domingo, 26 de novembro de 2023

QUEM NÃO FAZ LEVA

   

          A filosofia popular futebolística de que “quem não faz leva” é bem comum e possível de ser aplicada em outras relações. Dialeticamente falando, isso tem coerência lógica, porque, pela lei da unidade e luta dos contrários, se um dos lados recua o outro avança.

            O filósofo Karl Marx ao escrever a “Crítica da filosofia do direito de Hegel”, deu início ao seu longo processo de avaliação do papel do Estado e de como se deveria lutar para superá-lo. Diz ele no livro: “Do raciocínio de Hegel segue-se apenas que o Estado, em que o “modo e formação da autoconsciência” e a “constituição” se contradizem, não é um verdadeiro Estado”.[1] Ou seja, em qualquer época, para ser um verdadeiro Estado não pode haver contradição entre a consciência e as leis.

            Esse amofinamento das forças de esquerda que angustiam até mesmo as consciências menos evoluídas em defesa da lei e do Estado, parece estar se tornando um caso doentio de paixão pela ordem capitalista, buscando cumprir as recomendações desse “espírito absoluto”, somente para garantir o que chamam de “democracia”, mas não passa do simples direito de disputar eleições.

            Essa atrofia mental impedidora da capacidade de ser formulado um pensamento crítico ou de se estabelecer um processo de lutas contra ao que está posto, simplesmente porque “pode fortalecer as forças de direita”, é simplesmente indução para tornar-se cumplice do jogo conformista de aceitar as derrotas porque o azar tomou conta das disputas.

            Houve um tempo em que se podia diferenciar dois tipos de consciência presentes nas forças de esquerda. A consciência um, representada pela combatividade exposta nas lutas concretas, nas quais se misturavam os sujeitos revolucionários e as entidades de classe e, de outro lado, a consciência dois, menos combativa, mais legalista e formuladora de ideais democráticos, palatáveis para as forças de direita, descontentes com as táticas escolhidas por eles mesmos para jogarem o jogo da dominação. Como lá também acontece o mesmo fenômeno de que “quem não faz leva”, parte daquelas forças acharam graça nos malabarismos efetuados pela consciência dois e se aliaram a esses representantes.

            De algum modo devemos reconhecer que há circunstâncias históricas que mudam as próprias circunstâncias e, para não sairmos da metáfora do jogo, imaginemos que um certo dia surge um comunicado aos times concorrentes, que algumas regras mudaram e quem quiser competir deverá adequar-se a elas. O dilema é real, mas, para não ficarem de fora, os times descontentes, além de participarem precisam defender o regulamento.

            O processo que levou ao estrangulamento político vivido na atualidade, cuja preocupação de manter o “Estado democrático de direito”, é mais da esquerda do que das forças de direita, iniciou junto com a ascensão das lutas sociais na década de 1980. Para derrotar a ditadura militar, exigiu-se a democratização com a elaboração de uma nova Constituição. Muitos entenderam ali que o processo eleitoral deveria ser o caminho da democracia, tanto assim que, para elaborar a Carta Magna foram eleitos os deputados e deputadas para o Congresso Nacional Constituinte. Logo em seguida, a obsessão pela governabilidade, como caminho mais fácil, rápido e menos violento, provocou a unidade das forças para enfrentar as eleições presidenciais, quase vitoriosas no pleito de 1989.

            A militância mais experiente recorda-se que as campanhas eleitorais adotavam os mesmos métodos dos protestos, cuja base fundamental era tomar as ruas e pichar os muros com dizeres propagandísticos e ofensivos aos inimigos. Estabilizada a “democracia representativa”, começaram as restrições e estas levaram às mudanças de hábitos. O oficio das pichações foi juridicamente proibido e o que antes era feito clandestinamente com os próprios veículos dos militantes, muitas vezes presos, passou a ser colagem de cartazes e os conhecidos e caríssimos “outdoors” com grandes imagens, porém, o trabalho passou a ser feito por empresas especializadas em conformidade com a lei. As próprias campanhas eleitorais de rua passaram a ser feitas com pessoas contratadas como diaristas e os programas da propaganda eleitoral gratuita, quem assumiu à frente foram os marketeiros da mídia.

            O que sobrou para as centrais sindicais e movimentos populares foi a manutenção de suas responsabilidades reivindicativas, porém, exprimidos pelo calendário eleitoral, quando, nos pleitos específicos, o ano administrativo é encerrado nos primeiros seis meses e depois tudo torna-se campanha eleitoral. Como ganhou a tendência de ter representantes parlamentares por setores, os laços com a institucionalidade tornaram-se cada vez mais estreitos.

            Esse processo de enfraquecimento das pernas das lutas, fortaleceu cada vez mais o pescoço das disputas eleitorais, que permite a alguns setores de esquerda andarem de cabeça erguida, mas com o olhar voltado para as restrições jurídicas e, essas mesmas forças que deveriam lutar contra a ordem, passaram a gostar e a gastar tempo para defendê-la.

            De volta à filosofia do “quem não faz leva”, para chamar a atenção de que, aparentemente as forças ultradireitistas foram derrotadas, mas estão em campo e, num contra-ataque poderão desempatar o jogo eleitoral, como ocorreu na Argentina recentemente. Como a luta de classes foi convertida em torcida eleitoral, a derrota, neste campo, fará todos ficarem de cabeça baixa e sem forças nas pernas para dar um passo à frente.

            Já é hora de retomar a formação da consciência um, e separar as forças de lutas de esquerda dos governos de esquerda, dominados pela consciência dois. É possível haver apoio mútuo, mas a autonomia de cada lado é fundamental. A luta de classes poderá ir até o fim no dia em que os governos reformistas e legalistas não se colocarem como meio.

                                                                                Ademar Bogo

 



[1] MARX, Karl. Crítica a filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 46.

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