domingo, 6 de novembro de 2022

O JOGO DO JOGO

                Antes de tudo, é importante decifrar o sentido do verbo “jogar”. No aspecto transitivo, significa “executar diversas combinações”; “jogar com a sorte”, é apostar. “Jogar para cima”, é se revoltar. “Jogar confete”, é exaltar”; “jogar a última cartada”, é arriscar.

                O jogo do jogo é saber jogar. Por isso é preciso conhecer as regras; apesar delas serem apenas parâmetros orientadores, explicitadoras dos limites e asseguradoras do processo do início ao fim. Além das regras, cada jogo tem técnicas e, acima delas está a arte. Sem regras, sem técnicas e sem arte, não há jogo, há apenas movimentos perigosos sustentados pelos instintos.

                O filósofo Nietzsche ao observar a decadência da existência humana vista como um jogo, buscou responder a questão sobre a sociedade a qual vegetava sem sentido, sem finalidade e sem verdade. Para ele, diante do incontrolável, arma-se sempre um cenário para jogar com a razão confundindo-a com loucura. O “inútil” passa ser o ideal e sonhar um modo de jogar. A embriaguez de Dionísio, o deus do vinho, representou, na antiguidade, a forma mais adequada para a prática do jogo entre o real e a fantasia, no final, o resultado pretendido era o próprio autoesquecimento.

                Importante é perceber que, embriagados com vinho ou com mentiras, o jogo sempre é uma luta para o vir a ser de uma representação; ou também uma busca pelo desejado, sonhado e, por isso, o enfrentamento dos contrários. A cada passo, novas contradições afloram e novos significados precisam de nominação. A linguagem simbólica atiça e alimenta os mistérios e o estímulo da vitória não pode esmorecer.

                As técnicas sustentam os planos. Cada ideia torna-se uma ação, se houver meios de concretizá-las. É próprio do jogo, disputar, enfrentar, combater e derrotar. O juízo está nas técnicas utilizadas e elas dependem da finalidade da vitória. Um jogo com técnica é técnico, nem sempre é belo. Um jogo com arte é belo, extasiante, conquistador, emotivo e vibrante.

                Técnica se usa para tudo. Para fazer coisas boas e coisas ruins. Fabricam-se objetos úteis para a satisfação das necessidades e armas inúteis para a harmonia social. Com técnicas sustenta-se a guerra, mas é com a arte que se alcança a paz. Esta última não significa perdão ou ausência de punição. Não punir quando se deveria, não é virtude é covardia.

                Há bastante tipos de jogos, mas muito mais modos de jogar. No jogo democrático, além das regras e das técnicas deveria figurar também a arte como um princípio embelezador. A truculência, a mentira, o engano,  não cabem quando está em disputa o futuro de uma grande nação. Nesse jogo, entre maioria e minoria, deveria acima de todos, ser considerado o princípio da totalidade. Com este, a jogada melhor mereceria aplausos unânimes e não ataques.

                O jogo do jogo democrático é o movimento ascendente das jogadas. Os lados que se enfrentam sabem que no dia seguinte continuarão vivos. No entanto, as brutalidades praticadas nas disputas são sempre irresponsabilidades de quem luta. As marcas não podem ser apagadas e enquanto persistirem há que punir com o rigor das normas os infratores.

                Quando os interesses são mesquinhos, qualquer jogo provoca mal-estar. Por trás das jogadas há sempre um desejo abusivo. Saber jogar não é apenas entrar no jogo, mas saber calcular como sairá dele. Não há o “saber perder” porque, ninguém treina para ser derrotado, mas há a obrigação de reconhecer a derrota. Respeitar o resultado quando for legitimado pelas regras aprovadas antes do jogo.

                A contemporaneidade, asfixiada, agoniza com as suas próprias invenções. A defesa do “estado de direito”, tão valiosa, no passado, para os exploradores sobre os explorados, começa a tornar-se um estorvo, porque cerceia os próprios preceitos liberais que, nos momentos de crise econômica impede que as decisões explodam como relâmpagos em meio aos temporais. Para os capitalistas na viagem da acumulação, não deve existir a possibilidade de que, no “meio do caminho haja uma pedra”; um índio, um sertanista, um líder popular, ou uma lei impedidora que limite os gastos. Tudo precisa ser brutalmente retirado para que “a boiada passe”.

                É nesse jogo irônico das circunstâncias históricas que coube às forças de esquerda, ao invés de defenderem princípios comunistas, obrigam-se a sustentar o legalismo mantenedor da ordem que garante a exploração do capital sobre o trabalho, sem  perda dos direitos trabalhistas; o estado democrático de direito que assegura a “ordem e o progresso”; o direito público e privado, que dá reconhecimento ao Estado, de usar as forças impositivas, coercitivas e punitivas.

                Tornou-se obrigação de sobrevivência a busca de tomar o Estado com todos os poderes, para salvaguardar a civilização capitalista, descartada pelos capitalistas, isto porque, dos princípios fundamentais da Revolução Francesa, já haviam, de imediato eliminado o da “fraternidade”, agora é incômodo o da “igualdade”, e precisam forjar as separações, religiosas, culturais e regionais para fazerem valer a “liberdade” de agirem sobre todos.

                Quem diria que, de “coveiros do capitalismo”, como sentenciaram Karl Marx Friedrich Engels, deveríamos ser o seu salva-vidas para que não se afogue no oceano do próprio vômito, prolongando seus enfadonhos dias, com a única intenção, de não deixá-lo que nos jogue no limbo da barbárie de uma só vez.

                Para os estudiosos da dialética, sabemos que há movimento para frente e para trás. A barbárie é o movimento para trás; o socialismo é o movimento para frente. Os capitalistas apostam no primeiro, pensam salvarem-se com a povoação de algum lugar do espaço. Se defendermos apenas o estado democrático de direito, não há movimento para frente, porque nada de novo nos propomos alcançar.

                É tempo de jogar conscientemente o jogo no campeonato da superação. Disputar uma eleição ouvindo a palavra “comunista” como uma acusação e não como um valor, é uma lição que nos desafia a pensar, se ganhar nas urnas, mas perder na linguagem revolucionária, por evitar pronunciar certas palavras, é uma vitória ou apenas um calço posto no movimento regressivo inclusive das nossas fileiras?  

                Há muito por fazer neste jogo comandado por regras determinadas, mas, para além delas temos as técnicas a serem inventadas e a arte de fazer o belo renascer em cada olhar.

                                                                                                              Ademar Bogo

 

 

 


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