domingo, 22 de dezembro de 2024

ENTRE A MORTE E O PÂNTANO

 

O título metafórico inspira-se na descrição de Nietzsche sobre o “homem pouco”, referindo-se ao filósofo Diógenes que saía durante o dia com uma lanterna procurando por um homem justo. Nessa adaptação ele procurava Deus. “Procuro Deus! Procuro Deus!”; despertando grandes gargalhadas misturadas com gritos irônicos: “Então ele está perdido?”; “Está se escondendo?”; “Ele tem medo de nós?”; “Embarcou em um navio?”; “Emigrou?”. Detendo-se diante dos curiosos, o louco perguntou: “Para onde foi Deus?” e, em seguida respondeu: “Nós o matamos!”. Depois, com menor veemência, para que todos se calassem, continuou a explicação: “Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? — também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos?”[1]

            É evidente que o parágrafo anterior se refere ao comportamento dos cristãos civilizados. Os atos revestidos de perversidades, sem o mínimo de compaixão e solidariedade entre os indivíduos, levaram a tais desfechos. Parece estranho invocar a ajuda de um morto para encontrar saídas em meio à decadência ética. No entanto, se quisermos sair da filosofia e rumarmos para a política, encontraremos os mesmos significados para as mesmas atitudes confusas.

            Lenin ao analisar o dogmatismo defendido por seus colegas de partido, após explicitar que estavam caminhando debaixo de fogo em uma estrada escarpada, rodeados de inimigos, tentando arrastá-los para o pântano, expressou: “Alguns dos nossos gritam: vamos para o pântano! E quando lhes mostramos a vergonha de tal ato, replicam: como vocês são atrasados! Não se envergonham de nos negar a liberdade de convidá-los a seguir um caminho melhor!”.[2] Na sequência, tal qual fez o “homem louco”, Lenin sentenciou a conclusão: “Sim, senhores, são livres não somente para convidar, mas de ir para onde bem lhes aprouver, até para o pântano e, na medida de nossas forças estamos prontos a ajudá-los a transportar para lá os seus lares”.

            As referências acima não se atém propriamente às religiões com todas as suas crenças pervertidas, nem tampouco aos lugares poluídos para onde escorre o esgoto do desenvolvimento civilizatório, mas, da política como expressão das forças capazes de  direcionarem a sociedade para os caminhos da superação dos seus próprios limites.

            Desde que a Igreja católica no ano de 325, no Concilio de Nicéia, quando se enfrentaram as duas tendências: os alexandrinos e os arianos, tendo como desfecho a excomunhão do padre Ário e, as suas divergências, uma a uma serviram para a elaboração da profissão de fé, exposta na “Oração do credo”, os seguidores dessa religião, em detrimento dos comportamentos éticos, reafirmam aquele compromisso dogmático em todas as celebrações. Da mesma na forma ocorre na política, a partir do momento em que se pôs em discussão o “Arcabouço fiscal”, passou ele a ser, em todas as discussões, em detrimento dos problemas sociais, a referência dos compromissos governamentais. Em síntese, se pelos comportamentos antiéticos sociais e religiosos identificamos a “morte de Deus”, pelas atitudes das forças da situação, favoráveis ao governo, assistimos a cada dia a “morte da política”.

            Pelas últimas decisões do Congresso Nacional, o comprometimento, do que ainda se chama de forças de esquerda, diante do ataque do capital especulativo, ninguém mais pode duvidar de que a economia subsumiu a política. A ilusão de que o poder institucional levaria à superação dos problemas sociais, se desvaneceu; isto porque, na medida que todas as atenções para conter os gastos públicos se fixam sobre o salário mínimo e o Benefício de Prestação Continuada, enquanto os altos salários, as grandes fortunas, os subsídios para o grande capital, o compromisso intocável com o pagamento da dívida pública  etc., são preservados, sem que  nenhuma mobilização sindical ou popular de protesto tenha sido provocada, é de acreditar que a política verdadeiramente está morta; o que vive é o burocratismo liberal pacifista.

            A paralisia das forças sindicais e populares diante das exigências do capital, é assustadora. A crença de que o Supremo Tribunal Federal fará justiça e conterá os golpistas e, o Ministério da Fazenda, com a ajuda do novo aliado presidente do Banco Central colocarão o país na linha da estabilização econômica, dando, por certo, alguns pontos positivos para melhorar as condições de disputa nas eleições presidenciais de 2026, faz dos partidos da situação, favoráveis ao governo, verdadeiros fantoches, que só abrem a boca e os braços para falarem e gesticularem a favor do arcabouço funcional. Ninguém mais teme a “cobra cega” e desdentada que se tornou a “esquerda”.

            O pântano no qual está afogada a política institucional, que corta recursos da educação mas mantém o fundo para atender as emendas parlamentares, não pode servir de endereço para que as forças populares também se dirijam para lá. Nessa situação, se para o “homem louco” ainda há tempo: “O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos.”; para a política, o tempo acabou. Nesse caso, teremos de ter a coragem de dizer como fez Lenin em sua conclusão: “(...) larguem-nos a mão, não nos agarrem e não manchem a grande palavra liberdade, porque nós também somos livres para irmos aonde nos aprouver, livres não só para combater o pântano como também aqueles que para lá se dirigem”.  

            O princípio de que “a luta continua”, permanece válido; faltam lutadores e organizações comprometidas com a transformação social e não com a estabilidade capitalista.

                                                                                   Ademar Bogo



[1] NIETZSCHE. A gaia ciência (§125).

[2] LENIN, V.I. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1986, p. 7.

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