domingo, 24 de novembro de 2019

O REINO DAS FACÇÕES



            Desde que o filósofo francês Voltaire, na segunda metade do século dezoito, escreveu na Enciclopédia o conceito de partido, não apenas as facções anteriores começaram a ser superadas, como também as classes perceberam que a política se faz com organização.
            Até então a palavra e a forma organizativa, compreendidas como “facção” eram negativas e continuaram sendo, porque a política era comandada pela figura do “soberano” ou do “príncipe”, por isso, qualquer tentativa de desacordo com a ordem era motivo para a repulsa e a perseguição.
            A facção, segundo Voltaire era uma organização sediciosa, ou seja, um grupo de indivíduos amotinados para lutarem contra o todo da sociedade, mas, principalmente, por defenderem os próprios interesses e os interesses de uma minoria à qual representavam.
            Ao tomarmos mais a fundo a etimologia da palavra “facção”, vemos que ela deriva do verbo “facere” (fazer ou agir), nesse caso, um fazer perturbador, de natureza bruta e perversa. Ao contrário de “partire” que embora no latim signifique “dividir”, não age maldosamente nem prevarica contra o todo, mas age organizadamente para a busca do bem comum. Entendido como parte, a palavra “partido” jamais foi estigmatizada, porque a “parte” pertence ao todo e, por ser descendente dele, tem todas as suas características e, por isso, mesmo que o todo não esteja fisicamente contido na parte, pode envolver a parte para que ela o qualifique.
            O partido ganhou mais evidência no século dezoito quando as classes sociais adquiriram as características revolucionárias, primeiramente com a própria burguesia que conduziu e efetivou a Revolução Francesa, feito antes nunca visto na História. Mais adiante, no século dezenove, os próprios trabalhadores, em meio às disputas ocorridas nas Revoluções Liberais da Europa, entre 1930 a 1952, Karl Marx Friedrich Engels propuseram para os trabalhadores, a alternativa de eles mesmos criarem o partido político que tivesse natureza universal. Ou seja, seria a “parte” organizada para agir a favor da humanidade.
            Na medida em que a burguesia estruturou o modo de produção capitalista e criou o Estado para assegurar o funcionamento da ordem legitimada pelos preceitos republicanos, o partido passou, quando apresentado à sociedade, a ser visto positivamente, com duas obrigações: servir de instrumento para eleger os representantes da sociedade e, governar segundo o programa de governo, também apresentado no período das disputas eleitorais.
            O que ocorreu ao longo dos tempos? Basta olharmos com um pouquinho de atenção para percebermos que, após eleitos, os governantes abandonam os partidos e transformam a estrutura administrativa em uma verdadeira “facção”. Agem fundamentalmente a favor das partes que estão ligadas à propriedade privada ou ao grande capital. Quando agem “a favor” do todo, não deixam de favorecer as partes que representam o poder econômico e os interesses da classe dominante que exigem a colaboração do Estado para a própria preservação.
            Na medida em que os partidos políticos foram confirmados como representantes legais, geralmente de indivíduos que, avulsamente se filiam para fortalecer certas intenções, ficaram cada vez mais parecidos com as facções que visam subverter as instituições, aparelhando-as aos interesses grupais. Nesses postos surgem os profissionais da política e se empenham em criar e defender o próprio sistema de poder com um código de ética próprio.
            Como no passado, podemos considerar que as facções agem contra o todo de duas maneiras: a) mesmo servindo os próprios interesses e aos grupos dominantes, presta alguns serviços mantendo os direitos já existentes e, b) anula os direitos garantidos, em nome da manutenção da ordem e aprova leis mais duras para impedir que o todo se manifeste contrariamente.
            Grave e preocupante é quando, por causa dos desentendimentos internos, uma facção se divide em duas e, mais grave ainda, é quando uma das duas, a mais radical, sediciosa e perversa, fica com o poder governamental e garante-se por meio aparelhamento das forças militares e paramilitares.
            O que estamos presenciando no Brasil é a afirmação de uma facção que figura no espectro partidário com o nome de “Aliança” composta entre parlamentares, militares, grupos paramilitares, setores parasitas da economia e da mídia religiosa que enfurece os seus fieis em nome da família, da pátria e da ideologia capitalista. Na história, facções com essa natureza, foram poderosamente destrutivas e, mesmo que prevaleceram por um curto espaço de tempo deixaram marcas tão profundas, que somente os alucinados podem defender a volta dessas imitações.     
            O pragmatismo sem teoria e alimentado por valores conservadores, faz a política adotar uma linguagem bárbara, ofensiva e depreciativa. É o retorno às fases primárias da formação da estrutura comportamental, quando a criança tem prazer em brincar e comer as próprias fezes. Essa linguagem bruta quer legitimar atitudes brutas para gerar o máximo de prazer, mesmo que causem dores e vergonha à maioria.
            O partido enquanto parte consciente e que luta a favor do todo, ainda deverá ser construído. Mas é urgente que seja para impedir que as facções destrutivas, mesmo que compostas pela ínfima minoria triunfem sobre o todo, impondo, pelo terror, no reino das facções,  a servidão silenciosa.
                                                                                               Ademar Bogo


                                                                      

domingo, 17 de novembro de 2019

TOTALITARISMO JURÍDICO



            A História mostra que a ingenuidade política tem limites. Chega um dia que até os menos conscientes se dão conta de que certas orientações políticas são sinceras, mas pouco apetitosas, enganam e, de tempos em tempos impõem grandes sacrifícios.
            Maquiavel, com toda a sua astúcia, discerniu que um governo (principado), conforme as oportunidades é constituído: pelo povo ou pelos grandes. Supostamente, vendo assim, poderíamos imaginar que estaria ele defendendo a possibilidade de se estruturar um “governo popular” com a autonomia,. Nada disso. Segundo o pensador, quando “os grandes” acham não ser possível resistir ao povo, começam a ceder prestígio a um dentre ele e o fazem príncipe, para, sob a sua sombra dar expansão ao seu apetite político.
            O “apetite político” dos “governos populares” em nosso tempo foi até os limites do tamanho do prato da lei. E, literalmente, como é nas refeições, sendo minúsculo e reduzido o prato, permiti-se a repetição, a maioria com dois mandatos, embora que outros os estenderam um pouco mais.
            O que fizeram até aqui os “príncipes do povo”? Atuaram sobre as dívidas sociais históricas que as revoluções liberais burguesas, não ocorridas na América Latina, não fizeram. Mas legitimaram o poder do capital e do Estado. Por isso, de acordo com os limites das leis e do tamanho dos orçamentos, os “processos democráticos liberais”, constituídos pelos “governos do povo”, atenderam por duas décadas, o apetite dos direitos constitucionais controlados, assegurando os direitos patrimoniais, financeiros e especulativos para os capitalistas.
            Não custa recordar que o capitalismo é o modo de produção no qual vigora o poder do capital e, como ele está encarnado nos capitalistas, essa classe para assegurar o poder criou o Estado, que pode ser governado por diferentes ideologias, basta que elas não atentem contra as leis estruturais da produção, exploração, concentração e expansão dos capitais.
            Dito e feito. Os dominantes não podendo resistir aos descontentamentos populares, optaram por ceder, logo após as ditaduras distribuídas intencionalmente pelo Continente Americano, na segunda metade do século passado, para que as massas populares, sindicais, religiosas, culturais etc., intentassem, em dois turnos, eleger o governante de sua preferência. O êxito alcançado possibilitou a repetição de mandatos e, até mesmo a promoção de sucessores.
            Com o apetite político reduzido (um pouco menos na Venezuela) e respeitoso de não tocar na fatia que pertencia ao capital, os governos assumiram o papel de coordenadores das festas entre amigos, nas quais nem as polícias foram requisitadas. As forças armadas permaneceram onde estavam à espera de ordens, que nunca seriam dadas nos governos tidos como “esquerda”.
            Chegamos então a uma fácil conclusão. Se o capitalismo é o modo de reprodução do capital e o Estado é o instrumento de poder dos capitalistas, criado por esta classe para assegurar o funcionamento do sistema, na medida em que surgem as crises e afetam as taxas de lucro, esta mesma classe foi buscar de volta o comando da administração política. E o fez com toda a desfaçatez possível.
            Disfarçadamente, agiram as forças burguesas por dentro da ordem institucional e, “respeitosamente” encaminharam as suas determinações por dentro das instituições que asseguram as justificativas e moral. Se algo desse errado, não aceitariam os resultados e chamariam as forças policiais para reprimir o povo. Foi assim que vimos retornar “o governo dos grandes” que passam a retirar os direitos alcançados no passado, pelo fraco apetite democrático das forças que chegaram ao governo.
            O “governo dos grandes”, com o apoio militar, implantou o “novo” sistema do “totalitarismo jurídico”, e pôs em crise o conteúdo dos conceitos históricos, que os estudiosos não conseguem mais classificar o que foi desclassificado na forma e no conteúdo. Sendo assim, os golpes não são golpes, as ditaduras não são ditaduras e as repressões contra o povo que, por meio de seus representantes governavam até ontem, ao defenderem os mesmos interesses, colocam em risco “o Estado de direito”.
            O povo não recorre à ciência para se defender, mas os seus representantes deveriam recorrer antes de iludi-lo que o caminho da institucionalidade nos dá tudo pela via pacífica. Deveriam os “partidos do povo”, estudar a natureza da intima estruturação da sociedade civil e o Estado; da relação que há entre a base econômica ou infraestrutura, como disse Marx, que sobre ela se levanta uma superestrutura política, jurídica e ideológica e isto tudo está voltado para fazer funcionar o capitalismo. Meter-se ali dentro, é cumprir, temporariamente, dentro da “casa grande”, os serviços de manutenção para o bem estar dos dominadores.
            Percebemos agora que, a classe dominante faz política, segundo Maquiavel, com o “príncipe do povo”, sem violência e, com os “príncipes próprios”, no mais alto grau, que chegam a denominá-los “mitos” que não se furtam a usar da violência como forma de eliminação da oposição, da mentira, como ideologia e, da lei para impor as medidas destrutivas e garantir a ordem capitalista.
            O totalitarismo jurídico, ao mesmo tempo em que suplantou os golpes de Estado tradicionais autoriza o uso de todos os mecanismos repressivos, oficiais, quando os magistrados confirmam a desigualdade de direitos e, marginais, quando as milícias ilegais  agem sem punição.
            A “ordem democrática” e o “Estado de direito” que são conceitos estabelecidos para dizer que todos estão submetidos ao “império da lei”, não são verdadeiros. No totalitarismo jurídico, as leis, quando não atendem os interesses da classe dominante, são modificadas e, se atendem os interesses do povo, são apagadas. Por isso, se na democracia as garantias estão nos “limites do apetite” ingênuo, de que tudo deve ser feito respeitando as leis vigentes, no totalitarismo as garantias estão ligadas à concordância.
            Para quem luta e tem consciência critica, as duas situações são incômodas. Aceitar os limites é contentar-se com o pouco e correr o risco de tudo perder. Concordar com o totalitarismo é massacrar as próprias causas e apegar-se aos limitados princípios da socialdemocracia é apelar pela automutilação estratégica.
            Se o totalitarismo jurídico é uma mudança para trás, está no previsível, de que o capitalismo em tempos cada vez menores precisa provocar acertos, assim ocorreu com os golpes militares e as ditaduras implantadas onde se julgou necessário no século passado e, assim ocorre no presente com as intensas intervenções políticas, asseguradas pelo poder judiciário.
            Se duros são os ataques, frágeis são as respostas. Em resposta à onda totalitária, aqui, pedimos “Lula livre”, os bolivianos pedem a volta do presidente que separou-se deles e optou pelo exílio; os chilenos exigem a nova constituição que aqui conquistamos em 1988, mas que,  aos poucos foi deformada com inclusão de mais de 100 emendas.
            É verdade que muitos dirão que não se pode  “fazer tudo de uma vez” e que é preciso ir “acumulando forças” para, posteriormente impor as mudanças mais arrojadas. Mas, se olharmos ao redor, veremos que nem os avanços nos direitos conquistados foram desconstruídos, como também as forças acumuladas foram deseducadas.
            Ao povo explorado e submisso, que não pode mudar de lugar, exilar-se nem tampouco concordar com os poderes representativos ou totalitários, só resta uma saída, mudar de sociedade. Para isto é preciso que compreenda e construa a unidade internacional, para que uma população não seja massacrada isoladamente ao lado da divisa do país vizinho que se comporta como se nada fosse.

                                                                                                                           Ademar Bogo 
             
           
           

           
              
 

domingo, 10 de novembro de 2019

FATOS E ARGUMENTOS


            Neste mês de Novembro de 2019, recordam-se os críticos do socialismo da queda do muro de Berlim. Contrariamente ao dizer, que, “contra os fatos não há argumentos”, quando se trata da hermenêutica socialista, sempre há.
            Comecemos pela argumentação de Marx que, ao estudar o desenvolvimento das forças produtivas percebeu que elas cumprem um papel importante no processo de transição de um modo de produção para outro. Agregou ao enunciado um alerta, dizendo que os processos não são gratuitos, antes de tudo dependem das circunstâncias históricas, do grau de organização e do desenvolvimento da consciência dos sujeitos da revolução.
            As circunstâncias que levaram a dividir a Alemanha e, posteriormente construírem o muro na cidade de Berlim, foram os acordos, para pôr fim à Segunda Guerra mundial criada e alimentada pelas principais potências econômicas capitalistas da época. Os socialistas russos entraram na guerra nos últimos dois anos, quando na Rússia tomaram o poder e, com isso tiveram que continuar o que os capitalistas haviam começado, em busca de estabelecer a paz.
            O avanço das tropas soviéticas sobre o território do Leste europeu, levavam consigo a determinação de, independentemente do avanço das forças produtivas, suplantarem os governos inimigos e empossarem outros que implementassem as diretrizes socialistas. Esse primeiro fator, já nos mostra que a opção pelo socialismo não se deu, naqueles países, pelo processo da superação do capitalismo pelas circunstâncias internas, mas, pela necessidade de vencer o nazismo alemão que ameaçava dominar o mundo.
            De outro modo, o fato da França, Inglaterra, Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Soviéticas estarem do mesmo lado, nos faz perceber que, a guerra entre os países capitalistas e socialistas não havia se encerrado com a rendição do Japão em 2 de Setembro de 1945. A construção do muro dividindo a capital da Alemanha ao meio, representa a continuação da guerra.
            Diante dessa situação, surge-nos um segundo fator mostrando-nos que houve a negação da possibilidade das forças sociais seguirem o processo de transição de um modo de produção para outro e estruturarem os governos locais. Marx havia alertado na “Crítica à economia política”, de que a humanidade só se propõe as tarefas que pode resolver, e que a própria tarefa só aparece onde as condições materiais de sua solução já existem. A questão ainda a ser estudada é se “aquelas humanidades” existentes dos dois lados do muro, Ocidental e Oriental, não só dentro da Alemanha como a nível mundial, haviam se colocado a tarefa de superação do capitalismo? Provavelmente o muro de Berlim servia apenas como representação para as consciências resistentes que se colocavam tarefas mais amenas e integradoras á ordem do que aquelas que deveriam forjar as rupturas entre os sistemas.
            O terceiro fator podemos extraí-lo da percepção de Engels, quando escreveu, em 1848 a introdução do texto, “As lutas de classe na França” e colocou ali a ideia do “direito à revolução”, como um direito histórico. Ao revisar os processos de implantação do socialismo durante os anos da Segunda Guerra Mundial e depois dela, podemos interpelar se de fato aquelas populações, apesar de terem assegurado os direitos sociais fundamentais, não foram cerceadas do principal deles, que era o direito à fazerem a própria revolução?
            O quarto fator que podemos extrair da teoria de Marx, trata-se dos conceitos das revoluções, permanentes e simultâneas. Na mensagem escrita por Marx e Engels  ao Comitê Central da Liga dos Comunistas em março de 1850, a ideia de “revolução permanente” aparece como tarefa e como “grito de guerra” do proletariado. Da mesma forma, há ali, o entendimento que as revoluções devem ser simultâneas nos diversos países como um mesmo movimento que vincula todos os povos do globo.
            Considerando as circunstâncias históricas e as diferentes condições pós-guerra, que permitiram ao próprio capitalismo ganhar fôlego e, pelas tarefas de reconstrução, obteve êxito e fortalecimento impedindo que novas revoluções se realizassem. Por outro lado, a derrubada do muro de Berlim em 9 de Novembro de 1989, pode não ter representado um retrocesso como muitos querem fazer crer, mas um estímulo histórico revelando que a “revolução” não deveria parar ali à sombra do muro, vendo cidadãos serem mortos por tentarem atravessá-lo. É evidente que, se os alemães do lado Oriental lutavam por ultrapassar o muro é porque tinham para onde voltar e, esse recado foi desconsiderado por décadas.
            Trinta anos depois da derrubada do muro, percebemos que, se até então as revoluções foram sufocadas pela polarização entre os dois blocos que alimentaram a “guerra fria”, tendo como resultado a vitória do capitalismo, além dos fatores colocados acima, consideramos que, o capitalismo ainda tinha fôlego para renovar as forças produtivas e, a humanidade de um jeito ou de outro, ainda se alimentava dentro dele. No entanto, a cada dia vemos que as relações sociais se degradam, a tecnologia reponde apenas aos interesses de pequenos grupos aumentando assim a exclusão e a miséria. Falta apenas que a humanidade se coloque as tarefas certas para que haja o desencadear de um processo verdadeiramente social em cada país e se ramifique de um para outro, pois, não há mais muros a ultrapassar há apenas limites no entendimento de que a transição para o socialismo é necessária.
            Na mesma data em que se relembra a derrubada do muro de Berlim, comemoramos no Brasil a vitória do “Movimento Lula Livre”. A justiça ainda não foi totalmente feita, no entanto, para o nível de disputas políticas entre situação e oposição teremos algumas mudanças. E teremos porque, a intuição de Lula vai em direção contrária ao que as forças de esquerda, movimentos sociais e sindical vislumbraram até aqui. Se essas forças, diante da truculência do governo optaram por se recolherem à “letargia”, sem greve, marchas nem ocupação de terra urbana e rural, Lula volta querendo o enfrentamento; é lógico que pensando na própria autodefesa e nas próximas eleições. Tomara que ele espante o acovardamento das forças e estimule também a luta por mudanças estruturais a se enraizar nas contradições capitalistas para ativar o processo de transição para o socialismo.
                                                                                                                  Ademar Bogo       
             


domingo, 3 de novembro de 2019

ALERTAS CONCEITUAIS


                O italiano Antônio Gramsci, em tempos de crise, sempre volta ao recinto político para, com suas reflexões, questionar os rumos dos processos. Sua criatividade intelectual é admirável no sentido de reformular e colocar “alertas conceituais” em ordem mais abrangente.
            Um primeiro alerta é o de que na política a classe se estabelece por meio de duas formas: dominante e dirigente. Quando essas duas formas não andam juntas é porque, dentro da classe desfez-se o consenso. Nesse caso, se a classe dominante perdeu o consenso, deixa de ser “dirigente”, mas não deixa de ser “dominante”. Neste caso, para manter-se no poder utiliza ou se prepara para utilizar forças e medidas repressivas.
            Esse desfazimento de consenso há algum tempo que viemos presenciando no Brasil e em alguns países vizinhos. O neoliberalismo, como modelo de economia política em sua fase superior, para satisfazer os interesses do capital ataca os direitos sociais, a burocracia estatal e a soberania nacional. No entanto, o governo atual fez a inversão das expectativas de classe da elite e da classe média, em busca de resultados rápidos, levou à frustração e a quebra do consenso entre eles. Nesse sentido o governo antes tido como a expressão do ajuntamento das forças para composição da hegemonia política, está sendo deixado a mercê da possível fúria das revoltas populares como ocorre nos países vizinhos. Os capitalistas agarram-se às exigências rentistas para assim exercerem em particular a “dominação econômica” e o governo, agarra-se às ameaças de reinventar o Ato Institucional número 5 e piorar a lei contra o terrorismo para manter-se no poder por meio da coerção política.
            Há, no entanto, um segundo alerta que Gramsci oferece na forma de conceitos classificadores das sociedades “ocidentais” e “orientais” e que, para cada uma delas estimou que haveria a “contrariedade” na aplicação das táticas de ação, denominadas de “guerra de posição” e “guerra de movimento”.
            Segundo Gramsci, as “sociedades ocidentais”, portanto, europeias haviam alcançado um certo patamar de “equilíbrio” entre a sociedade civil e o Estado. Diante desse equilíbrio as lutas girariam em torno dos aparelhos privados de hegemonia, pois a direção política seria constituída por consenso. Essa caracterização indicaria que, para esses países a tática a ser empregada seria a “guerra de posição”, compreendida como processo de conquistas progressivas no interior da sociedade civil.
            De outro modo, as “sociedades orientais”, por não terem alcançado ainda o desenvolvimento da sociedade civil, o Estado praticamente responsabiliza-se por tudo. As lutas tenderiam a ser de explosão repentinas e, nesse caso, a tática correspondente a essa reação poderia ser chamada de “guerra de movimento”, cujo principal objetivo é conquistar o poder por intermédio do confronto.
            A questão incômoda, dispensando os critérios geográficos, nos cobra a descobrir em que tipo de sociedade, juntamente com os demais países latino-americanos nos enquadramos? A resposta teórica poderia fazer algum sentido, mas o próprio Gramsci indica em seu texto, “Maquiavel, a política e o Estado Moderno”, que, na política, além das guerras de movimento e de posição, existem outras formas. Portanto, o alerta indica que, para qualquer tipo de sociedade, há que escolher as diferentes formas de luta. Ele próprio citou o exemplo da Índia onde Gandhi utilizara três “tipos de guerra”, transmutando-se de uma para outro: de movimento, posição e subterrânea.
            O que vemos nas reações desencadeadas em diversos países é a utilização da “tática de movimento” que, por ocasião das injustiças governamentais, carentes de capacidade e consenso para garantirem a “direção política”, a população reage explosivamente. Não chegam ser reações estratégicas devido à pouca clareza dos objetivos estruturais que se fazem ausentes.
            Para compreendermos qual será o desfecho desses processos vizinhos devemos observar o terceiro alerta que Gramsci nos proporciona, que é o da organização política. Então diz ele: “Estabelecido o princípio de que existem dirigidos e dirigentes, governantes e governados, verifica-se que os “partidos” são até agora o modo mais adequado para aperfeiçoar os dirigentes e a capacidade de direção...”. Por que? Segundo o mesmo, a política é a ação permanente e dá origem a organizações permanentes.
            Gramsci então nos coloca dois dilemas, que obrigatoriamente devem ser resolvidos ou não se romperá a posição de dominação assemelhada, presente em todo o continente. O primeiro é que na contemporaneidade, na medida em que a institucionalidade passou a ser o espaço para a construção dos consensos políticos, no máximo encontramos ali duas posições denominadas de situação e oposição e, por causa disso, os partidos, em geral, foram aniquilados, existem apenas como siglas. Alguns se assemelham às antigas facções que se apresentam como a parte que luta contra o todo.
            O segundo dilema situa-se nas reações populares; elas não são permanentes e, portanto, não conseguem constituir expressões políticas. Por que não conseguem? Porque não há a estrutura partidária permanente. Esse vácuo que separa as mobilizações dos resultados, se deve, em grande medida, à falta de organismos, conforme disse Gramsci, de “aparelhos privados” para que de fato se possa valorizar as ações políticas.
            Para que isso aconteça, talvez devêssemos acrescentar um quarto alerta que dependeria de responder a pergunta sobre: que objetivo queremos alcançar com as lutas políticas de “posição” e de “movimento”? Se é para reavivar o capitalismo, os esforços empregados estão na direção correta, basta repeti-los como veio sendo: na organização de mobilizações, disputas eleitorais e governos progressistas. Caso o objetivo vise a superação do capitalismo, os esforços devem ser maiores, mais conscientes e mais organizados.
            A espontaneidade nas reações populares é fundamental para iniciar um processo de transformação, mas elas, ao mesmo tempo em que amedrontam também morrem, porque já nascem com os limites de baixa expectativa de vida, por isso é que, mesmo sem consenso e com governos com baixa popularidade, a classe dominante quase sempre continua com dominante. Só há um caminho: a organização.
                                                                                  Ademar Bogo