domingo, 29 de janeiro de 2023

EXTREMOS PERIGOSOS

 

            O filósofo alemão G.W.L Hegel ao escrever sobre “A filosofia do espírito”, começou por mostrar que o  mundo em que a autoconsciência deve ser afirmada está dividido por dois domínios em constante conflito. No primeiro, o próprio individuo está ligado ao trabalho que precisa desenvolver para sobreviver; no outro, ele mesmo quer apropriar-se do trabalho de alguém, passando, por meio desse ofício a dominá-lo. Por isso, todas as relações humanas são mediatizadas pelas coisas. Ao prender-se ao fazer das coisas, o indivíduo transforma a sua  consciência também em “coisa” e ele mesmo passa a ser um objeto de uso de si e para os outros.

            Por qualquer lado que olhemos o Brasil é um país dividido por domínios, constituídos por extremos perigosos. Nem sempre as partes opostas estão situadas em territórios diferentes. A miséria e a riqueza andam próximas, se cheiram e se encostam nos centros das grandes metrópoles. Onde se elevam os palácios, nas praças as barracas dos moradores de rua formam a nova jardinagem. Mais adiante, os restaurantes finos e nas ruas mendigos pedindo um prato de comida. Sem contar com os hospitais particulares reservados para as elites e no lado oposto as longas filas no SUS.

            Se voltarmos os olhos para os campos, as mesmas disparidades revelarão as condições inconciliáveis da concentração da terra, acompanhada pela devastação feita pela opulência das máquinas modernas, que prometem abarrotarem os mercados mundiais de produtos, mesmo que contaminados e envenenados pelos agrotóxicos, enquanto, pelo menos três dezenas de milhões de famintos e outros tantos sem trabalho vegetam no País em busca da própria subsistência.

            O Brasil é um país cindido também pela afirmação totalitária. De um lado, o desprezo total das diferenças de outro, um povo, uma nação, uma língua; de outro,  a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, afirma que no Brasil, existem 305 etnias que falam 274 línguas, mas que pela supremacia da personificação do capital da etnia branca, essas referências tradicionais e culturais, são relegadas e espezinhadas pelos invasores dos últimos redutos tradicionais.

            O retrato mais recente da divisão vergonhosa estruturada está expresso na população Yanomami em Roraima, onde cerca de 30 mil garimpeiros escavam os rios nas proximidades das habitações indígenas para arrancarem o ouro e satisfazerem a cobiça dos grandes mercados, que, para além da proximidade em que atuam das comunidades, além de devastarem, poluírem e envenenarem  o ambiente, violentam e condenam á morte aquela população.

            Muitas são as informações desencontradas que chegam aos ouvidos de quem acompanha os noticiários, porque, por trás das palavras estão os interesses e os temores que, entre si aliados, reuniram diferentes forças para atacarem a tradicionalidade dos povos originários e o modo como viverem.

            Os interesses do capital especulativo, que procura desesperadamente transferir as suas reservas de papeis e números para uma substância, valiosa e duradora, reacendeu nos últimos anos a corrida pela mineração. Nesse sentido, as áreas indígenas menos intocadas, tornaram-se o alvo imediato da volúpia financeira.

            Os interesses políticos, expressos veementemente pelos representantes do governo passado, voltaram-se pela destruição do modo de vida e de sobrevivência desses povos; primeiro, incendiando as florestas para restringir o tamanho dos territórios e, segundo, investindo com determinações de inserir a modernização tecnológica capitalista em vista da produção de mercadorias. E, terceiro, fingir “cididanizar” o indígena incluindo-o na total submissão do Estado Democrático de Direito, único e coercitivo.

            Por parte das forças de segurança nacional, o temor de que se possa vir a se formar, com a cooperação internacional, um “Estado indígena independente”, de concepção comunista, também facilitou para que o desatendimento, a facilitação das invasões e a ofensiva garimpeira armada, produzissem aquela situação inadmissível e muitas das outras existentes no Norte do país.

            Por estas e outras razões a decisão de extinguir as garantias constitucionais e a autonomia dos povos indígenas de terem os seus próprios territórios, levaram até aqui, a restringir o atendimento, a proteção e o apoio para que aquelas comunidades fossem fortalecidas e se defendessem. Agora, o Estado entra com diversas medidas, que vão desde a assistência imediata, a investigação sobre os propósitos de genocídio e, as forças armadas, entram com o recrutamento de jovens para comporem a força de segurança anticomunista.

            Se voltarmos a Hegel, vamos perceber que o pensamento filosófico mostra-nos que as “relações são mediatizadas pelas coisas”, sendo que os povos originários não produzem mercadorias nos moldes capitalistas, regido pela propriedade privada dos meios de produção, evidentemente que as formas de produção utilizadas por eles, e o regime político que adotam internamente, têm ainda raízes no Comunismo Primitivo, no qual, a essência da manutenção das práticas extrativistas e da ordem social está na força comunitária.

            Embora que sejam comunidades originárias organizadas dentro do Estado Nacional, a autonomia para estes povos gerirem o próprio destino é indispensável. Ali deverão instituir as suas formas de produção com liberdade e de acordo com a necessidade de sobrevivência da evolução populacional; terem a garantia da autonomia política preservada; falar a própria língua e desenvolver o sistema de educação próprio em todos os níveis; ter a sua força de defesa que seja formada e educada para a defesa dos princípios culturais e morais de cada povo.

            O confronto entre as duas concepções, a capitalista e a comunitária é desproporcional, nessas condições, para a resistência da segunda. A extração do ouro nos moldes destrutivos do meio ambiente não se adapta ás condições naturais dos povos originários. Querer força-los a integrarem-se nos moldes da civilização capitalista é abrir contra eles as portas da barbárie.

            Para as pessoas conscientes e sonhadoras com um mundo melhor, é importante compreendermos que os territórios indígenas no Brasil, tornaram-se os últimos redutos da defesa da terra e do meio ambiente. A dizimação dos mesmos será a declaração de que o capital chegou nos confins aonde a produção de mercadorias o levou.

            A defesa da Amazônia passa, portanto, pela autonomia dos povos originárias poderem arquitetarem as próprias formas de subsistência. Todo o apoio, solidariedade e políticas públicas serão importantes, mas acima de tudo, são eles que devem assumir o comando e,  aliados com as forças trabalhadoras e populares, transformarmos, o clima, o ambiente, a preservação cultural, a autonomia política e a soberania nacional,  em elementos da mesma luta de classes.

                                                                                                                                                                                                                     Ademar Bogo     

domingo, 15 de janeiro de 2023

SAIR DAS CALÚNIAS E ENTRAR NA POLÍTICA

 

            O filósofo Hegel ao escrever o seu livro, “Princípios da Filosofia do Direito”, pretendeu dar à burguesia os fundamentos filosóficos para constituir e gerir o Estado sob o imperativo das leis, e o faz primando pelo sustentáculo da “liberdade”. Sua perspicácia foi tão grande que superou todas as visões anteriores sobre o assunto. “O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada...” (§ 4).

            Em primeiro lugar, se o “domínio do direito” é o espírito geral, nada escapa sob o seu poderio. E, em segundo lugar, se ele tem como ponto de partida a “vontade livre”, não apenas tem a liberdade como substância, como também o próprio direito se institui como a liberdade afirmada e realizada. Em síntese, aonde estão as leis, está a liberdade.

            De pronto percebemos que as leis no modo de produção capitalista são elaboradas para garantir a liberdade daqueles que querem ir e vir, produzir, transportar, comercializar e consumir com garantias, de que ninguém impeça a “livre vontade” dessas realizações. Tudo isso, posteriormente, veio a ser denominado “Estado Democrático de Direito”. Ou seja, para que haja democracia é preciso que se faça presente a “ditadura” das leis.

            A conclusão decorrente desta visão constitui o encravamento da liberdade na ordem da seguinte forma: se não pode existir democracia sem leis, pois, sem elas valeria o poder totalitário do indivíduo sobre a sociedade, também não pode existir capitalismo sem Estado.

            O Direito positivo, ou seja, depois de “postas as leis” tem-se a ordem constituída. O que não transparece com facilidade nesta determinação, é que, por fora da ordem jurídica, há um sistema estruturado, direcionado e canalizador do destino das leis para, por dentro dele manter o seu funcionamento. Sem cair num mero funcionalismo, metaforicamente as veias que irrigam o corpo da base econômica, é o Estado. É possível fazer intervenções e inclusive transfusões de sangue, mas não é possível substituir o sistema circulatório sem despedaçar o corpo inteiro.

            Vivemos no Brasil, há já a quase duas décadas, um profundo mal-estar entre o domínio econômico e o domínio das leis. No entanto, a contradição principal não está na falta de liberdade para os capitalistas realizarem os seus interesses; as leis cumprem a função de manter o capital em circulação, tanto na esfera produtiva, quanto na esfera especulativa. O que de fato há, é que marginalmente a esse funcionamento ordenado, as diversas transformações tecnológicas, somadas às graves cosequências impostas pelas leis tendencias do capital, cuja desarmonia entre produção, concentração, centralização, expansão e especulação, funcionam como o cobertor reduzido para cobrir os diversos corpos no frio do inverno de aprofundamento da barbárie.

            Presenciamos no Brasil, com cada vez mais veemência, o desconforto de setores médios e representantes da especulação, com os espaços destinados ao abrigo das elites e de seus colaboradores, ocupados por contingentes outrora desdenhados que passaram a sofrer o rechaço político, culpabilizando o “espírito geral”, como nos disse Hegel, acusando-o de estar garantindo, algum grau de liberdade às parcelas mais pobres da população.

            O conflito de interesses colocado sobre o tabuleiro da conjuntura, tem por base a substância da liberdade, com diferentes estratégias para usufruí-la. Pelo lado das forças da extrema-direita o entendimento é de que “precisa ser eliminada” parte dos poderes estais, principalmente os da esfera federal e, do lado das forças progressistas, a luta para manter intactos, os poderes e o sistema jurídico, como o fizeram as forças burguesas no passado e parte delas ainda o fazem no presente. Se bem analisado, concluiremos que ao longo dos séculos fomos mudando de lado e de funções entre as classes.

            O que mudou então que surpreendentemente, aquilo que sempre foi uma bandeira de luta dos trabalhadores, de protestar, tomar e superar o Estado, parece ter sofrido uma inversão e, todos os esforços passaram a serem destinados a defender os poderes oficiais e a democracia capitalista?

            Há três fatores, pelo menos a serem estudados e colocados em discussão: o primeiro, trata-se da crise do capitalismo que impede a realização de certas liberdades dentro da ordem estabelecida; o segundo, nos mostra que houve, mais recentemente, o enfraquecimento das forças políticas de esquerda e de direita e, o terceiro, assinala que as forças armadas e policiais tornaram-se facções partidárias que, além de associadas a outras facções criminosas, agem com grande autonomia na esfera pública.

            Do primeiro fator, já falamos bastante em outros espaços, mas, o segundo e o terceiro podemos vinculá-los e dizer que, se desrespeitoso foi o que um grupo minoritário, em menos de duas horas de ação, tomou e destruiu os palácios dos três poderes na capital federal, estarrecedor é observar as forças contrárias, totalmente desmobilizadas, assistindo o presidente da República e um ministro do Supremo Tribunal Federal, tentando garantir a ordem e a volta do respeito aos poderes estabelecidos com o uso das leis.

            Convençamo-nos que, se ao invés de terem quebrado os palácios, os terroristas os tivessem ocupado e se as forças armadas e policiais coniventes, entrado em greve e se negado a irem despejá-los, o golpe de estado teria sido dado, e o presidente derrotado nas urnas, poderia ter sido empossado como a autoridade única e soberana da República.

            Se por um lado, constatamos que as forças da direita erraram na estratégia, de tentar minar a ordem gradativamente, até que o país se tornasse ingovernável e, as forças armadas se autoconvocassem para assumirem o poder; das forças de esquerda o que sobrou das últimas décadas decadentes, foi apenas o aspecto físico; do ponto de vista intelectual há sem dúvida nenhuma uma perda acentuada do conteúdo revolucionário e da perspicácia em detectar as circunstâncias favoráveis para uma ofensiva.

            É certo que o golpe foi frustrado e, apesar da ofensiva jurídica contra os seus executores estar sendo exemplar, não significa que ele não venha a ser novamente tentado. Por outro lado, abriu-se uma clareira para o desferimento de uma ofensiva, senão revolucionária, pelo menos de afirmação democrática.

Para que saiamos das calúnias e entremos definitivamente na política, a primeira medida a ser tomada, para estabelecer o lugar de cada parte, é assumir-nos como socialistas e comunistas. Com essas identificações muda tudo. O Estado passa a ser visto como um instrumento transitório para implantar a verdadeira “democracia do proletariado”. Com ela não se coloca apenas os inimigos na dos trabalhadores na cadeia, mas se estabelece que a sociedade  funcionará sob nova ordem de funcionamento. As liberdades burguesas serão extintas e passarão a vigorar as liberdades socialistas. Para tanto, a democracia precisa ser instaurada em todas repartições, setores e instituições aonde reinam, a propriedade privada dos meios de produção, a concentração do capital e os privilégios, civis e militares.

Para que as autoridades tenham força de agir e implantar as mudanças devidas, é importante que as massas sejam convocadas para voltarem as ruas e, ao invés de girarmos em torno de um governo que quer mostrar serviço para sanar o déficit das finanças, devemos impulsionar as mudanças estruturais para implantarmos a nova ordem, aonde  o capital sofrerá intervenção e controle, as forças armadas terá o tamanho proporcional as necessidades e perigos eminentes, os salários serão regulados sem abonos e regalias e a formação filosófica entrará em todos os currículos.

Por outras frentes devemos investir na formação política de todos os cidadãos. Controlar as redes sociais para que as mentiras não vigorem como programa de ações e reformular o sistema partidário para que a população em massa participe. Os programas de ensino civis e militares deverão ser reavaliados e as concepções terroristas e antidemocráticas combatidas.

As tarefas podem ser múltiplas ou serem totalmente ignoradas. Elas surgirão e se multiplicarão na medida que  houver a conclamação das massas para darmos um passo à frente no enfrentamento da luta de classes. Sendo o que temos no momento, cabe às forças de esquerda organizadas, assumirem o comando.

                                                           Ademar Bogo