo e nem do imperialismo. O que pode salvar a civilização é a solidariedade. 
Por sua vez, se falta de solidariedade para atender, organizar e mobilizar as massas empobrecidas para que se protejam, inúteis são também os partidos políticos e as organizações de classe que já, não tendo organização nem trabalho de base, esperam que o governo pacifique o povo para que ele possa, no mês de outubro, votar nos candidatos de consumo apresentados nas telas das televisões.
A humanidade vencerá o Coronavirus e sairá muito diferente desta crise atual. Resta saber se nós, revolucionários ou não do mundo inteiro sairemos diferentes. Se as entidades de esquerda modificarão suas posturas. Se nada de novo aprendermos, nada de novo saberemos praticar e, o capitalismo cambaleante, continuará a fazer vítimas por todos os lugares do mundo.  
                                                                                             

domingo, 22 de março de 2020

LÁGRIMAS FRIAS DA GLOBALIZAÇÃO


      
            Na década de 1970, os capitalistas do mundo inteiro saudaram a chegada da globalização como sendo a decisão mais refinada da História da civilização e, insurgiram-se como fizeram os burgueses das revoluções liberais realizadas na Europa, na primeira década do século XIX. O liberalismo e o neoliberalismo figuraram como modelos inovadores das relações produtivas, comerciais e especulativas, estas, mais recentemente, lideradas pelo capital fictício, viciado na valorização do valor por meio de juros e aplicações acionárias.
            O liberalismo do século XIX e a sua reedição na última metade do século XX, atendendo pelo nome de neoliberalismo, trouxeram a determinação e o desejo de empurrar o Estado para cuidar de funções específicas, sem poder para interferir na liberdade dos capitais. A partir deles, prevaleceu no cenário social, a liberdade do indivíduo produzir qualquer coisa, sem se importar com os limites da oferta; comercializar, considerando a ansiedade da procura; consumir sem medir os limites do endividamento; e, especular sem respeitar os limites de arrecadação dos Estados que se tornaram reféns das dívidas públicas.
            Com tais determinações, nas últimas décadas, os governos, dos países pobres e ricos, comportaram-se como verdadeiros negociantes do patrimônio público e entregaram para uma parcela do capital produtivo, grande parte das riquezas, bens e serviços; ficando responsáveis pela articulação entre os poderes legislativo e judiciário, para justificarem e reconhecerem, política e juridicamente as exigências globalizantes do famigerado modelo neoliberal.
            Dessa maneira, em pouco tempo, a visão cosmopolita dos capitalistas levou, por intermédio da produção, comercialização e especulação, o capital para todas as partes do mundo, provocando crises estruturais incontroláveis. Não é exagero afirmar que a humanidade encontra-se neste momento sob duas ameaças exterminadoras: a globalização com o seu modelo neoliberal e o Covid–19. Se a primeira limita o acesso ao meio social pelo desemprego, violência e exclusão do consumo e dos serviços públicos, a segunda, limita pelo risco da contaminação no contato com os nossos semelhantes. E, as duas medidas indicadas pelos governantes e capitalistas para a humanidade enfrentar estas ameaças é: ficar em casa e esperar.  
            Com o avanço da globalização, as crises que eram cíclicas e conjunturais passaram a ser estruturais. A diferença entre uma crise estrutural e as outras tantas que ocorrem conjunturalmente, é que, enquanto as segundas acomodam-se ou desaparecem depois de certo tempo; a primeira permanece e, somente deixa de existir se houver mudanças na própria estrutura de sua formação, para que, a parte ruim seja superada e deixada para trás.
            Não sabemos quanto tempo, a infecção do Covid-19 durará e quantas vítimas enviará aos cemitérios do mundo. O que sabemos é que a pandemia se reproduz socialmente e que, somente é possível diminuir os seus impactos, com organização social, disciplina e presença eficiente do Estado, tudo o que o individualismo neoliberal fez desaparecer ou enfraqueceu. Neste sentido, é importante prestar atenção no comportamento dos governantes, responsáveis por liderarem a superação das crises; a quem procurarão salvar por primeiro: os indivíduos doentes ou as empresas aéreas, os Bancos e o capital especulativo?   
Já é comum encontrar nos textos escritos por estudiosos do capitalismo, que a quantidade de mortes geradas pelo Covid-19, não preocupam os estrategistas que encarnam o capital. Para eles, preocupam os danos do mercado acionário, os lucros e a valorização do valor do capital e, acima de tudo, adeptos da teoria de Malthus, expõem que as causas da crise, localizam-se no crescimento exagerado da população e no aumento da expectativa de vida de vida dos idosos. Por isso, para eles, o Covid-19 atingindo as gerações mais velhas, improdutivas e causadoras do déficit previdenciário, trará alivio e renovação na oferta da força de trabalho e equilíbrio nas contas públicas.
            Independentemente dos capitalistas e de suas opiniões, o certo é que, a pandemia, na medida em que formos produzindo anticorpos, o Covid-19 passa a causar os efeitos que os demais vírus da mesma família vêm causando, podendo ser eliminado ou, pelo menos controlado por intermédio, provavelmente de uma vacina específica. O que não há perspectiva de solução é a crise das diferentes formas de capital que já evoluiu para uma crise permanente da civilização, entrando já na linha da barbárie social.
Para explicar de maneira simplificada este diagnóstico, digamos que o capital ramificou-se afirmando-se sobre dois pilares. O primeiro sustenta diretamente a produção, a circulação, a troca e o consumo de mercadorias. Esse capital, ou essas formas de capitais particulares, atuam na busca da reprodução centrada na exploração e acumulação e, em grande medida, dimensionam o Produto interno Bruto – PIB – que, na atualidade, somando tudo aquilo que se produz em um ano no mundo, alcança aproximadamente US$ 70 trilhões de dólares. O segundo pilar é represento pelo capital parasitário e sustenta a especulação. Essa forma particular de capital visa a sua reprodução por meio de juros, rendimento no mercado de ações ou na compra de títulos da dívida pública. É importante considerar que, em muitos casos são os mesmos capitalistas que atuam nos dois sentidos, isto porque, na medida em que os rendimentos do capital produtivo não podem mais retornarem à produção, os capitalistas deslocam o excedente para a especulação, por isso, esse capital fictício ultrapassou os resultados do capital produtivo em quase 10 vezes, aproximando-se de US$ 700 trilhões de dólares que circula pelo mundo sem ter o que comprar.
            Em termos de perspectivas, duas são as consequências a serem consideradas. As economias globalizadas após saturarem os mercados, impuseram a crise mundial de crescimento e, em todos os países, as taxas pífias já se assemelham, oscilando entre zero e 2%, com exceção de alguns países da Ásia como índia e a China. Isso se deve ao liberalismo produtivo, impulsionado também pelas novas tecnologias que aprofundaram a crise de subconsumo, seja pelo excesso de oferta de mercadorias, aumento do desemprego ou pelo endividamento da população agora inadimplente. A lógica é de fácil entendimento: na medida em que sobram produtos, a indústria desemprega e os desempregados que antes consumiam, deixam de consumir e, a população que teve acesso aos crediários, não podendo pagar as suas dívidas, desaparece das compras; dessa forma, o poder da estabilização econômica e social creditada à força do mercado, já não acontece.
            A segunda consequência diz respeito à dívida pública que, somando o que os países devem para os capitalistas especuladores, chega a US$ 253 trilhões de dólares. Apenas para lembrar, acima dissemos que a soma do PIB mundial chega a US$ 70 bilhões de dólares. O valor dessa dívida pública brasileira atingiu R$ 4.248 trilhões de reais, sendo que o produto Interno bruto chega a R$ 7,2 trilhões de reais, mais da metade do que produzimos em um ano estaria comprometido se o montante da dívida fosse paga. No entanto, como apenas os juros decorrentes dela são pagos, R$ 350 bilhões de reais sairá do orçamento da União  para quitar os juros da dívida em 2020.
            É no montante da dívida pública que se insere o capital especulativo. Esse capital vem exigindo reformas que visam diminuir os gastos governamentais com outras despesas, como previdência, saúde, educação e outros serviços, para garantir o pagamento desses juros da dívida. E, em busca de ludibriar as populações, os governos mentem dizendo que as reformas irão “trazer melhorias”. No Brasil, já ouvimos que as reformas trabalhista e da previdência aumentariam a oferta de empregos, nada disso aconteceu. A estimativa de crescimento para este ano de 2020 está próxima de zero. Agora, a atenção se volta para a reforma tributária e a reforma política, que, por mais que sejam importantes, não respondem aos dilemas econômicos e sociais, porque a crise do capitalismo é estrutural; as reformas apenas manejam as despesas para garantir o pagamento das dívidas aos credores parasitários e para subsidiar os capitalistas que não suportam ter perdas econômicas.
            Por sua vez, sentido a insegurança no mercado de ações, o capital fictício de US$ 700 trilhões de dólares, cuja metade está aplicado nas dívidas públicas, a outra metade gera ainda mais instabilidade econômica, porque, ao migrar para os investimentos que materializam o valor como o ouro e principalmente o dólar, obrigam os governos a gastarem, quase sempre sem sucesso, as suas reservas para enfrentarem também esse tipo de especulação.
            Por fim, com a globalização e a pandemia do Covid-19 ficou evidente, para quem quiser compreender a relação intima que há entre o Estado capitalista e o capital. Desde a década de 1970 que os registros escritos mostram, que os capitalistas tornaram-se adeptos das privatizações, defensores da ideia de que o Estado precisava ficar fora dos investimentos econômicos e entregar para a iniciativa privada a maior parte do serviços. Em outras palavras, eles sempre defenderam que era preciso entregar a eles, os resultados econômicos obtidos no período keynesiano, iniciado logo após a crise de 1929, quando os estados assumiram a responsabilidade de fazer as economias crescerem.
            Agora, após terem dilapidado o patrimônio público e incapazes de reverterem a crise de crescimento, os capitalistas recorrem ao Estado para que ele repasse, na forma de créditos e subsídios ou recompre as empresas que foram privatizadas por meio da “poupança pública”, mesmo que isto afronte os direitos sociais adquiridos em épocas passadas. Apenas dois exemplos, na Itália no mês de fevereiro desse ano, já fazia 17 meses que as atividades industriais estavam em declínio; o governo italiano anunciou a injeção de 3,6 bilhões Euros na economia. No Brasil, há poucos dias, apesar de todos os contingenciamentos de gastos, o governo anunciou a liberação de R$ 147,3 bilhões de reais, além de prometer socorrer as empresas aéreas e outras “áreas necessitadas” ameaçadas de falência.
            O momento é difícil, mas esperançoso. Há sinais positivos mostrando que na essência humana existe uma enorme reserva de solidariedade e de preocupação com vida alheia. Aos poucos, como sempre ocorreu na História, as respostas tenderão a surgir para superar os modelos econômicos egoístas e os projetos políticos irresponsáveis e populistas; com a consciência universal de que, as consequências futuras devem ser combatidas nas causas do presente, a humanidade seguirá em frente.
                                                                       Ademar Bogo
           
             

domingo, 15 de março de 2020

A CRISE DO CAPITAL E SUA SUPERAÇÃO

Todas as explicações apresentadas pelos analistas e governantes sobre os dilemas atuais, caracterizam, na maioria das vezes como a existência de uma “crise econômica”, na verdade trata-se de uma “crise do capital”. Qual é a diferença? Enquanto a primeira poderia ser revertida com alguns acertos entre o movimento da produção, circulação, troca e consumo, a segunda, devido ao excesso de capital especulativo, impede que os instrumentos criados para facilitar as intervenções do Estado, por meio das políticas dos Bancos Centrais que, até certo ponto administravam as crises, tornaram-se insuficiente para pôr em ordem a desordem criada por esse tipo de capital. Delineando mais especificamente os dois tipos de crise, enquanto a econômica acontece por causa da superprodução ou do subconsumo, a crise do capital acontece pela superacumulação.
De imediato podemos perceber a gravidade do momento histórico em que vivemos. Para solucionar a crise econômica, bastaria aplicar as receitas já experimentadas no passado, que giraram em torno de investimentos; abertura de novos mercados; facilitação de créditos e até mesmo a guerra como forma de destruir mercadorias. Por outro lado, essas medidas não se encaixam para resolver a crise do capital, isto porque, a sobreacumulação financeira precisa continuar crescendo por meio da especulação e, esse movimento que comanda as dívidas públicas, impede que os Estados atuem ao mesmo tempo em que o mercado do “capital fictício” aplicado nas bolsas e outras formas de juro, visando a capitalização por meio da renda do sobrevalor, já não se sustenta.
Os dados nos mostram cotidianamente que o capital produtivo já não consegue acompanhar a capitalização alcançada pelo sobrevalor especulativo, pois, enquanto o primeiro representa aproximadamente, somando a Produto Interno Bruto – PIB - de todos os países $ 70 trilhões de dólares, o outro capital, o fictício, que circula sem ter base material de sustentação, reproduzindo-se pela especulação, já alcança a cifra de $ 700 trilhões de dólares. Temos então no mundo, 10 vezes mais dinheiro do que mercadorias. Este capital circulante é o responsável pela crise mundial que segue as suas próprias leis, tornando-se assim, incontrolável.
Karl Marx já havia percebido no seu tempo, por volta de 1870, que o sistema de crédito e os instrumentos que gera para si mesmo (dinheiro, crédito, etc.) está fora de nosso alcance. Se esse sistema já era intocável naquela época, o que dizer de hoje que as transações são feitas por supercomputadores que agilizam os deslocamentos das aplicações em frações de segundo.
Esse funcionamento acelerado da especulação financeira ganhou ainda mais importância com a implementação da “globalização”, raramente percebida. Nos acostumamos a ver a globalização pelos seus aspectos concretos, no entanto, quem de fato se impõem e provoca as crises contemporâneas, é esse “forma abstrata” de capital que  interage para além das fronteiras, com a mesma naturalidade de quem vai ao caixa eletrônico sacar dinheiro e encontra ali apenas uma máquina disponível, livre para fazer qualquer operação, sem ter sequer por perto nenhum funcionário.
Na medida emque, com a facilitação do sistema globalizado, a partir de 1970, o capital produtivo pôde se estabelecer em todas as partes do mundo, confirmando a natureza cosmopolita da burguesia, as próprias empresas capitalistas, ao obterem seus lucros, devido à saturação dos mercados e o endividamento dos consumidores, passaram a investir o excedente de capital na especulação, e ficaram subordinados a ela. Sobressai, portanto, sobre o sistema produtivo, a lógica especulativa que atua nos mercados mundiais, acelerando a concorrência para assegurar os ganhos na produção e também na especulação. Nesse sentido, é de fácil constatação os motivos do uso da política para punir, boicotar, taxar os resultados do capital produtivo fortalecendo a concorrência entre as superpotências; enquanto em outro plano circula a especulação, aumentando a dívida dos governos, esvazia as reservas financeiras e obriga pôr em circulação bens públicos e riquezas naturais, para que os capitais abocanhem o alimento e permita a reprodução.
Nessas disputas são utilizados todos os instrumentos que atuam em pontos direcionados, com sanções econômicas e políticas, referendadas pelas formulações jurídicas, ou por meio de ameaças e intervenções militares ou mesmo com artefatos biológicos criando epidemias que visam enfraquecer setores competitivos.
De outro lado, entendemos que o capitalismo, com a globalização, que inicialmente foi um respiro para as crises a partir de 1970, devido a superacumulação de capital, há pelo menos quatro décadas, entrou na fase destrutiva de si mesmo. Do lado do capital produtivo, não há como crescer mais a taxas elevadas, isto porque, o poder de consumo da humanidade também atinge os seus limites, resta a salvação da especulação, mas essa, pela própria composição não tem sustentação e é obrigada a forjar as próprias instabilidades como forma de sobrevivência.
Por essa razão é que ficam mais evidentes as transformações políticas. Não é por acidente, nem por “má administração” das esquerdas que as forças de extrema direita, em muitos países, principalmente naqueles em que ainda há o que expropriar, tomaram os governos. O capital em crise exige que os governo atuem a seu favor, em detrimento dos direitos da população e, se necessário, que hajam com violência, combatendo todo e qualquer tipo de ameaça.
O alerta da História é de que as soluções, como sempre foram, estão na capacidade política e organizativa das forças sociais. Mas a política voltada para as meras mudanças conjunturais, esgota-se nos pleitos eleitorais e nada transforma, o resultado são os retrocessos posteriores. A verdadeira política segue as transformações estruturais. O capital especulativo é a grande força de dominação mundial, mas é invisível, não há como combatê-lo corpo a corpo. Para enfrentá-lo deve-se cortar o alimento que o mantém vivo. Portanto, um projeto de poder, não se confunde com as disputas para chegar ao governo; deve primar pelo ataque à acumulação e reprodução do capital. Estando em crise, ele, naturalmente ficará cada vez mais violento, mas também deixará à mostra as suas fragilidades. É preciso estar atentos para atacá-las.
                                                                                   Ademar Bogo

domingo, 8 de março de 2020

A CULTURA CRÍTICA E A CRITICA DA CULTURA


   
            O filósofo brasileiro Carlos Nelson Coutinho, ao refletir sobre a cultura reconheceu que a liberdade de criação pode estar condicionada a dois limites: o primeiro diz respeito ao quadro histórico-social no qual o criador atua e, dado que a liberdade é também conhecimento da necessidade, o criador deve tomar consciência das implicações sociais de sua produção. Segundo, no dizer do autor, a mais ampla liberdade de criação, tem como contrapartida, a mais ampla liberdade de crítica, que vem a ser o direito do próprio criador ou de outrem de avaliar aquilo que foi feito. É na observação desses dois limites que se reconhece a possibilidade da cultura ser acerto ou fracasso.
            Do ponto de vista histórico social a reflexão avançou no sentido de localizar que o Brasil nasceu na época da expansão mercantil e, por isso, o receituário “cultural universal” do colonialismo era extorquir valores de uso com a finalidade de transformá-los valores de troca, ou seja, transformar em dinheiro aquilo que era usual.
            Nesse sentido, deduzimos facilmente que a preservação das florestas pelos povos o nativos, parte vital da conservação dessa cultura, sustentada pelo valor de uso, de um momento para outro passou a ter valor de troca e, muito daquilo que é da cultura local transformou-se em mercadoria para abastecer a cultura universal. Essa transmutação de valores ainda não acabou. Repetem-se cotidianamente quando os interesses capitalistas invadem os territórios indígenas, para implantarem sobre a cultura natural, a cultura do boi, que compõe a mercadoria, carne vermelha; a cultura do ouro que compõe a mercadoria jóias, a cultura da barragem que produz a mercadoria energia elétrica.
            Por outro lado, o fortalecimento da exploração humana transmutou-se da mercantilização da liberdade e da vida dos escravizados, para a mercatilização do suposto direito da venda da força de trabalho, mediante o pagamento, por parte dos donos do capital que transformam a força humana em valor escondido em cada produto.
            O mercantilismo ao abrir as portas para as trocas internas e as transações externas estabeleceu como princípio a mais ampla liberdade de criação. Criam-se produtos para todos os tipos de consumidores, ou seja, no seio da indústria de mercadorias surgiu também a enganosa indústria cultural.
            É nesse movimento histórico social que o mercantilismo foi estabelecendo níveis de acesso e também de redução de possibilidades do acesso à cultura, mesmo essa que se expressa por meio do consumo. A começar pelos índios e para uma imensa quantidade dos descendentes dos escravizados do passado, o acesso aos produtos da civilização torna-se cada vez mais difícil. É neste entretanto que deveria reinar a mais ampla “liberdade de crítica”, mas o que se vê é reduzir o entendimento sobre os limites anteriores e avolumarem-se os limites cerceadores.
            É importante compreender o que Karl Marx tratou exaustivamente, quando disse que a base econômica da sociedade capitalista determina todas as demais relações, por isso, quando tratamos da “crise econômica”, devemos ler esse conceito como “crise da civilização”. Isto quer dizer que, decrescem junto com a estagnação do crescimento econômico, todos os tipos de liberdades e com elas vão desaparecendo as iniciativas oficiais, chegando ao limite intolerável de fazer sobrar, para mais da metade da população da nação, o “pum de talco do palhaço”, transformado em referência de cultura.
            O que é cultura para este ser “extrassocial” que passou a vida rangendo os dentes contra as forças progressistas e atuando na televisão fazendo da ficção uma ilusão real? Não seria ela mesma o “pum de talco” ou de “pó de arroz” como se dizia no passado, que servia para esconder a pele carcomida pela verdade do tempo? Um pum de talco que tem a duração tão breve como uma gargalhada?
            Começa a ficar distante o tempo em que os governantes para se manterem no poder ofereciam “pão e circo”, o que oferecem são palavras e ameaças. As liberdades vão sendo reduzidas ao nível das possibilidades do que cada um pode comprar. O governo, além de desconsiderar as dívidas sociais elogia os devedores e os malfeitores do passado, dizendo que as vítimas da escravização tiveram sorte em serem vítimas, mostrando assim que, ser escravo no passado e também no presente, é um privilégio e não um castigo.
            Certamente indicam esses promotores do mal, que as crueldades civilizatórias ainda por vir serão muito piores, isto porque, o sistema mercantil não permite relacionamentos entre quem tem e quem não tem poder de compra. O valor de troca submete o valor de uso a quem tem acesso ao dinheiro. Sendo assim, até mesmo os serviços públicos e o direito à cultura, cada vez mais passam para a iniciativa privada ou simplesmente são desconsiderados pelo governo. Daí é que justificam o fortalecimento da cultura do crime, do uso das armas e do compartilhar de mensagens mentirosas nas redes sociais.
            No mesmo sentido, o certo e o errado, o bom e mau, ou seja, à critica da cultura passou a ser o senso desqualificado das autoridades. Buscam por meio de bravatas, instigarem o povo para que faça, com o vazio de perspectivas, um elogio à deseducação.
            Se por um lado a base econômica unifica a todos os condenados aos sacrifícios pela perda das condições de acesso aos bens de uso materiais e intelectuais, com essas atitudes, a política divide esses condenados e mantém uma parte dela a favor, alimentada pelas mentiras e promessas, como escudo de defesa.
            Nesse sentido, não é a critica ao fenômeno isolado, que as reencarnações de figuras exóticas que hora encantam-se pela “goiabeira”, ora pelo “pum de talco” e são noticiadas cotidianamente; é ao núcleo dirigente interno e externo que se deve dirigir as atenções e colocar-se em movimento para impedir que eles emanem as ordens  que autorizam os achaques, os golpes, a apropriação indevida das riquezas nacionais e aos limites da já encurralada liberdade individual.
                                                                                                                      Ademar Bogo