domingo, 28 de junho de 2020

PARA ALÉM DA BARBÁRIE


            Quando Rosa Luxemburgo em 1916 escreveu “O folheto Junius: a crise da socialdemocracia alemã” e reelaborou a tese de Engels, na qual havia afirmado que a sociedade capitalista se achava, na década que ocorreu a Comuna de Paris, diante de um dilema: “Avançar para o socialismo ou regredir para a barbárie”, tinha em mente o avanço do imperialismo no mundo por meio da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra, arraigada em   ideias nacionalistas, havia fascinado os próprios operários a entrarem nela ao lado das burguesias nacionais, levando a uma profunda crise os partidos operários da época.
            A certa altura da elaboração, Rosa Luxemburgo evidenciando o processo vindouro, destacou com clareza que, a avidez do capitalismo pela expansão imperialista, como expressão máxima do seu amadurecimento, seguia a tendência econômica de transformar o mundo e as nações, varrendo todos os métodos produtivos e sociais pré-capitalistas, subjugando todas as riquezas e convertendo as massas trabalhadoras em escravos assalariados.
            Para além de todas as catástrofes que a guerra estava provocando, basicamente destruindo algumas nações, o fator mais intrigante era a destruição da consciência da classe operária, convencida a morrer nos campos de batalha cada qual pela sua pátria. Era uma pena porque, a tradição havia formado o movimento operário com as melhores e mais educadas forças do socialismo internacional. Por isso Rosa concluiu o seu artigo dizendo que, a principal missão imediata do socialismo, era “libertar espiritualmente o proletariado da tutela da burguesia que se expressa através da influência da ideologia nacionalista”.
            A palavra de ordem assegurada por Rosa Luxemburgo, “Socialismo ou barbárie”, mais do que duas sentenças disjuntivas, era uma convocação a resistir e a superar o capitalismo; o que fora feito um ano depois pelos trabalhadores russos em 1917. No entanto, a barbárie a que Rosa se referia está muito aquém da que se abre sobre as nossas cabeças na atualidade. Na época da Primeira Guerra Mundial, as disputas se davam em favor da expansão imperialista do capital, para explorar os mercados em lugares ainda não explorados. De lá para cá, o capital cumpriu com os seus desígnios e fez, por meio das guerras, pela concorrência ou por convencimento das nações, de que a única saída de salvação do capitalismo era implantar a globalização. Com isso evitou um conflito armado universal e entregou ao mercado a responsabilidade de fazer as disputas locais e garantir a ordem mundial.
            Na atualidade já não há mais o que expandir, o capitalismo tornou-se um sistema universal. Para expandir-se terá de ir para fora do planeta, o que ainda é uma aposta, e também de nada vale explorar outros territórios, extraterrestres, se os consumidores de mercadorias continuam sendo os mesmos. Ainda não temos noção do que será a exploração do espaço, mas, sendo promissor e, não podendo a tecnologia dar conta de conduzir as formas de produção, a humanidade poderá ver tornar-se realidade a ingenuidade platônica que via dois mundos sobrepostos: sensível e inteligível. Nesse sentido é que poderá renascer a forma de trabalho escravo, deslocando para o mundo das ideias, parte das massas trabalhadoras, a outra alijada e sobrada do processo de exploração aqui na terra, entregue a barbárie e como medo dos novos traficantes de escravos, milícias e gangues, esconder-se-á como os primatas, em cavernas subterrâneas.
            A possibilidade de retrocesso do capitalismo é uma possibilidade evidenciada por Marx e Engels no “Manifesto do partido comunista”, de 1848, quando disseram, apesar do otimismo que alimentavam do processo para frente, pelo avanço das forças produtivas que, “De repente, a sociedade parece retroceder a um súbito estágio de barbárie; como se a fome ou uma guerra universal exterminasse todos os meios de subsistência, uma espécie de aniquilamento total da indústria e do comércio”.
            Por enquanto, o capitalismo cumpriu com o seu legado de ser um modo de produção, alienador e “coisificador”; incluem-se nisso, os indivíduos sociais que, como coisas, movem-se em busca da realização das trocas de si ou de suas forças, por salários ou penam  sustentados pela assistência governamental presos nos currais eleitorais.
            A destruição da classe operária e das organizações que Rosa Luxemburgo evidenciara em seu artigo, ocorreu pelo envolvimento ilusório dos trabalhadores como parte dos exércitos burgueses, destruindo com isso, a consciência, a tradição intelectual e a capacidade de defesa do socialismo. Vivenciamos agora, ambos os dilemas de forma ainda mais acentuada. Com a globalização e o modelo neoliberal tivemos a dispersão dos trabalhadores para novos ofícios que levou à inoperância a estrutura sindical, fazendo com que ela já não responda pelas massas trabalhadoras. Por outro lado, se não houve a cooptação das forças esquerda, para somarem-se aos exércitos em marcha para a guerra, essas forças marcharam unidas com as burguesias nacionais para as disputas institucionais, repetindo com a mesma tática a natureza do pensamento nacionalista do passado, de governar para os interesses internos, entregando novamente para o mercado a responsabilidade de substituir pela lei do valor o “internacionalismo proletário”.
            Podemos dizer que o entendimento estabelecido por Rosa Luxemburgo sobre o conceito de “barbárie”, está aquém do conteúdo que este conceito adquiriu ao longo do tempo, isto porque, se naquela ocasião o imperialismo ensanguentava o mundo, abrindo espaço para a expansão do capital e fazia dos trabalhadores das nações de estrutura pré- capitalistas escravos da ordem mundial, na atualidade o intento da invasão territorial já não goza de tanta dedicação e, no aspecto da exploração da força de trabalho, se o princípio do “exército de reserva” era algo fundamental para estabelecer a pressão dos desempregados sobre os trabalhadores empregados, o que vemos é a conversão a um grande “exército de desvalidos”, porque possuem uma mercadoria sem valor, pois já não interessa às forças produtivas do capital incluí-las no mercado de exploração.
            De outro modo, as funções do Estado também sofreu grandes transformações. Se na Primeira Guerra Mundial, o Estado cumpria o papel de ser a força dirigente do capital, impondo aos trabalhadores a ordem a ser respeitada e, fundamentalmente, induzindo-os a aceitar o processo de coisificação, era porque tinha algo a oferecer em troca, mesmo que fosse por meio da “esperança destrutiva” que garantia aos sobreviventes uma nação mais promissora. Na atualidade, nem o capital, nem o Estado têm mais nada a oferecer às “massas de força sem valor”; nesse sentido, também não terão como controlá-las.
            Por que então devemos pensar para “Além da barbárie”? Em dois sentidos. O primeiro sentido responde pela situação certa de “desgovernança”, em que as estruturas paralelas ao poder estatal público, como o tráfico, as milícias e as facções organizarão o próprio poder territorial, como já ocorre em muitas favelas.  Essas forças do “banditismo social”, tomarão conta de amplos territórios urbanos, oferecendo serviços e garantias privadas, em troca do pagamento de “impostos” e a colaboração individual por meio da “servidão voluntária”, que fará renascer as relações escravistas, ao obrigar os subordinados a realizarem tarefas e funções para os comandantes dos portões do submundo do crime, ou, do mundo sensível na visão de Platão.
            O segundo sentido deverá ser o socialismo. O capitalismo está situado entre o feudalismo e o socialismo. Os capitalistas sabem que não há como retroceder e, por outro lado, têm como ameaça a barbárie e a possibilidade da superação pelo fortalecimento do processo de transição socialista. No entanto, o socialismo significa: superação material, política e cultural do capitalismo. No entanto, se do ponto de vista material, as próprias forças produtivas encarregar-se-iam disso, do ponto de vista político não.
            A busca da transição socialista é também uma procura que deve ser feita pelas forças que têm interesse em fazer uma ruptura com o capitalismo. Caso não haja interesse, as mudanças para frente não acontecem,  a exemplo do que fizeram os partidos socialdemocratas da Europa no período da Primeira Guerra Mundial ou aqui e em outros países latino-americanos, a partir da década de 1980, que, embora não existindo guerra mundial, ocorreu o mesmo com o pacto da não ruptura, por meio da aceitação e a adoção da tática eleitoral.
            Ir “além da barbárie” ou retroceder, aprofundando-a, depende da disposição das novas forças políticas decidirem-se pela disposição de deixarem de ser reféns das velhas organizações que visam a governabilidade sistema vigente ao invés da construção do processo que leva à transição socialista. De algum modo, a derrota socialdemocrata alemã de 1919 ainda não foi superada, pelo simples fato das esquerdas mundiais, com raras exceções, insistirem em atuar conciliando-se com as classes dominantes.
            Com não se aprofunda a barbárie sem decadência, não se ascende ao socialismo, sem teoria, organização, decisão, lutas e consciência.
                                                                                              Ademar Bogo

domingo, 21 de junho de 2020

AÇÃO CONTRA A BARBÁRIE



            O século 16 foi o século da política. A Europa (Portugal e Espanha) lançou-se ao mar para descortinar o que havia além dos oceanos; Maquiavel, na Itália, escreveu o livro “O príncipe”; na Alemanha, Mantinho Lutero, com as suas 95 teses provocou um racha na Igreja católica e, na Inglaterra, William Shakespeare escreveu a tragédia denominada de Hamlet.
Talvez a obra mais importante tenha sido escrita na França, quando Étiene de La Boétie, elaborou o “Discurso da servidão voluntária”, contrariando toda a euforia do Renascimento. A obra escrita por ocasião da “guerra do povo” contra o rei que havia aumentado o imposto sobre o sal reflete profundamente sobre a natureza da servidão. A monarquia sanguinária francesa subjugava o povo que, até certa altura, se mantinha servil e obediente.  Mas, segundo o filósofo, a tirania sempre é um sistema autodestrutivo porque se sustenta sobre a troca da liberdade pela suposta segurança oferecida pelo ditador. O rompimento vem na medida que o vínculo se enfraquece.
Mais grave do que a população submissa é nunca ter certeza do que ditador irá fazer; isto porque, não há como acreditar que exista algo “público” em um governo no qual tudo depende de um só indivíduo.
            A preocupação de La Boétie era saber o porque, pessoas, cidades e a nação se submetiam a um só tirano que só tinha o poder que lhes era dado e que poderia fazer o mal enquanto quisessem suportá-lo. Segundo o autor, é uma coisa realmente admirável ver um milhão de homens servir miseravelmente e dobrar a cabeça pelo simples fato de estarem fascinados ou enfeitiçados  por um homem só. Mas se o país não consentir, o tirano se destrói sozinho. Para isto as pessoas precisavam não fazer nada contra si mesma. “É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso ou ser livre, renuncia a liberdade e aceita o jugo...”.
            Se no “século da política” as reações deveriam voltar-se contra a servidão e deixar para as pessoas deixarem de serem submissas, no “século da barbárie” que estamos vivendo as reações, se quisermos continuar  vivos continua sendo contra os ditadores.
            O conceito de “servidão voluntária” hoje volta a nos preocupar. Embora aquele que nos oprime tenha só dois olhos, duas mãos, um corpo, igual a qualquer um habitante, como tinham os ditadores do século 16, é certo que ele tem instrumentos mais qualificados para executar a dominação, no entanto, esses instrumentos continuam sendo dados e sustentados pelo povo. Então, se La Boétie tinha razão em perguntar, de onde tirava tantos olhos para espiar, se não na própria população? Como tinha tantas mãos para bater, se não as tomasse emprestas do povo? Os pés para pisotear as cidades se não das próprias pessoas que apoiavam? Ou seja, existiria algum poder que não fosse do próprio povo? Por que não nos fazemos as mesmas perguntas hoje?
            É de fundamental importância que, o caminho que leva à servidão e a quietude da submissão é cheia de contradições, como se fossem buracos que impedem o ditador a ir mais rápido em direção ao seu objetivo. São essas contradições que devem servir de ânimo para que haja a reação em busca da superação das investidas destrutivas. O que os animais que vão ao abatedouro fariam se soubessem que no final de um longo corredor, existisse uma  lâmina que decepasse a cabeça de cada um? A barbárie é a navalha colocada ali no final do corredor do futuro próximo, no entanto, a humanidade segue pacientemente pelo corredor em direção à navalha que cortará coletivamente a maioria das cabeças.
            Há décadas e séculos que certas práticas se repetem no Brasil. A destruição dos povos indígenas desde a chegada dos portugueses; o roubou dos minérios e da madeira; mais recentemente, do petróleo e a depredação da Amazônia que fica a mercê da decisão de um indivíduo rodeado de ministros, tomados pelo ódio de tudo e de todos que se autorizam a liberar a matança de pessoas, de árvores e de direitos enquanto ameaçam com golpe militar.
            Tudo, supostamente autorizado pelo voto ingênuo digitado sem que haja o conhecimento das relações e interesses escusos que estão por trás daquelas candidaturas. Então votamos e ficamos a espera de que “os governantes” tomem as decisões e façam os encaminhamentos que venham substituir a barbárie pela servidão. E o que vemos? Mais barbárie e mais autorização para que ela continue.
            Desconhecemos que acima do poder de voto está sempre a força da iniciativa privada que, sob o comando político dos ditadores, o Estado passa a realizar os interesses dos dominadores que se atrelam aos ditadores.  
                É tempo de perceber que as servidões sempre são perversas e, mais ainda, quando são voluntárias ou ingênuas, pois, evitam perceber de onde vêm os males que enfrentamos. Só há um caminho para a liberdade: a derrota definitiva dos ditadores, exploradores e colaboradores da servidão. Só a luta salva o povo.
                                                                                  Ademar Bogo 


domingo, 14 de junho de 2020

COMBATER O FASCÍNIO E O FASCISMO


            
            O filósofo alemão Wolfgang Fritz Haug escreveu no século passado, o livro, “Critica estética da mercadoria” e nos mostrou como os indivíduos na sociedade fascinam-se quando entram em contato com as mercadorias. A qualidade torna-se um símbolo que atende e supre às necessidades imediatas; por isso, a característica particular do artigo de marca baseia-se na imagem que afirma o proprietário ou o monopólio.
            Portanto, é de fundamental importância observar que nos movemos cotidianamente por valores estéticos que, no jogo comparativo entre o bonito e o feio, o atrativo e o repulsivo, o bom e o ruim, o forte e o fraco etc., tendemos sempre a ficarmos com as referências que entendemos como positivas. Quanto a isso pouco temos a dizer, pois, entendemos que as escolhas fazem parte de nossa “privacidade democrática”. O que não sabemos claramente é que, essas escolhas fazem parte do jogo capitalista de legitimar as necessidades da classe dominante, ao mesmo tempo em que legitimam também as necessidades dos dominados e, estética, vista aqui como a viam os gregos, como “a arte de sentir”, participa como a força de legitimação. 
            É nesse sentido que podemos falar de “engano consciente” que impulsiona o indivíduo para o consumo porque gosta ou se sente atraído pelo produto, mas, ilusoriamente engana-se o indivíduo ao achando ser melhor aquilo que o satisfaz. A atração é aumentada por meio da propaganda que ataca propositalmente o Id humano, responsável pelo princípio do prazer, que fica ainda mais exacerbado quando toma conhecimento, por meio da propaganda que há produtos em promoção.
            A transmutação da estética do mercado para a estética política acontece pela simples substituição dos produtos oferecidos. As necessidades subjetivas precisam também serem despertadas e supridas pela fascinação. A relação é tão íntima entre o mercado e a política que não há como fazer uma boa campanha eleitoral sem oferecer resultados ou valores de uso antecipados.
            As semelhanças tornam-se ainda mais evidentes quando tomamos como referência de análise a categoria da “concorrência”. As propostas apresentadas pelos candidatos estão no mesmo nível de fascínio, isto porque, elas não ameaçam, ao contrário, fortalecem a esperança do consumo. Elas aproximam, por meio da fantasia, o eleitor da futura aquisição: casa, eletrodomésticos, pacotes de viagens, acesso à escola etc.
            Se isto é verdadeiro, com muita facilidade compreendemos porque há oscilações e, muitas vezes, bruscas inversões dos regimes democráticos para regimes totalitários e exemplo do que vemos no Brasil quando houve o desprezo pelo novo-desenvolvimentismo pela escolha do fascismo. Qual é o ponto crítico dessa inversão? Podemos atribuí-lo sem medo de errar: ao fascínio do consumo que, ao seu redor gravitam outros desejos.
            A lógica para explicarmos esse fenômeno reside no próprio movimento da consciência das massas que têm por base os elementos da estética econômica. Na medida em que o sistema capitalista se mantém intocável, as satisfações devem ser encontradas nele mesmo. Logo, não havendo consciência critica é o fascínio do consumo prometido que impede de percebermos os fundamentos estruturais da exploração e, o indivíduo atraído coloca-se frente ao tempo espera como se estivesse diante da porta de um supermercado, com produtos em promoção, no aguado do horário que as portas se abram.
            Se a promoção pode deslocar as pessoas de uma loja para outra, é sinal que elas não estão preocupadas com os concorrentes, muito pelo contrário, querem que eles concorram, pois, quanto mais concorrem, mais fascínios provocam. Por sua vez, a classe dominante, ao perceber que despertou a ansiedade do consumo que prometem “uma vida melhor”, aproveita para violentar as ideias contrárias que concorrem, mas, no fundam alimentam as mesmas intenções.
            As “forças de esquerda” deveriam já ter se dado conta de que concorrem com as “forças de direita” dentro da ordem liberal como se fosse um grande supermercado. Dentro dessa ordem, se não atuam para conscientizar permanentemente a população, para que compreenda que, “uma vida melhor” depende da superação do capitalismo, mesmo “sem querer”, como fazem os capitalistas,  ela cumpre o papel de fascinar as massas para o aumento do consumo de mercadorias.
            O intuito de governar para “melhorar a vida do povo” estão nos programas de ambos os concorrentes e isto não tem como não sê-lo. Ninguém se proporia a fazer uma campanha eleitoral propondo piorar as condições sociais. Mas é preciso, pelo menos, compreender que os mandatos são ameaçados pelo tempo e, em cada pleito renovam-se as ilusões com a presença de novos fascinadores e fazem as massas inconscientes mudarem de lado, de ideias e de cores.
            Mais do que isto, é importante perceber que as classes dominantes manejam essas variações de regime porque comandam a base econômica e confiam na estrutura de poder do Estado capitalista. Agem com maior vigor, quando a “seleção natural” é desequilibrada e as crises põem em risco a estabilidade de seus negócios. Nesses momentos, preparam os ataques, convencendo as mesmas massas que ontem festejaram outros concorrentes. Se para isso for preciso, temporariamente, reeditar o nazifascismo, basta apenas fascinar as massas com algumas ilusões de melhorias futuras.
            Podemos concluir que, as relações materiais determinam as demais relações sociais, sendo assim, a política liberal, como ocorre no mercado, alimenta-se da concorrência entre as forças que se substituem ou se revezam no comando, obedecendo o princípio da “maioria sobre a minoria”. Esse revezamento, dentro da ordem liberal, do ponto de vista da democracia, raramente ofende a classe dominante porque ela está assegurada pelas leis do próprio sistema econômico. Também não afeta os maus tratos sofridos pelas grandes massas empobrecidas, porque, elas vivem historicamente nas favelas, o totalitarismo policial, o abandono do estado e a repressão das milícias armadas. Há de fato, um prejuízo para as classes médias em geral que, de algum modo, sempre estiveram inseridas no mercado de consumo, possuem os direitos que realizam os fascínios profissionais e são elas que efetuam as disputas políticas.  
            No passado, os comunistas tratavam os desvios de comportamento da classe operária que só via os ganhos econômicos, como “economiscistas”, pois, as táticas levavam a se manterem presos à luta sindical. Na medida em que eram convencidos a tomarem o poder sob a direção do partido de quadros intelectualizados, tornavam-se conscientes e assumiam a vanguarda do movimento revolucionário. Agora, vivemos tempos que, a classe operária e a luta sindical sofreram enormes desintegrações e, os partidos políticos de esquerda, dirigidos por indivíduos da classe média, distanciaram-se das massas e, atraídos pelo poder institucional, tentam influenciar as massas não conscientizadas, com promessas fascinantes, utilizando-as, não como vanguarda, mas apenas como objeto de uso para concorrer com as forças de direita e governarem a mesma ordem liberal capitalista.
            Sem a presença da classe operária com princípios e consciência revolucionária, os grandes contingentes de massas populares estão reféns das classes médias intelectualizadas, atreladas aos capitalistas. Essas massas cumprem o papel de serem atraídas pelas fascinações mercadológicas de promessas de uma “vida melhor” que, ora pendem para a direita para fortalecerem os objetivos liberais e nazifascistas; ora para a esquerda partidarizada, para ajudarem a realizar os objetivos populistas e reformistas para, em qualquer circunstâncias, fazer funcionar o sistema capitalista.
            Para quem sonha com a superação do capitalismo é preciso romper com essa tradição, política, moral e intelectual e combater a fascinação e os facínoras do nazifascismo com a mobilização, a organização e a formação política, de setores das classes e das massas populares, entregando a elas a responsabilidade de serem sujeitos da própria História.
                                                                                                                           Ademar Bogo


domingo, 7 de junho de 2020

DEMOCRACIA SATISFATÓRIA



            Quando falamos em “Democracia”, vêm-nos de imediato a ideia da perfeição política que nos leva de volta à Grécia Antiga ou até Atenas, cinco séculos antes de Cristo. O “poder do povo” para Drácon e Sólon consistia a reunião da “assembleia do povo”, quando os cidadãos podiam expressar livremente aquilo que desejavam e, por ser um número significativo de pessoas, o lugar mais adequado para os encontros era na praça central da cidade. O número de participantes, no entanto, não era tão significativo; no governo de Cístenes chegou a seis mil pessoas, sendo que quinhentas participavam também da “Bulé” uma forma de conselho responsável para administrar a cidade.
            Vista por alto, ou na superficialidade, a “Democracia ateniense” para as culturas ocidentais passou a ser o espelho, principalmente, a partir da Idade Moderna e na estruturação das formas de governo no capitalismo. No entanto, se olharmos cuidadosamente veremos que menos de trinta por cento da população ateniense, tinha o direito a participar das decisões.
            Desde 510 a 404 a.C, tempo que durou a democracia ateniense, podiam participar das assembleias apenas os cidadãos acima de trinta anos e apenas os que eram proprietários. Ficavam de fora os jovens abaixo de trinta anos, os escravos, as mulheres e também os estrangeiros. É evidente que, se observarmos como era exercido o poder antes das reformas de Drácon e Sólon iremos nos convencer que, para aquela época, esses senhores promoveram uma revolução política.
            Os ideólogos da formação do Estado capitalista buscaram na experiência grega, os fundamentos para estabelecer a democracia representativa. Podemos encontrar relações diretas nos discursos dos iluministas e o próprio Immanuel Kant quando racionalizou o individualismo, dando à burguesia os fundamentos para ela mesma romper com o Direito Natural e produzir o seu próprio Direito. Para Kant, a “união civil” é a união entre todos os proprietários privados ou os possuidores de bens entre o povo. A propriedade, como elemento diferenciador, permaneceu como critério para a participação política e, no caso brasileiro, só veio a ser parcialmente retirado, em 1932 quando permitiu o direito de voto também para as mulheres, principalmente as viúvas que fossem proprietárias.
            A democracia, na contemporaneidade, é invocada sempre que aparece alguma ameaça de retrocesso institucional. As vozes dos que sempre tiveram voz surgem por primeiro e convocam o povo a se manifestar. Em épocas em que parte da elite dominante, das classes médias e das forças reformistas e progressistas não sentem que a democracia está em perigo, agem consensualmente para manter o “Estado de Direito”.
            No entanto, se colocarmos um grau maior na lente, podemos ler que, nas entrelinhas da democracia institucionaliza, há uma satisfação dos interesses para os mesmos trinta por cento da população, conforme funcionava a democracia na Antiga Grécia.
            A democracia, na visão liberal e pequeno burguesa é, principalmente, a garantia da liberdade, que se manifesta por meio do funcionamento do mercado aonde também funciona o livre consumo; das garantias individuais que asseguram o direito de posse; da permissão de realizar eventos festivos; do direito à informação inclusive com a presença de uma imprensa livre; da constância na realização dos concursos públicos; da presença do capital internacional com as devidas honras aos investimentos privados; da universidade pública e, sem prolongarmos muito, da presença “na festa da democracia” quando todos são chamados a votar e a eleger dentre os candidatos oferecidos para serem verdadeiros representantes.
            É evidente que isto é satisfatório para quem de fato não possui problemas de acesso à escola, ao atendimento à saúde, não depende do transporte público, mora em lugares privilegiados com ruas asfaltadas e iluminadas etc. Para estes é preciso que o Estado invista mais em segurança e que os efetivos policiais estejam nas ruas para constrangerem as iniciativas criminais. Ocorre que há uma outra parte da sociedade, que não tem direito à “democracia satisfatória”, a não ser quando é chamada a participar das eleições, porque o voto legitima a presença e também a ausência daquela democracia.
            Para essa grande parte da sociedade, no cotidiano, aquilo que é feito com “ordem judicial” contra a criminalidade elitista, para as populações pobres, essa ordem está na sola dos coturnos dos policias, que arrombam as portas ou, no impulso das balas, que furam as paredes e atingem os indivíduos de qualquer idade e os matam. Ou ainda, para os trabalhadores que são revistados na ida e na volta ao trabalho ou para aqueles que arriscam organizar mobilizações reinvindicatórias, as forças policiais sempre estiveram do lado contrário e, por isso, o totalitarismo como regime de governo, funciona o tempo todo.
            Para a maioria das populações periféricas existem apenas dois e não três poderes na república: o poder policial e o poder das milícias armadas.
            Nesse sentido, é importante que nesses períodos como o que estamos vivendo, quando a “democracia satisfatória” de coloração liberal, está ameaçada pelos próprios defensores, que as cabeças conscientes refletiam e ajudem a pensar que a maioria da população nasce e morre sem nunca ter experimentado o que é o gosto de usufruir verdadeiramente da liberdade. E, considerar também que, o toque de recolher, quando não é imposto pelas armas apresenta-se na falta de condições que impedem de ir e vir, porque, a essas populações até o sagrado valor de troca lhes é negado.
            Para além disso, é fundamental que se perceba que a “democracia satisfatória” que garante o prazer de viver em sociedade, para a minoria da população, é  enganosa e frágil como uma rede de pesca que um simples esforço do tubarão descontente pode rompê-la. A ordem que satisfaz é aquela que favorece a classe dominante e, sempre que essa ordem representa qualquer empecilho para que os interesses sejam realizados, ela mesma se compromete a desrespeitar a lei que sempre usou para coagir a maioria da população.
            Acima de tudo, é importante compreender que essa burguesia que conhecemos, já foi vista na sua origem, por Karl Marx, como uma força altamente dinâmica e despudorada. Ela é assim porque criou a si mesma na estranhas do feudalismo nas transações dos primeiros comerciantes; depois criou o proletariado para o uso próprio. Para afirmar-se realizou três revoluções: a industrial, a política simbolizada na Revolução Francesa e, a liberal, no final da primeira metade do século dezenove. E ainda, criou o Estado capitalista, o Direito positivo e a moral que legitima a exploração do trabalho e considera que a riqueza é fruto das benções divinas. Enfrentar uma criatura com essa genética, apenas com o voto, é como tentar matar um rinoceronte com um garfo.
            Por outro lado, devemos intuir que as mudanças sociais não ocorrem sempre para frente, há momentos em que os retrocessos colocam em risco a própria sobrevivência das espécies; esses momentos estão se repetindo cada vez mais próximos um dos outros.
            As mudanças para frente, neste estágio do desenvolvimento do capitalismo, exigem, além da pressa, o entendimento dos conceitos, para que não sejam repetidas as mesmas ilusões passadas e, acima de tudo, ter clareza do que queremos edificar como substituir para a “democracia satisfatória”. Nunca estivemos tão perto de temos um mundo a ganhar ou um mundo a perder. A escolha é urgente.
                                                                                   Ademar Bogo