domingo, 25 de outubro de 2020

PENSAR É SENTIR


            O filósofo francês René Descartes, em seu tempo de vida, deparou-se com um problema filosófico de difícil solução, que resumidamente se expressa na pergunta: “O que é pensar?”. A resposta surpreende porque, ao invés de relacionar o pensamento puramente com as ideias considerou ele que, “pensar” é tudo o que ocorre em nós; “é por isso que não somente compreender, querer, imaginar, mas também sentir, são aqui a mesma coisa que pensar”.

            O enunciado, contido em “O Discurso do Método”: “Penso, logo existo”, em grande medida tem, no pensar, no compreender, no querer, no imaginar e no sentir a explicação para uma completa cognição entre o Eu e o tudo. Portanto, é por meio dessa relação entre objetividade e subjetividade que ocorre o encontro entre o concreto e o abstrato existentes no mesmo ser.

            No passado Aristóteles ao formular a metafísica havia antecipado, por meio das categorias de Ato e Potência, o que René Descartes veio a demonstrar séculos depois. É claro que ambos podem ter ficado muito atrás daquilo que vivemos com as contradições que o sistema de produção, circulação, troca e consumo de mercadorias provocam na organização social. Porém, de um modo ou de outro não escapamos de considerar que existem subjetividades nas relações sociais, políticas, religiosas, culturais etc., porque, sendo que somos mais do que “animais políticos”, imaginamos e queremos sempre ser reconhecidos como seres sociais.

            No entanto, com a definição anterior de que pensar é tudo o que ocorre em nós, desmentimos Descartes com a sua própria teoria, na qual, para justificar a existência da razão no ser humano e não nos demais seres, localizou duas substâncias distintas nas espécies: o “puro pensamento” e a “pura extensão”. Em geral estão separadas, mas no homem encontram-se reunidas no mesmo corpo pela glândula “pineal” situada próxima à nuca. Nesse sentido, se o pensar não é constituído apenas por ideias, mas também de compreensão, querer, imaginação e sensibilidade. seriam apenas os humanos a terem essas faculdades em si?

 

            Aristóteles havia alertado que somos “animais políticos”, que não significa igualar o homem ao “bicho do mato”, mas considerar que pelo menos, uma boa parte de nossa existência é gasta em busca da produção da subsistência, exatamente porque temos necessidades animais. Os animais por sua vez gastam toda a existência em busca da subsistência e se despreocupam com a política.

Se alguém tentar nos surpreender com a pergunta: onde está a diferença entre a espécie humana e as demais espécies? Prontamente responderemos: “na capacidade de pensar”. Pela visão contraditória de Descartes, esta resposta está errada, isto porque, se não pensamos apenas com as ideias, mas também com as sensações, não podemos ignorar que as outras espécies também pensam por que sentem, e o “penso, logo existe” é o mesmo que dizer, “sinto, logo existo”.

No passado podia-se dizer que a diferença entre o “animal político”, e os demais animais selvagens era de que, o primeiro administrava a polis e os outros as selvas. Como havia mais animais selvagens do que seres humanos, o espaço reservado para eles era imensamente maior. Mas eis que, com o advento do capitalismo, a mão pesada do progresso com a sua fineza tecnológica, avançou sobre os territórios dos animais e o “animal político”, também chamado por Rousseau de “bom selvagem”, investindo contra as selvas tornou-se uma ameaça para a totalidade das espécies agindo com tamanha crueldade, que fez tremer de arrependimento, Prometeu, o deus do fogo, por ter um dia dado de presente esta arma infernal que veio a devastar o mundo dos animais.

            O fogo, portanto, continua sendo, desde a antiguidade, motivo de discórdia e de ameaça às espécies “inferiores”. Com ele como disse Thomas Hobbes, instala-se a “guerra de todos contra todos”, com as armas de fogo ou o fogo como arma “animais políticos” e animais selvagens” vão sendo eliminados, com tamanha velocidade que faria rir os inventores do nazismo.

            O motivo para tanta violência contra a natureza, está situado no aumento da população mundial e das necessidades vitais, principalmente no que diz respeito a alimentação, vestuário, calçados e bens de consumo, impulsionaram os mercados mundiais que passaram reclamar a carência de matérias primas como base para a produção de mercadorias. Guiado por esses interesses, os capitalistas brasileiros voltaram aos tempos da colônia e passaram a  massacrar os índios, dizimar os animais selvagens e a queimar as florestas para produzirem a majestade bovina. Assim o fazem porque os países que condenam a devastação continuam comprando carne produzida sobre o morticínio o amazônico.

            Filósofos e cientistas descrevem a “política da morte” ou a “necropolítica”, mas é preciso lembrar que ela não se efetiva sem sujeitos e instrumentos. O “necrocapital”, o “necromercado” e o “necroestado” agem articuladamente enquanto os noticiários e muitas análises políticas mostram apenas as consequências.

            É hora de pôr em marcha a insurreição popular única forma de frear a ganância dos ricos e a matança dos pobres e da natureza. Par isto é preciso comando, organização e consciência.

                                                                                              Ademar Bogo

domingo, 18 de outubro de 2020

PERVERSIDADE E IMORALIDADE

    O filósofo Arthur Schopenhauer em seus escritos atormentados, nos mostra sempre elementos atualizadores da capacidade maligna dos humanos. Um de seus pensamentos assertivos afirma “Que o mundo tenha apenas um significado físico e nenhum significado moral constitui o maior, o mais pernicioso, o erro fundamental, a própria perversidade do modo de pensar, e no fundo é aquilo que a fé personificou como o anticristo”.

            Por “significado físico” podemos entender a importância dada às coisas mortas, às mercadorias, à tecnologia e ao capital, mais do que às espécies vivas que não entram no mundo dos negócios. Por essa razão é que não encontram tais agentes, promotores da exploração lugar para a moral e para a moralidade, antes sim, atuam na contramão adotando princípios imorais que orientam e possibilitam a prática de imoralidades.

            Na sequência da reflexão sobre a ética, o filósofo denuncia de forma acusatória, ao dizer que, “O homem é no fundo um animal selvagem, terrível. Nós o conhecemos meramente no estado subjugado e domesticado que se denomina civilização: por isso nos apavoram as eventuais irrupções de sua natureza”. Isso nos faz pensar que, de acordo com as nossas origens selvagens, apesar das tentativas de domesticação da civilização, mantivemos os instintos da selvageria e, tais quais são as diversidades das espécies com seus temperamentos dóceis e perversos, entre os humanos, encontramos todas as provas de que os mais terríveis entre os seres vivos, não são os tigres e os leões que habitam a terra e os tubarões do mar, mas o homem que se sente dono e, destrutivamente, avança sobre as selvas, as águas e na sociedade em geral.

            Geralmente damos pouca importância aos filósofos contratualistas quando estabeleceram argumentos convincentes para o estabelecimento do contrato social. Para eles era uma extrema periculosidade viver no “estado de natureza”, pois, ali, segundo Thomas Hobbes, o homem era “o lobo do homem”. No entanto, deixando de lado todos os esforços humanistas, podemos reconhecer que a premissa que sustenta a selvageria do lobo em ação é verdadeira. O homem, como genuíno animal selvagem nunca deixou de submeter, pelo terror e o medo, nem de devorar os seus iguais, seja pelo homicídio, exploração produtiva, exploração sexual, estupro de mulheres, crianças e vulneráveis; maus tratos com os idosos, discriminação e escravização de negros e tantas outras perversidades cometidas contra os demais animais, pondo fogo nas florestas e contaminando os rios, a terra e o ar com agrotóxicos.

            Diante disso podemos criticar os filósofos contratualistas, ingênuos e crentes que a criação do Estado capitalista poderia coagir os seres de maior periculosidade civilizatória, a não agirem guiados pelos próprios instintos, mas, submetidos à lei deveriam igualarem-se na busca da justiça. O “significado físico do mundo” foi mais forte que as boas intenções e, dentre os animais, os mais ferozes, dotados de inteligência, impõem a ordem que favorece a eliminação do “significado moral” dessa civilização sem juízo ético.

            O aprendizado dos animais dos negócios perpassa as épocas e nos atormenta sempre que surgem ameaças destrutivas. Como são eles os mais perversos a defenderem a existência da lei e a se valerem dela, sabem que primeiro se pratica o fato, melhor dizendo, o delito, depois se faz a lei para validá-lo ou condená-lo. Estas duas últimas possibilidades ficam à escolha de cada situação, para que a força de repressão legitima do Estado possa implementá-las.

            Nesse sentido, com um simples esforço podemos reconhecer os momentos na História do Brasil quando a Lei legitimou a perversidade dos animais vestidos e artificialmente perfumados. Neste século, lembremos da aprovação do plantio clandestino das sementes trangênicas de soja que, após as safras colhidas não havia o que fazer com o produto e por isso, após duas proibições desrespeitadas, no ano de 2005 aprovou-se a lei que liberalizou o plantio e o uso indiscriminado de agrotóxicos. Em 2016, prevendo a realização do Golpe Institucional que derrubou a presidenta da República e as possíveis reações dos movimentos populares, a própria presidenta, vitima do Golpe, foi induzida a sancionar a lei Antiterrorismo. E, para resumirmos, neste momento, tudo está sendo feito para desregulamentar as leis ambientais que permitem invadir e destruir as florestas e os manguezais.    

            Se a violência nas selvas pode ser denominada de “selvageria”, a prática da violência civilizatória deve ser chamada de “barbárie”. Surpreende porque o homem perverso, amedrontador e cruel é praticante das duas formas. Mas havemos de enfrentá-las.

            Havia no passado caricaturas ilustrativas que demonstravam a reunião de peixes pequenos para enfrentar os tubarões. Agora é preciso que as espécies do bem, pessoas, florestas, jacarés, onças, ervas e insetos que não acreditam em “contrato social” no capitalismo, nem que o Estado seja o mediador para harmonizar as diferenças, para enfrentarmos, primeiramente, os homens perversos e sem moral, nacionais e imperialistas, que governam e exploram amparados nas leis e nas milícias privadas, para praticarem todos os tipos de crimes; em segundo lugar, o fogo, que a cada ano, torna vítima a natureza, abrindo clareiras para a invasão gananciosa dos fazendeiros, praticantes do matricídio; em terceiro lugar, o boi, que se tornou o principal agente da devastação e, em quarto lugar, a produção extensiva de todos os monocultivos que comprometem a reprodução da diversidade de sementes e a própria soberania alimentar.

            Para que o homem deixe de ser lobo do homem e, portanto, este animal terrível que é, devemos despi-lo da pele de cordeiro com a qual se veste e, com a qual engana: os eleitores a elegerem os mesmos perversos como governantes; as crianças, para abusá-las; os consumidores, para vender-lhes ilusões; os fiéis, para que se prostrem em adoração à própria alienação; os pobres em geral, que acreditam em auxílio sem dignidade; as mulheres, a serem submissas e aos jovens que esperam que o futuro seja melhor sem a sua participação.

            Em síntese, o homem saiu do “estado de natureza”, mas o “estado de natureza” nunca saiu dele e, embora a civilização o tenha domesticado, a maioria se verga sob o peso da lei, enquanto a minoria continua exercendo, da ilegalidade e da imoralidade a perversidade destrutiva. É hora de dar uma lição definitiva aos perversos, para que o planeta possa ter garantido o seu futuro. Sendo, mesmo continuando sendo animais racionais e irracionais, teremos que aprender que destruição só pode gerar destruição e, preservação, gera respeito, igualdade e dignidade.

                                                                                                          Ademar Bogo                                                                                                      

             

domingo, 11 de outubro de 2020

A JUSTA MEDIDA DEMOCRÁTICA

           A “justa medida” é um conceito pertencente a Aristóteles que, ao elaborar as formas de justiça, definiu, na “justiça corretiva” que “ela será o meio-termo entre perda e ganho”. É, para ele, com essa intencionalidade que as pessoas recorrem ao juiz, representante de uma espécie de “justiça animada”, latente e pronta para interferir nas questões litigiosas em busca de resolvê-las.

            Aristóteles é aparentemente rígido na aplicação da justiça, mas é condescendente com o sistema da ordem estabelecida, isto porque, o papel do juiz e da justiça é “restabelecer a igualdade”, seja no caso de ferimento, morte, ou quando o sofrimento e a ação forem desigualmente distribuídos, o juiz busca, por meio da pena, subtrair uma parte do ganho do ofensor para compensar a perda da vítima.

            Poderíamos seguir resgatando os elementos que sustentam a argumentação sobre as formas de justiça em Aristóteles e estender os seus ensinamentos, vinculando-os às formulações de São Tomás de Aquino que veio entender que, na “justiça corretiva” de seu mestre, deveria ainda agregar-se a “reparação dos danos”, fazendo com que, comutativamente o infrator tivesse que arcar com os custos do mal causado.

 Em síntese, podemos concluir que esses entendimentos perpassaram todas as épocas e, no capitalismo, contribuem para estruturar o sistema tributário, empregar sanções por meio das multas, estabelecer acordos de leniência firmados entre infratores confessos e o Ministério Público Federal. Nesse sentido, as infrações e diversos tipos de crimes têm as penas facilitadas para os ofensores, por meio do pagamento em dinheiro por todos os danos causados. Por exemplo, uma multa de trânsito segue o mesmo ritual de um crime ambiental de desmatamento ou incêndio nas florestas, como também a sonegação de impostos etc. As multas são subterfúgios para “reparar os danos”, mas mantêm o sistema e a ordem exploradora e desigual em harmonia com os desejos de expansão do capital.

De outro modo nos interessa relacionar esses delineamentos reflexivos enraizados também nos programas políticos partidários que operam na contemporaneidade com critérios que são próprios para a manutenção da ordem desigual, coercitiva e vantajosa para as classes dominantes. É nessa trama de interesses escusos e entendimentos equivocados que os discursos dos políticos dos atuais partidos, de “direita” e de “esquerda”, expressos em defesa do “Estado de Direito” servem como conteúdo para o conceito de “democracia” no capitalismo.

Se das forças partidárias de direita nada se espera de justo, das forças de esquerda também não se pode esperar que haja a superação das injustiças. Para estas últimas o conceito de democracia abriga a ideia de que tudo se resume na garantia dos pleitos eleitorais. A simples ameaça de fechamento do Congresso Nacional é suficiente para dar fôlego à argumentação de que “estamos rumando para o totalitarismo”. O mesmo se dá com o conceito de “liberdade” que também envolve a grande mídia, significando nada mais do que “o direito à expressão”. É evidente que sem esses mínimos de garantia piora muito a convivência com o regime, mas, com apenas essas garantias somente a minoria que tem acesso a alguns direitos se sente beneficiada e incluída à ordem.

As limitações forjadas nas praticas conciliadoras em vista da garantia do direito de figurar como “sujeitos da ordem”, tem trazido para os trabalhadores e as massas cada vez mais pobres, o aprofundamento da alienação. Ela faz creditar ao Estado e aos governos gestores de políticas públicas, a responsabilidade para atacarem as desigualdades sociais. No fundo, há décadas vem se tentando fazer crer que, existem “governantes do mal” que gerem o Estado capitalista do mal e, “governantes do bem” que gerem o Estado capitalista do bem.

Diante desta concepção, falar em “democracia institucional”, na atualidade é música para ouvidos dos partidos de esquerda. O bom funcionamento das instituições, com concursos públicos assegurados; segurança pública estruturada para combater a criminalidade; o acesso aos meios de comunicação; a manutenção de programas emergenciais etc., parece fazer inveja a Platão, por não ter visto a implantação do modelo republicano idealizado e, a Thomas Morus por não vislumbrar a utopia realizada.

Para os leitores mais atentos das contradições do movimento da História, não custa lembrar que os conceitos de esquerda e direita, foram formulados dentro do parlamento francês, logo após o triunfo da Revolução francesa. A natureza da denominação surgiu devido o acaso da acomodação geográfica dos jacobinos agrupados naquele lado esquerdo da Assembleia. Se, naquele acaso, tivessem invertido as ocupações de espaço, os jacobinos progressistas e radicais seriam de direita e os girondinos, conservadores, seriam esquerda.

Poderiam essas classificações hoje pouco importar se não fosse uma semelhança com o passado, em que direita e esquerda; situação e oposição representaram e representem posições a favor da ordem estabelecida e da permanência do capitalismo.

A unidade em torno da manutenção da ordem capitalista é de fácil comprovação. Vejamos um exemplo baseado na “justiça corretiva”. Qual é a solução que os partidos de esquerda indicam para “sair da crise econômica”? Taxar as grandes fortunas. Sem desmerecer a alternativa, mas as forças que propõem isto, hoje, já estiveram no governo Federal e várias delas estão nos governos estaduais. Por outro lado, esqueçamos as apelações casuísticas; imaginemos que isto venha a ocorrer, enfraqueceria a classe dominante? Desestruturaria o capitalismo? Criaria condições para a transição socialista?

Da mesma forma, algumas outras soluções são mostras de medidas democráticas e visam afirmar a possibilidade de que essas forças, temporariamente derrotadas, voltem ao governo para pagarem, com as próprias mãos, parte das dívidas sociais que o Estado contraiu ao longo do tempo, contra a população. Gerariam mais empregos, financiariam moradias, abririam vagas nas universidades etc. Bastaria apenas uma chance para fortalecer o Estado e fazê-lo garantir empregos por meio de concursos públicos; liberar créditos e incentivos aos capitalistas para comprarem força de trabalho; expandir o comércio para recolher impostos e pagar a dívida pública; manter as taxas de juros elevadas para que os Bancos privados e públicos acumulem capital e emprestá-lo aos investidores etc.

Podemos então recolocar a pergunta: se defendemos somente essas propostas de que lado estamos, contra ou a favor ao capitalismo? Entendemos que a influência metafísica de Aristóteles ronda e contamina as ideias de nossos intelectuais e políticos que se empenham em encontrar soluções para os problemas sociais, mas, no fundo, o que fazem é encontrar no processo de decadência do capitalismo a “justa medida” para que esse sistema não colapse de uma só vez.

A você que agora junto raciocina, deve estar se perguntando: é errado então propor medidas que penalizem os ricos e lutar para derrubá-los do governo? Não. O erro não está em tomar medidas imediatas que estejam contidas num programa mínimo, mas, em só propor isso e não colocar como meta a superação capitalismo como se com ele se poderia se pudesse, cobrando pelos danos estabelecer a justiça. Se, com a “justa medida” Aristóteles fez funcionar melhor o escravismo, com as mesmas medidas não se fará funcionar cada vez pior o capitalismo.

Lembramos ainda que não basta dizer-se de “esquerda” para ser contra o capitalismo. As práticas mostram-nos o contrario. Se as forças políticas se somam quando se trata de garantir o funcionamento em funcionamento o capital e o Estado, não podemos dizer que existem dois lados. A simples existência desses dois elementos, capital e Estado seria o suficiente para mostrar-nos que viveremos na sociedade cada vez mais desigual.

E, para os que relutam aceitar essa argumentação, embora se denominem “marxistas”, uma simples olhada no “Manifesto do partido comunista” de 1848, mostra que, naquela época as ideias revolucionárias comunistas enfrentavam três posições transviadas socialistas: a) Socialismo reacionário; b) Socialismo conservador e c) Socialismo e comunismo crítico-utópico. Nenhum deles servia e, para não serem confundidos, Marx e Engels nomearam o programa de, Manifesto de Comunista.

Para a juventude dispersa nos partidos, igrejas ou completamente desorganizada, mas que é portadora do germe da inovação revolucionária, cabe o alerta de que, se continuar acreditando nesses discursos sebosos e nas pregações moralistas, nos sobrará outro caminho a não ser a definitiva barbárie e o inferno, que no fim representam a mesma coisa.

                                                                                  Ademar Bogo  

                                                                            Autor do livro: Moral da História  

                                                           

domingo, 4 de outubro de 2020

AS DUAS METADES


O filósofo Arthur Schopenhauer ao escrever “Sobre a doutrina da indestrutibilidade de nosso ser verdadeiro pela morte”, disse que, o presente se constitui de duas metades: “Uma objetiva e a outra subjetiva”. A primeira lida com o tempo e a segunda permanece sendo sempre a mesma porque se refere às lembranças e a memória. De outro modo, outros escritores já relacionaram o aspecto “objetivo” com as condições materiais e os subjetivos com a qualidade e os níveis de consciência.

O grande dilema que encontramos nesse constructo é saber se “as duas metades” corresponde uma à outra, no sentido material e intelectual. Ou seja, se a substância física, em termos de massa, tem algo a ver com a capacidade de entendimento do tempo presente e se a metade subjetiva conduz ou se submete às necessidades da metade objetiva?

Na medida em que vamos aprofundando esse raciocínio vamos também compreendendo que as duas metades contidas em um só indivíduo, começa a se estender cada vez mais para cada tempo presente da realidade social, na qual o elemento da metade objetiva cresce com a formação de grades contingentes de massas necessitadas e, a outra metade, a subjetiva, continua orientada pelo entendimento do senso comum, cada vez mais baixo e desqualificado.

Ao transferirmos a análise para as disputas políticas, espaço do tempo presente que visa atingir as “duas metades”, transformando-as em forças a favor e contra, vemos surgir dessa associação, a identidade cada vez mais permanente do “sujeito político” que, embora não tenha consciência de sua contribuição, apresenta-se como sendo o mais novo sujeito da História.

            Esse entendimento é de fundamental importância para os socialistas e comunistas posicionarem as suas forças nas disputas conjunturais e, principalmente nas transformações estruturais da sociedade, isto porque, se o capitalismo no aspecto produtivo transforma a matéria prima descartada em novas mercadorias, o mesmo ocorre com as massas humanas miseráveis que, existindo fisicamente como metade objetiva, passou a ser, por intermédio dos programas assistenciais o lugar da construção da outra metade, a subjetiva, cujo objetivo é formar a maioria para oficializar a vitória da ordem.

            Se subirmos mais um grau na análise das disputas entre as forças que se consideram aptas a governarem o país, veremos que, não se disputam projetos antagônicos, mas unicamente a memória e as lembranças que estão localizadas na metade subjetiva, separadas também em duas partes: mais antigas e mais recentes. Podemos, dessa forma, concluir que, no tempo presente, as forças partidárias igualam-se nos desejos formados na “política do imediato” e agem despreocupadas sem qualquer planejamento para com o futuro. Revelam assim que, sem ter ideia alguma que oriente para onde ir, não há o que planejar, no máximo que conseguem expor, é o que irão desconstruir.

            De volta às categorias das “duas metades”, o IBGE divulgou os resultados de uma pesquisa recente, na qual declara que, pelo menos 52 milhões de trabalhadores estão fora do mercado de trabalho; leia-se, “não encontram compradores para a mercadoria força de trabalho”. Em parte essa realidade foi agravada pela Pandemia, que levará a culpa pelo não crescimento econômico, mas não é verdade. O fato é que a diminuição de vagas nas empresas empregadoras vem caindo desde a década de 1990. Isso nos diz que não adianta sonhar com perspectivas melhores para depois da Pandemia, porque a rejeição de grandes contingentes de trabalhadores, na senilidade precoce do capitalismo, tornou-se estrutural.

            No entanto, se do ponto de vista econômico essa “metade objetiva” da força de trabalho é descartada, do ponto de vista político ela passa a ter um valor de disputa cada vez maior. Serão essas massas que decidirão as disputas eleitorais do futuro por meio da venda antecipada, estruturadas com o dinheiro público na forma de “Programas assistenciais”. Essa vem sendo a lógica da argumentação dos governos que saem e continuada pelos governos que entram, quer-se mesmo é disputar a memória e as lembranças, mais antigas e mais recentes.

            Essa dinâmica que visa “sequestrar a metade subjetiva” das grandes massas invalidadas para o emprego, vitimou as forças de esquerda que se posiciona sobre a memória do passado, como o passageiro que perdeu o ônibus e corre acenando para que ele o espere no próximo ponto. As forças de direita sabem que a memória do passado permanece se houver consciência, caso contrário prevalecem as lembranças mais recentes que se movem pela gratidão e, para isso, basta melhorar um pouco o preço da cooptação assistencial.

            Em síntese, os programas assistenciais tornaram-se desde a década de 1990, a energia para mover a “indústria da cooptação” da metade subjetiva das massas pobres desorganizadas e também das categorias organizadas em movimentos sociais. Essas práticas levaram a formar gratidão e não consciência.

            A bem da verdade, as forças de esquerda perderam o rumo desde que o movimento sindical deixou de ser a força representante da classe, principalmente operária, que insurgia-se contra o capital em defesa do trabalho e dos trabalhadores e o partido político, como parte consciente, tinha como objetivo e finalidade a realização da revolução. É certo então, que não sabendo como lidar com essa nova realidade “objetiva e subjetiva” e sem saber para onde devem rumar, os partidos de esquerda ficam cada vez mais mansos e identificados com a ordem capitalista dominante.

            A realidade social atual exige que, surjam novas organizações que saibam combinar a metade objetiva com a metade subjetiva e se proponham, conscientemente, a planejar para alcançarem a finalidade que é a superação do capitalismo. Até lá, os desvalidos da economia, serão os validadores da democracia e defensores do Estado e de governos capazes de comprarem antecipadamente os votos que asseguram e legitimam a sociedade desigual que se asfixia com a própria corda da barbárie.

            A metade objetiva será verdadeiramente força revolucionária quando a parte subjetiva estiver enraizada na consciência e não apenas em lembranças saudosistas.

                                                                                  Ademar Bogo