domingo, 25 de agosto de 2019

FOGO E FUMAÇA

                                                    
              Por que Nero incendiou Roma no dia 18 de julho de 64 e culpou os cristãos pela devastação que durou 6 dias, queimando mais da metade da cidade? Certamente porque a Amazônia não fazia parte do patrimônio do Império Romano, se fizesse, talvez tivesse preferido incendiar a floresta e preservar as casas.
            A História atribui vários motivos para que o imperador fizesse aquela ação, mas nenhuma delas era tão importante quanto a crise econômica que vivia o Império e, para tanto, precisava de um fato e de alguém e alguém para acusar. Na época, os cristãos eram tidos como indivíduos “perigosos” por isso, o imperador precisava de um motivo para persegui-los. Não deu outra, em meio às labaredas do incêndio criminoso, a perseguição caiu sobre os cristãos como uma nuvem de fumaça levando-os à prisão e a matança humana indiscriminada.
            As práticas de criar propositalmente grandes tragédias e comoções são muito antigas e elas sempre começaram pela falta de compostura dos governantes. As duas características principais do governo de Nero eram: a tirania e a extravagância. A paixão pela violência e a humilhação de seus adversários representavam as motivações cotidianas, para aquele comportamento conhecido, do “bateu, levou”.
            O discurso agressivo, carregado de acusações e mentiras garantiam a Nero um significativo apoio da população, mas não era tudo, as contradições políticas o obrigaram a ter de matar a própria mãe, Agripina e estabelecer a intolerância contra todos aqueles que dele discordassem, principalmente os cristãos. Estudiosos argumentam que o número 666 nada mais foi que um código de identificação de Nero que passou a ser visto como o anticristo. Na atualidade este número, representa uma portaria que visa a deportação de estrangeiros malquistos em nosso país.
            O fogo, por sua vez, na História da humanidade é portador de um engenhoso simbolismo. Em todas as culturas ele é tido como o elemento da “purificação” e da eliminação física pelo ritual da cremação. No entanto é um elemento contraditório e, quando denominada a sua especificidade aplicada, torna-se perigoso e ameaçador como é o caso da arma de fogo.
            Não vem ao caso relacionar aqui as características que verificam as utilidades do fogo, mas, por ser um elemento controverso observemos o emprego de sua perversidade, principalmente no que diz respeito à queima que sempre é omitida na propaganda do agro, isto porque, de uns tempos para cá o “agro é tudo” inclusive queima das florestas.
            A primeira relação de desmando do governo em relação à violência favorecendo o agro, contra a vida e a natureza, refere-se à flexibilização no Código Florestal que anistia e  autoriza o desmatamento. Em seguida, o decreto de 15 de Janeiro, com qual o presidente da República autorizou a posse de até 5 armas de fogo por pessoa. Depois, as permanentes liberações dos agrotóxicos em quantidade incontrolável que já passam de 300 tipos, muitos deles proibidos na Europa e nos Estados Unidos e, por fim a decisão de não demarcar nesse governo áreas indígenas e quilombolas. 
            Essas medidas acompanhadas de um discurso vingativo e odioso, contra índios, negros, sem-terra e comunistas, fortaleceram as convicções da impunidade e levaram às práticas ilegais e criminosas de ataque as florestas que, ocorridas em meio as crises econômica, política, moral, e institucional, cujas autoridades governamentais atuam contra a saúde, a educação e os direitos sociais, somente uma tragédia como a queima da floresta poderia desviar as atenções e iniciar uma caçada aos animais, às ONGs e demais  inocentes.
            As semelhanças entre tragédia romana e a queima da floresta Amazônica estão na loucura da política se medida e na paixão pela violência. O desequilíbrio mental de Nero, agravado pelo assombro de ver inimigos por toda a parte e, por outro lado, o instinto destrutivo que acompanhava a sua personalidade, ainda permanece em vigor. No entanto, a explicação premeditada de culpar os “cristãos” pelas tragédias provocadas, já não funciona, porque, se as maldades de antes eram tramadas às escondidas, agora elas foram escancaradas e anunciadas. Sem muito esforço, pode-se levantar o nome e o endereço dos condutores e realizadores dessa catástrofe.
            Por outro lado, se Nero protegia-se atrás da ignorância dos romanos, agora, a consciência do mundo reage e exige compostura. Se a justiça, nada fará para punir os aliados do “rei” a humanidade terá de fazê-lo boicotando o consumo dos produtos extraídos dos gemidos de morte emitidos pelas florestas queimadas junto com toda a biodiversidade. Se a Amazônia representa os “pulmões do mundo”, hoje o mundo lacrimeja e tosse pelo excesso de fumaça provocada pelo incêndio das mais variadas formas de vida.
            Já vai longe o tempo e quem os homens temiam os espíritos das florestas. Hoje eles sabe que elas não se defendem sozinhas, por isso como dragões enfurecidos, lançam chamas incendiárias em nome do progresso.
            As florestas, no entanto, esperam uma atitude humana. E ela não pode tardar, caso contrário, não saberemos o que virá depois do homem.  Porque, como disse Nietzsche, “o que acontece á árvore, acontece ao homem”.
                                                                       Ademar Bogo

domingo, 18 de agosto de 2019

LIMITAÇÕES DAS ILUSÕES EMANCIPATÓRIAS


            Karl Marx quando tratou da emancipação política e humana, quis mostrar que há uma significativa distância entre as duas e, para além do mais, alertou que se cair na ilusão de, tendo a primeira, imaginar-se vivendo na segunda, no entanto, a distância entre as duas é mesma que separa o particular do universal.
Isto quer dizer que, se temos a emancipação política, temos certas liberdades alcançadas, mas elas não correspondem à autonomia de fato, porque quem nos delega os direitos também nos controla. Os direitos reconhecidos, sempre são medidas que atendem alguns requisitos, mas que podem ser revogados a qualquer momento. Já a emancipação humana encarna-se na própria natureza do indivíduo colocando acima das mediações que na emancipação política o submetem.
Podemos considerar a emancipação política como um “relativo progresso”. Isso quer dizer que, se compararmos o servo do tempo do feudalismo com o operário no capitalismo, este último conseguiu alguns direitos que os trabalhadores nunca haviam tido na história da humanidade. Mas isso é tudo o que queremos ter?
A liberdade de cada um vender a própria força de trabalho foi uma grande inovação que trouxe o capitalismo, isto porque, os trabalhadores passaram a vender aquilo que antes lhes era tirado a força e pouco ou quase nada era lhes dado em troca.
Junto com a liberdade de escolher o trabalho e poder vender a força física, vieram alguns outros direitos, como o de votar, tirar férias e se aposentar. Mas, de duas coisas os burgueses não abriram mão: o direito à propriedade dos meios de produção e ao controle do poder do Estado. Com o direito à propriedade os patrões controlam a produção feita por diversos trabalhadores e, com o poder do Estado eles garantem que aquilo que fazem é justo, por isso, mesmo que seja por meio da coação, todos aceitam.
É nesse sentido que a emancipação política ao invés de representar um grande avanço, reduz o indivíduo a membro da sociedade burguesa e, mais ainda, a indivíduo egoísta, que se obriga a cuidar de si, ao mesmo tempo em que fica cada vez mais dominado pelas leis e instituições.
Mas ocorre na explicação de Marx algo ainda mais interessante quando ele compara o singular e o universal. Mostra que essas categorias se assemelham às categorias de homem individual e de cidadão abstrato. Isso nos diz que se hoje nos denominamos de cidadãos e não somos ou somos apenas de forma abstrata, para sermos cidadãos de verdade precisaríamos eliminar as mediações que nos impõe o controle, seja no emprego, na política, já justiça ou na convivência social. Teríamos que ser indivíduos e sociedade, como é a particularidade que compõe a totalidade sem ter ninguém intermediando. Dessa forma chegaremos ao ponto de considerar um erro acreditar que o Estado e a propriedade privada sejam as forças que universalizam a emancipação humana. Ao contrário é com a permanência delas que jamais seremos emancipados verdadeiramente.
            Esse raciocínio é para explicar que a singularidade e a universalidade funcionam a nível mundial, quando o “indivíduo” é um Estado nacional e o universal é o capitalismo como modo de produção. Se convertermos os dois elementos fundamentais dessa ordem, teremos, no aspecto político, a dominação imperialista e no aspecto econômico, os capitais: produtivo, especulativo com todas as formas parasitárias de acumulação.
            Ao raciocinarmos sobre a relação entre o singular e o universal, percebemos que lidamos com os limites da emancipação, tanto no sentido singular quanto no sentido universal, ou seja, enquanto indivíduos fomos sempre dominados por instituições e empresas e, enquanto nação sempre fomos submetidos às imposições colonialistas e imperialistas.
            Em momentos de crise, econômica e política, principalmente, percebemos como os direitos que, aparentemente garantiam a emancipação política, são retirados em uma rodada de votação e a soberania nacional, tão exaltada pela História desde 1822, é destituída sem qualquer cerimônia; o país, como um vagão de um trem é atrelado atrás de outros que são puxados e direcionados pela mesma locomotiva.
            A ilusões caem por terra, quando os indivíduos reais sentem as consequências reais. Assim aprendem que a valorização das mediações que servem para que a classe dominante domine os explorados, devem ser substituídas quando se tem força política e não fortalecidas. Se por muito tempo conseguimos os direitos políticos e sociais e acreditamos que eram suficientes, nos esquecemos de que estes direitos não eram definitivos e a qualquer momento os controladores da ordem poderiam querer apagá-los do livro das leis.
            Sendo assim, é bom que, de tempos em tempos existam governos ruins, eles servem para alertar-nos que, as ruindades burgueses são garantidas pelas mesmas estruturas que quase sempre admiramos e queremos vê-las funcionando exemplarmente. Para mudar as condições emancipatórias precisamos mudar o estado de coisas, caso contrário, o próximo período apenas servirá para repor o que já tínhamos e perdemos.

                                                                                              Ademar Bogo
                                                            

domingo, 11 de agosto de 2019

MEMÓRIAS SOMBRIAS


              
            O filósofo Nietzsche ao trata da “genealogia da moral” fez um recorrido histórico em busca de compreender a crueldade justificada, ou seja, sempre houve uma explicação para o mal praticado e oficialmente justificado nas consciências dos povos, geralmente coagidos e intimidados. “A letra com sangue” sempre foi a expressão da velha pedagogia e, por desgraça, a que mais durou na História desde o início até aqui.
            A crueldade histórica, para se tornar memória, acontece acobertada por “cores sombrias”. É por meio das representações expressas por tais cores que ficam os vestígios de espanto de algo que será cobrado. Diz o filósofo que, noutros tempos, quando, um homem que fosse, julgava necessário criar uma memória utilizava-se dos suplícios, martírios e sacrifícios cruentos, que passavam pelo holocausto do primogênito, mutilações, como a castração e outros rituais cruéis. Tudo isso era para fixar as ideias na memória a fim de hipnotizar o sistema nervoso e intelectual, suprimindo a concorrência de outras ideias.
            O mais intrigante na “Genealogia da moral” de Nietzsche, não é, por assim dizer, o conteúdo das justificativas, mas a pergunta que ele se coloca, incluindo a crueldade alemã: “Mas como foi que “esta coisa”, esta consciência da falta, todo este aparato da “má consciência” pôde vir ao mundo?”.  Diante de tudo o que vemos, é o que também nós nos perguntamos.
            Suspeitamos que agora, os caminhos se desencontram e, aquilo que Nietzsche atribuiu à moral, em nosso tempo, embora ela seja a expressão da forma do discurso, pesam mais, para o fortalecimento da “má consciência” os fundamentos do capital. Nesse sentido, a moral não é a causa principal do surgimento das “cores sombrias” que assustam quando ameaçam cobrar uma dívida inventada.  A causa do surgimento dessas cores está na crise estrutural do capitalismo que, sem beber o sangue dos mais pobres, ameaça exaurir-se. Logo, a moral do mal, como combatente de vanguarda, entra em cena para gerar sombras e responsabilizar os mais velhos pela ameaça dos desejos dos mais ricos.
            Ironicamente, os criadores das memórias sombrias, como as aves de rapina buscam convencer os cordeiros, que não são más e que também não querem o mal dos mesmos, ao contrário, acham-nos muito saborosos. E, a cada vôo rasante, arrancam pedaços dos direitos, mutilando o corpo da seguridade social. O fazem tão astutamente que, após terem o mal causado, oferecem conselhos para que cada um cuide de si, sacrificando-se mensalmente para levar ao Banco uma quantidade de dinheiro para constituir uma previdência privada que retirará, se viver, em prestações reguladas no futuro. Ou seja, não é a consciência da moral individual que está desajustada e que por isso o “egoísmo do idoso” venha a fazer faltar dinheiro para pagar as aposentadorias do futuro. São os desajustes do capitalismo que quer individualizar as responsabilidades, para atrair o contribuinte para a armadilha aonde não haja saída para que as aves do mal possam mutilar os cordeiros desde a infância até a velhice que ameaça os interesses dos capitalistas.
            O discurso moral escrito com “letras de sangue” assombra as multidões, da mesma forma quando ocorreu a decadência de Atenas e a praça onde se reuniam para tomar as decisões coletivas já não servia para nada, pois, os cidadãos ateniense não tinham a quem recorrer. O assombro dos gregos é mesmo assombro que estamos experimentando na atualidade, o de termos que nos virar por conta própria se quisermos viver na velhice. E, se lá as ideias coletivistas incomodavam, atualmente são as ideias socialistas que ameaçam pôr abaixo os sonhos burgueses, por isso os discursos violentos contra as mesmas, ao Foro de São Paulo e aos partidos de ideais socialistas.
            A crueldade das medidas que mutilam os direitos são amenizadas com palavras como, “transição” e “capitalização”. A primeira visa anular as reações dos mais velhos e, a segunda, convencer os mais jovens que eles têm a solução de capitalizarem-se para o futuro e, certamente, quem estiver “capitalizado” estará com o futuro garantido.
            De quando em quando voltam a lembrar das velhas memórias sombrias e, por meio delas criam outras que induzem a não reagir. A sombra da verdade tornou-se a verdade real que se sustenta pela circulação da mentira. O mal foi invertido e aparece como bem. Isto tudo leva a fortalecer a “amarga prudência”, de que os fracos são fracos e que não podem fazer nada, apenas esperar a redenção.    
            É importante perceber que toda a moral obscurantista que se molda a cada medida, vai criando, por meio do ódio e da vingança, os desamparados do futuro. Como criados e rejeitados os filhos bastardos no passado, teremos agora, os direitos, pela força das leis “desassegurados”. No entanto, nunca é demais lembrar a indicação de que, “só o povo salva o povo” e, em qualquer idade, sempre há esperança de fazer as memórias sombrias se recolherem para o fundo do inconsciente.
                                                                                                          Ademar Bogo