domingo, 1 de outubro de 2023

AS LEIS E A JUSTIÇA.


            Quando o Direito positivo, este que está em vigor em todas as partes o mundo; após a Revolução Francesa de 1789, posto acima dos demais direitos, divino e natural, para essa nova formulação, o filósofo Georg Hegel em seu livro, “Princípios da Filosofia do Direito” (inciso 270), destacou que: “É o Estado a realidade da liberdade concreta”.[1] Ou seja, a liberdade de cada indivíduo na sociedade, está garantida pela lei e não pela falta dela.

            No real parece ser o oposto, porque, olhando do ponto de vista prático, tudo aquilo que cerceia a vontade, também limita a liberdade. O muro que prende o cachorro feroz, provavelmente para ele é um problema, pois, não o deixa exercer o seu direito de ir e vir. Assim ocorre com as cercas ao redor de uma propriedade etc. Mas Hegel viu na lei, a ordem, por isso quando não há lei estatal, qualquer indivíduo pode impor a sua e desmanchar os contratos, tomar as propriedades e ainda decidir sobre a vida de seus semelhantes.

            A importância dessa elaboração inovadora, adaptada à fisionomia da burguesia, ainda revolucionária, era a de fazê-la livre para implementar os negócios e ampliar as suas posses. Por outro lado, para não correr riscos, teria a força estatal para cuidar desses interesses e garanti-los à força. O pagamento por esse esforço empregado publicamente, viria do recolhimento dos impostos. Em síntese, a liberdade teve, desde o início um preço a ser pago, como um dever obrigatório para adquirir um direito.

            Não podemos deixar passar despercebido que, a propriedade privada, a produção e acumulação da riqueza por meio do trabalho e a circulação do capital, estão na origem desse debate. Tanto assim que Karl Marx, ao reler a obra de Hegel, interessou-se bastante por esse capítulo denominado de: “O Direito Público interno”, iniciado no inciso (260) e, de imediato, destacou que, a premissa inicial do texto pregava que: (...) a liberdade concreta consiste na identidade .... do sistema dos interesses particulares (da família e da sociedade civil), com o sistema do interesse geral (do Estado)”[2]. A polêmica seguiu-se, margeando o alcance dessas primeiras proposições e chega aos nossos dias, movida pelos mesmos interesses alimentados pela propriedade privada e pela acumulação do capital.

            Antes que dispersemos a atenção e comecemos a perguntar por exemplo, o que seria de uma sociedade sem Estado, leis, parlamentares, juízes, policiais e prisões? Ou se seria possível viver em uma sociedade na qual qualquer indivíduo faz a sua lei, tendo os mais fortes o direito a exterminarem os mais fracos?

            Embora que no fundo trata-se desse problema dos mais forte por força da lei garantem o direito a eliminarem os mais fracos, não é este o sentido da discussão. Evidentemente, uma sociedade acostumada a viver com certas convenções, ao se ver privada delas, se desarruma. Mas é bom pensar que, há redutos nos subúrbios das grandes metrópoles e em muitas pequenas cidades, nas quais as leis já são feitas pelo tráfico ou outros grupos ligados ao crime e não pelo Estado.

            A questão é saber quando as leis servem aos interesses gerais, voltadas para o Bem-comum, ou se voltam para servir a liberdade de grupos particulares, dedicados à acumulação do capital e a ampliação das posses? Podemos comparar as importâncias. Para uma família sem casa, a garantia da lei de que ela é livre para comprar um terreno e construir o seu espaço, é fundamental. A escritura comprova o direito de propriedade e pode ser usada como garantia para fazer um financiamento bancário etc. Isso se repete com qualquer objeto. Um bem de uso comprado, com nota fiscal, dá garantia de que pertence a quem o pagou. No entanto, isto é válido também para o grande proprietário que, para construir um condomínio, utiliza-se dos mesmos argumentos para despejar centenas de famílias que não possuem um documento igual ao dele. As grandes empresas de mineração que invadem as regiões, obrigando as câmaras de vereadores aprovarem a exploração dos minérios e, tantos outros exemplos que não há necessidade de aqui citá-los.

            Vamos além, no poder dos mais fortes sobre os mais fracos, e, estacionemos no assunto do momento conhecido como “Marco temporal”. Ninguém pode negar que o território, antes do ano de 1.500 era habitado por muitos povos indígenas; diz o IBGE de hoje, existir 350 etnias, com  270 línguas diferentes. Não há registros que esses habitantes tivessem um cartório de registro de propriedade e nem que houvesse algum corretor de imóveis demarcando e vendendo lotes para os indígenas. No entanto, a “sociedade civilizada” (Hegel a chamou de civil), por meio da autoridade dos poderes da República e, instigada por grupos interesseiros, entrou em conflito para decidir até que data os povos originários, tem o direito de reivindicar a posse de suas terras. E, a data sugerida é precisa: 05 de outubro de 1988, dia da aprovação da última Constituição Federal.

            No momento arma-se um teatro para protelar a decisão. De um lado o Congresso Nacional, aprovou o projeto de lei, 490/2007 na Câmara dos Deputados e o encaminhou, com a referência 2903/2023; aprovado também no Senado Federal no mesmo momento em que o Supremo Tribunal Federal, pela maioria dos juízes, definiu com posição contrária ao marco temporal.

            Todos sabemos o que irá acontecer. Na medida em que o Supremo Tribunal considerar inconstitucional essa lei aprovada, ou o presidente da República vetar, o Congresso Nacional, composto por representantes do capital e da grande propriedade, produzirá uma PEC (Projeto de Emenda à Constituição), e dirão que agora, a Constituição estabelecerá claramente o que os interesses privados querem.  

            Em síntese, as mesmas palavras na boca de diferentes falantes podem ter significado oposto. Porém, enquanto os povos indígenas continuarem resistindo, sozinhos, contra a aprovação das leis, os interesses privados andarão a passos largos, em vista de garantirem, legalmente ao capital, os direitos privados, desrespeitando os direitos legítimos das populações mais pobres. A força da lei não pode ser maior do que a força da justiça, para tanto, é preciso continuar a luta para superar o capital e o Estado, para que, nunca mais, a medida do justo seja imposta pela propriedade.  

                                                           Ademar Bogo



[1] HEGEL, Georg, W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1997, p. 211.

[2] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 33.

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