domingo, 8 de dezembro de 2024

CONDIÇÃO E POSIÇÃO

 

    Com o esgotamento da ofensiva institucional de esquerda, no intuito de barrar a permanente revolução liberal capitalista em movimento ascendente desde 1848, nos deparamos com discussões que não transcendem mais o cenário eleitoral. Em detrimento da destrutividade do planeta, nessa fase, a mais violenta da história do capitalismo, as preocupações partidárias estão fixadas no crescimento da econômica e na posição política dos pobres, em franca revelação de que a oposição continua sendo a referência de resistência e de autodefesa contra o sistema.

            Quando se põe em discussão como questão central o conceito de “pobre de direita”, em grande medida está-se querendo manter viva a agenda eleitoral, num período que deveria ser dedicado ao debate e a contestação dos problemas estruturais. É da própria natureza da análise dialética termos de considerar a lei da unidade e luta dos contrários e, um aspecto da totalidade pode ter maior ou menor atenção, dependendo da importância que damos a ele. Por exemplo se divisarmos que as eleições de 2026 são mais importantes do que o assalto atual às riquezas naturais seja do petróleo, dos minérios e do avanço do agronegócio sobre as terras do serrado e da Amazônia, discutiremos os desafios políticos para impedir que os pobres nos abandonem. Se as preocupações são com a melhoria da renda sem distribuição da riqueza concentrada nas grandes fortunas, ficaremos discutindo o aumento real do salário-mínimo, o teto para o imposto de renda para a classe média e o controle das finanças públicas para cumprir as metas estabelecidas pelo arcabouço fiscal, sem tocar num fio de cabelo da exploração vigente.

            Há de chegar o dia de alguém ter a coragem de dizer que, para essas pautas não precisa ter uma esquerda organizada e se ela insistir em discutir esses aspectos administrativos do capitalismo deixará de existir e virá direita. Na verdade, o que temos construído nos últimos 40 anos, foi uma polarização, não entre direita esquerda, mas uma conformação civilizada da política entre situação e oposição. Isto fica claro quando se debate a tese dos “pobres de direita”, mas nada se diz dos “ricos ou da classe média esquerda”. Por que será? Porque não se trata da disputa de ideias contra ou a favor do capital, mas, de maior ou menor competência para garantir os avanços do capitalismo, com um pouco mais ou um pouco menos de justiça social.

            Já reprisamos em excesso esse entendimento de Marx e Engels, escrito no livro A ideologia alemã; o importante agora é saber que o pensamento pode ser antigo, mas a aplicação é moderna. “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante”.[1] Para compreender esse pensamento é preciso ler as suas consequências que, não é pelo simples fato de as forças de esquerda terem se tornado situação no regime político, que as suas ideias passarão a dominar materialmente o sistema dominante. Isto está claro na continuação do parágrafo que diz: “(...)a classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios de produção espiritual de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual.”

            Diante do emaranhado de questões que poderiam ser formuladas, as que mais preocupam, com certeza, não seriam as que deveriam revelar se os pobres são de direita ou de esquerda, porque, de fato eles não sabem do que se trata essa classificação e, pela tradição idiomática a simbologia da direita é imensamente mais simpática. O canhoto, na antiguidade era repelido por atrair maus agouros; os Salmos nos indicam que devemos olhar para a direita; o Concílio de Nicéia do ano 325, ao escrever o Credo, delineou que o filho subiu ao céu e está “sentado à direita do pai”. “Andar direito”; “Entrar com o pé direito”, são mais do que superstições, representam práticas que coordenam os comportamentos. A única coisa que na tradição tem algum valor por estar do lado esquerdo é o coração, mas, a racionalidade moderna o desancou da centralidade corporal, pela sua fragilidade sentimental; instabilidade amorosa; vulnerabilidade e demonstração de fraqueza nos momentos de tomar decisões mais rígidas.

            Distinguir “condição” de “posição” ajudaria bastante na interpretação de certos comportamentos. Primeiramente, devemos considerar que o pobre não é de direita nem de esquerda ele é simplesmente pobre, material e espiritualmente. A sua consciência sensível, não lhe permite compreender a estrutura das classes sociais, nem as causas da sua situação. Ele sabe o que é a fome, mas nada entende das leis tendenciais do capital que promove a acumulação da riqueza; sabe o que é ser pai ou filho, mas não consegue explicar os fundamentos da família e a sua função perante o Estado; sabe o que é um bem, mas não o distingue da propriedade privada; manuseia o dinheiro e nada entende do sistema financeiro, do movimento do capital especulativo etc. Aí entram os modismos da espontaneidade da autoridade do “lugar de fala”, como se isso por si só fosse um poder constituído. A realidade nos mostra que, não é por ser pobre  que alguém consegue explicar a riqueza; nem por sofrer discriminações que explica o racismo estrutural; ou receber um benefício de uma política pública e pôr-se a favor da esquerda ou da direita.

            Se a condição do “pobre” estruturalmente continua sendo a mesma nos governos de situação ou de oposição, significa que a sua posição política pode mudar, por duas razões pelo menos: considerando as ideias dominantes, ele pode ser convencido que, para aquele momento, tal candidato seja melhor ou pela opção emocional antissistêmica, por ser verdadeiramente vítima constante dos poderes constituídos. Vejamos apenas algumas indicações. Quando um governante vai à televisão e diz que irá “combater a violência”, está dizendo que equipará a polícia para atacar indiscriminadamente os habitantes pobres e pretos das regiões indicadas. Da mesma forma acontece com as promessas sobre o melhoramento do atendimento à saúde, mas as filas de espera não diminuem; no melhoramento do transporte, os ônibus continuam os mesmos; na educação, os colégios somente mudam a pintura dos muros. O que pensa uma pessoa mal atendida, revistada pela polícia ou que teve um parente assassinado por ela? Continuará votando naquele governante? Logo, há momentos nos quais, o prefeito, o governador ou o presidente é eleito e reeleito e retorna posteriormente; outras vezes é desprezado para sempre.

            Já faz muito tempo que estes conceitos de esquerda e direita foram retirados do horizonte político, pelo próprio modus operandi das disputas, basta observar os palanques, como mudam de um pleito para outro. Para a consciência sensível a verdade estampa-se no dizer de serem todos “farinha do mesmo saco”. O exemplo mais ilustrativo é o presidente e o vice do governo federal atual, já foram ferrenhos opositores. Ou seja, se a condição não muda o pobre, o pobre muda de posição. Então propagar aos quatro ventos que o resultado das eleições deve ser respeitado e a democracia representativa o ideal a ser mantido, mas, assustar-se com a possibilidade da volta da extrema-direita ao governo, é como desconhecer que em 31 dezembro o ano atual acaba e, no ano seguinte ele aparecerá com um novo número.   

            Por fim, exigir que o pobre não tenha em certos pleitos posição de direita, sem ter nenhuma organização de esquerda para elevar o nível da consciência sensível para a consciência política, é uma hipocrisia. Por outro lado, querer ser de esquerda e ao mesmo tempo ser situação a favor do sistema capitalista, são duas hipocrisias. Os “pobres de direita” em debate, viveram e vivem sob o poder totalitário do crime organizado ou das polícias dos governos também desses que se dizem “esquerda”. Desse modo, o que mudaria para esses imensos contingentes populacionais tendo um governo “centro-direita” ou de extrema-direita? A resposta pode ser, de que, alguns direitos serão respeitados por algum tempo. Mas precisa ser de “esquerda” para fazer somente isto?

                                                         Ademar Bogo



[1] MARX/ENGELS. A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo, 2009, p. 47.

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