domingo, 31 de outubro de 2021

DESINVERTER O MUNDO


            Karl Marx, na “Introdução à critica do direito de Hegel”, trouxe presente, em 1843, um problema existente na Alemanha, formulado em torno da crítica à religião, considerada o “pressuposto” de toda critica. No entanto, para o filósofo, a vida não é só religião e, por isso, a sua afirmação desafiadora veio no seguinte sentido: “o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são o mundo invertido”.

            Bem entendido, não é a religião que cria “o mundo invertido”, mas a força dos proprietários que constituem a sociedade civil e o Estado. Por sua vez, a religião, sendo a crença deste mundo invertido, ela se afirma como a fantasia da consciência individual, sem a qual a vida seria insuportável.

            São as diversas fantasias falseadoras do mundo real que, além de afirmarem alguns dogmas deformadores da ciência, da filosofia e da arte, sustentam as profissões de Fé repulsivas e manipuladoras da linguagem, para que as mensagens caibam dentro do quadrado ideológico estabelecido.

            No concreto, pela evidência dialética, não podemos ter o real e não o seu contrário. Se temos a “boa religião”, com certeza teremos também a “má religião”; ou como espreitou o próprio Marx, quando presenciou o dizer de  que havia  a “Filosofia da miséria”, concluiu que haveria ter também a “Miséria da filosofia” e por isso escreveu, em 1847, um livro com este nome. Nesse sentido, por que a miséria religiosa não poderia ser vista, como sendo, ao mesmo tempo, a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real? Mas a religião fantasiada, “... é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo”.

            Reduzir a religião como “ópio do povo”, tornou-se, ao longo da História, a tese nua e crua nas fileiras da direita; um dogma de negação dificilmente confrontado, principalmente quando se tratou de disputar os interesses eleitoreiros. Isto ainda ocorre porque o pressuposto da “miséria religiosa”, imposto pelo imperialismo com a criação das seitas neopentecostais, por esperteza ou ingenuidade, foi deixado de lado ou confundido como sendo ele o sintoma e não causa da miséria social e espiritual dos diversos povos.

            Evitar a critica política da relação entre a miséria social e a miséria religiosa expandidas pelo mundo invertido do capital e propagadas pelas seitas religiosas, é permitir que os espertalhões e vendilhões de artefatos ideológicos, como, “tijolos da obra de Deus”; “toalha milagrosa”, “fronha dos sonhos”; “martelo da justiça”; feijão que cura Covid-19” etc., equivale a concordar que se reproduzam os preconceitos moralistas homofóbicos; a violência machista contra a mulher; a negação à educação sexual na infância; a resistência contra a descriminalização do aborto; a visão retrograda sobre o formato da família e tantos outros atrasos e atentados contra os direitos humanos.

            Nesse sentido, devemos saudar como positiva a “Consulta aos católicos” proposta pelo Papa Francisco, iniciada no mês de outubro e que se estenderá até o ano de 2023. Simbolicamente será a primeira vez após o Concílio de Trento (1545-1563), que a Igreja católica se propõe a discutir as reformas necessárias, para levar luz aos seus próprios porões, agora com a participação massiva de leigos e leigas, em busca de resgatar a coerência moral e a dignidade humana dos primeiros cristãos.

            O grande desafio do século XXI, como fizera Nicolau Maquiavel (1512), é politizar a política. Isso evita que os devotos do capital, “sem partido”, criem seitas religiões e transformem as massas empobrecidas educadas em força auxiliar de impulsos alucinados. Na medida em que entendemos ser o capitalismo o próprio mundo invertido, dizer que a miséria religiosa transforma a religião em “ópio do povo” é o mesmo que afirmar ser a exploração da força de trabalho, o pilar central da alienação. Portanto, dizer que a mais-valia é extraída de trabalhadores alienados e que a legitimação moral dessa exploração se dá por meio de cristãos sedados ou chapados, seria um total desapreço para a civilização. No entanto, é esta mesma a mensagem a ser dita se quisermos desinverter o mundo.

            Na medida em que “o mundo invertido” é colocado de cabeça para cima, elimina-se o risco da asfixia cultural e a consciência passa ser a referência de identificação e do ordenamento do novo estado de coisas. Essa inversão não eliminará apenas a miséria econômica, mas também a miséria política, religiosa e moral.

                                                                                                Ademar Bogo

domingo, 17 de outubro de 2021

PÃO E REVOLUÇÃO

            Karl Marx, na posterior introdução à “Critica do Direito de Hegel”, no vigor de sua juventude, deu-se conta de que havia um travamento no processo de emancipação humana. Os limites do protestantismo e a relação de dependência da sociedade civil, do Estado, contribuíam para dificultar o avanço do processo revolucionário radical.

            Por sua vez, a perspicácia de Marx foi perceber que “As revoluções precisam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só é efetivada num povo na medida em que é a efetivação de suas necessidades”. E no final do mesmo parágrafo, após algumas indagações específicas, concluiu dizendo: “Não basta que o pensamento procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento”. Temos, portanto que saber combinar a teoria com as necessidades.

            Para direcionarmos o entendimento dessa significativa observação, devemos proceder com o método filosófico de análise, separando a categoria superior, “revolução”, das categorias subordinadas, interrogando: O que é: “passiva?”, “material?”, “teoria?”, “efetivação?” “necessidades?” e “direção?”.

            Feito isto, podemos recorrer ao contexto no qual Marx estava inserido, como também procurar aplicar as mesmas categorias em uma realidade assemelhada, quando as religiões protestantes parecem assumir a hegemonia da alienação e a sociedade civil, ao invés de enveredar para a emancipação, regride e deposita no Estado toda a responsabilidade de impor a ordem coercitiva, para punir e refrear a força contrária e, com isso, as disputas se radicalizam em dois pólos favoráveis do capitalismo, como aconteceu na realidade alemã.

            Na medida em que, na atualidade, a categoria superior é despida de sua importância e distanciada das discussões, as categorias subordinadas perdem os poderes de importunar e, as palavras tendem a dizer apenas o trivial ou a considerarem o proposto como o real estabelecido possível.

            A direção, em se tratando de política é tudo. Isto porque, se as revoluções precisam de um elemento passivo, ou seja, a base material concreta,  não há como distrair as atenções para fora desse entendimento colocando na ordem lógica, realidade e teoria.

            Se temos a base material “passiva”, ela está a espera de ser agarrada, pelo sujeito ativo da revolução. Mas isto não se dá sem antes formular os pensamentos e consultar as necessidades e carências existentes nesta base. Essas necessidades, após serem teorizadas devem contribuir para que toda a realidade seja “compelida”, impulsionada ou arremessada a favor do pensamento revolucionário. Essas indicações não são impressões instituais. Marx, em 1843 vivia a ebulição das revoluções liberais da Europa e convivia com o atraso do país alemão.

            Há nessa descrição duas possibilidades de respostas para a pergunta “o que é necessidade?”. Certamente, não encontraremos nenhum indivíduo, politizado ou não, que não responda a esta indagação com o conteúdo evidente das carências sociais e, para nós, na atualidade, “pão” quer dizer tudo.

            Essa resposta substantiva, se apenas restrita ao “pão” é totalmente insuficiente e conformista. Para os cérebros mais atentos a preocupação vai muito além da necessidade. A fome nos mostra a situação de uma sociedade encurralada no degrau mais baixo da escada que mede o descenso da dignidade humana. É evidente que, a solução da mesma, embora seja uma emergência, não emancipa os famintos, assim como o direito à liberdade religiosa não emancipava os judeus na Alemanha. No entanto, o capitalismo decadente nos coloca cotidianamente a pauta das emergências articuladas entre si. Já não sabemos o que é mais grave, se a fome, a escassez da água, a queima das florestas, a perda da soberania, a violência ou a falta de trabalho, renda etc.

Para evitarmos o rebaixamento da teoria em direção à explicitação do desejo de caridade ou da assistência, como o máximo possível de ser proposto na política, devemos pensar no conjunto das emergências e necessidades individuais componentes da realidade social, mas que, em contato com a teoria devem apontar para a verdadeira emancipação.

            Chegamos ao grande limite do dilema posto acima. Se de um lado movem-se as forças interessadas em realizarem o pensamento assistencialista, atendendo as necessidades dos  famintos com o pão, de outro lado, “a realidade deve compelir a si mesma em direção ao pensamento”, fazendo com que ele se coloque a favor do movimento ascendente da transformação social.

            Em síntese isto tudo nos diz que, se entendemos as “necessidades” apenas como pão, trabalho, moradia etc., imaginamos, como minoria, galgarmos o ponto mais alto do Estado, com os pensamentos voltados para os debaixo, prometendo a eles o acesso aos direitos sociais, mas nunca a emancipação. No entanto, se consideramos que a “revolução” é a necessidade principal, devemos compelir as forças converterem a mesma em um direito. Logo, o faminto deve desejar o pão e aprender a desejar também a revolução. Assim como o desejo de quem se envolver para saciar a fome alheia deve ser convertido no desejo da superação do capitalismo.

            Não é mais possível atuar sobre a “realidade passiva”, com pensamentos de passividade. A falta de pão é a demonstração da verdadeira decadência de um sistema incapaz de alimentar os seus próprios reprodutores. A urgência do “dai o pão a quem tem fome”, não deve servir para rebaixar a teoria ao nível da passividade contemplativa da decadência.

            Os direitos devem ser vistos no conjunto. O impulso da solução de uma necessidade, deve compelir para enfrentar outras necessidades ainda maiores, principalmente porque, não temos apenas necessidades animais para suprir. Devemos dar sequência ao pensamento: “só com pão não somos nada e teremos que ser tudo”.   

                                                                                                                                                                                                                                           Ademar Bogo

domingo, 10 de outubro de 2021

JAULA DE AÇO

A união entre burgueses, proletários, camponeses e massas populares, formou, em 1789, o “Terceiro Estado” que tornou vitoriosa a Revolução Francesa. Na sequência, essas classes instalaram a Assembléia Nacional Constituinte e procederam a elaboração das novas leis. garantidoras da implantação dos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade; interesse comum da esquerda e da direita, forças defensoras do capitalismo e da organização do Estado, estruturado e representado pelos três poderes: executivo, legislativo e judiciário.

Com as leis aprovadas e colocadas acima de todos, passou a vigorar no modo de produção capitalista, o “Estado Democrático de Direito” como ordem oficial. Garantiu-se assim, aos exploradores e também aos explorados, os direitos e as expectativas de pleitearem o progresso econômico, o desenvolvimento social e a realização dos anseios individuais. No entanto, essa vitória revolucionária burguesa e proletária, se por um lado passou a representar um vinculo de dependência econômica e política entre as duas classes, por outro lado, implementou a instituição de uma “jaula de aço” como bem conceituou o alemão Max Weber, em sua obra, “A ética protestante e o espírito do capitalismo.”

Ser a favor do totalitarismo econômico capitalista e, democratas ao mesmo tempo, está na origem da formação das classes burguesa e proletária, como também no senso comum das massas populares. Essa premissa positivista, liberal e religiosa, rege as relações sociais e de produção, ordenando-as pelas normas morais e as barras do Direito Positivo, expressão jurídica da coerção no interior da jaula de aço, responsável por enquadrar qualquer cidadão tido como desordeiro. Fora dela, temos a sensação de estarmos em perigo, por isso corremos para incluir-nos e nos tornamos os principais defensores do progresso, da geração de empregos e do bom funcionamento do Estado.

Inseridos no sistema de exploração e na ordem coercitiva, nos comportamos como os animais na jaula: comemos em um dos lados, dormimos em outro e defecamos em algum canto. Durante o dia vagamos ligando esses pontos geográficos e nos enraivamos se alguém ameaça fazer alguma interferência nesta ordem estabelecida, seja com um golpe ou alguma intervenção desastrosa, pois, já não sabemos viver sem ela e nem mesmo imaginarmos outras formas de convivência. Tal qual aos animais que não sabem distinguir o tratador do responsável por enjaular-los, tememos as forças de segurança, mas nos desesperamos se não as vemos nas esquinas; rejeitamos os patrões, mas corremos para agradá-los quando nos ameaçam com demissões; criticamos os governantes e as leis injustas, mas continuamos afirmando a democracia representativa, dando à imensa minoria as condições para negar os direitos e os benefícios da maioria.

 Queremos a emancipação humana, mas a retardamos, porque, para uma parte dos trabalhadores, a venda da força de trabalho, está tão ruim que mal dá para fazer exigências e, para a outra parte mais pauperizada, já não se apresenta oferta alguma. E, mesmo cabisbaixos, nos animamos com as promessas eleitoreiras daqueles que se propõem a lubrificar as dobradiças da porta dessa jaula imunda e decadente, para que ela ranja menos toda vez que se fechar. Dirigem-nos para a santidade do capital, para que nos prostremos diante dele, com as mãos postas segurando a oferenda do voto. Queremos que os vencedores da democracia representativa nos atendam com uma graça, de um auxílio, uma bolsa, ou mesmo um osso descarnado, pois, entendemos, a carne deve ser enviada ao deus suprem do mercado exterior.

Sabemos que a origem da submissão está na aliança genuína que formou o “Terceiro Estado”, efetivada na França para o triunfo da Revolução de 1789. No entanto, aquela união comandada pelos capitalistas, produtores, industriais e comerciantes, tendo como força auxiliar o proletariado, com a expansão do capital especulativo e destrutivo, já ruiu. Esse capital volátil associado ao banditismo político, habitante dos lugares mais remotos como as Ilhas Virgens Britânicas, infiltrou-se no Estado e age para “liquidificar” as riquezas das nações. Essas forças parasitárias, ao invés da ordem democrática, espalham o terror, a insegurança e o medo; e põem a reboque, com exceção do agronegócio destrutivo, os setores burgueses da produção que buscam desesperadamente voltar ao lugar perdidono controle da política.

Portanto, se no passado esses setores burgueses produtivos, foram capazes de unificar as diversas forças no “Terceiro Estado”, na atualidade estão em desvantagem, não apenas pelos erros políticos cometidos, mas também, pela perda de poder para as formas especulativas e parasitárias do capital. Assim se explica o porquê das frequentes instabilidades da ordem e o desejo imediato de reconstruírem a velha aliança, propondo uma “terceira via”. Se aceitarmos essa manobra, reconheceremos no grau mais baixo que os propósitos da histórica burguesia continuam válidos e, por mais que nos esforcemos apenas reviveremos a tragédia, mil vezes repetida, quando diante do perigo, o escravo morre para salvar o seu senhor. As burguesias sobreviventes da exploração da força de trabalho, em grau maior ou menor, de acordo com o lugar no mundo em que se encontram, vêm perdendo o controle da política e do controle sobre o Estado. Por mais estranho que pareça, na conjuntura transitória, “somos os seus coveiros” e não os seus salvadores.

Não restam dúvidas de que guardamos no fundo da consciência proletária uma contradição conflituosa, entre darmos vazão às energias revolucionárias e acatarmos os desejos da submissão. Freud no âmbito corporal e sexual denominou esse movimento de “pulsão de vida” e “pulsão de morte”. Nesse sentido, não é exagero nenhum reconhecer que o capital especulativo e parasitário, jungido ao banditismo político, improdutivos, violentos e destrutivos, tornaram-se os transtornos físicos, psíquicos, econômicos,políticos, morais, ambientais etc., da civilização. Por mais que se pense governar e controlar a ordem na jaula envelhecida, dentro dela circula essa energia incontrolável e instintual da volatilização do capital. Para controlá-la é preciso antes de tudo aprisionar e dominar os seus agentes destruindo todas as suas mediações que pulsam para a morte.

  Nesse sentido, por mais que tentemos retardar o enfrentamento com as forças destrutivas da civilização ele será inevitável. Como sujeitos de um processo libertário, trabalhadores e massas populares em geral, devemos, ao invés de liderarmos a conciliação deveríamos nos propor a jogar para os ares a jaula e sua ordem, ou pelo menos, como primeiro passo, empurrar para fora dela os especuladores, rentistas, devotos dos paraísos fiscais; os incendiários das florestas e os assaltantes das riquezas públicas. Para isso precisamos fugir da tentação de fazer acreditar que a “jaula de aço” um pouco mais limpa e arejada, mesmo com uma parte da população com as pernas fora das grades é tudo o que se pode propor. Se assim pensamos, eternizamos a palavras de Karl Marx quando nos alertou que os defensores do parlamento e acrescentamos, da democracia representativa, fazem tudo para “Iludir os outros e iludir-se ao iludi-los”.

Enquanto as atenções estiverem voltadas para o conserto do sistema, não haverá emancipação. As soluções para impulsionar as transformações sociais, embora partam de dentro, estão fora dessa ordem carcomida. Olhar para fora é arriscar perder todas as crenças, no capital, no Estado e na política profissionalizada e, como ateus, instituir as bases das novas crenças, com princípios inversos ao que até aqui fizeram a jaula de aço funcionar.

Marx e Engels nos deram a indicação e, como velhos conselheiros deveríamos ouvi-los. Sentenciaram na época de 1848, em meio às turbulências das revoluções liberais na Europa, que “os comunistas não dissimulam as suas opiniões e seus objetivos”, o que nos parece suficiente para sermos sinceros uns com os outros, isto porque, segundo eles, é preciso fazer com que a classe dominante se sinta ameaçada pela “destruição violenta de toda a ordem social”, e não contemplada pela nossa plataforma política. Principalmente porque, “a classe operária nada perderá com ela, a não ser a sua prisão.” Que essa prisão seja reservada aos genocidas e aos devotos da especulação.

                                                                                   Ademar Bogo