domingo, 8 de novembro de 2020

O MARAVILHAMENTO CONFUSO


            Vladimir  Jankélévitch, o filósofo francês que viveu entre 1903-1985, cunhou esse vocábulo na Filosofia e aqui nos servirá como uma categoria de análise. Ele nos mostra que o encantamento ou o espanto com algo surpreendente pode ser mais ilusório do que concreto, ou mais metafísico do que real.

            O maravilhamento surge pela revelação de algo que se esconde por trás das sombras e causa uma importante satisfação e também uma euforia, que têm motivos, mas, não tendo base real para se sustentar, afunda como a baleia que se mostra por alguns segundos sobre as águas, mas logo em seguida desaparece. Sabe-se que ela continua lá, mas não se pode saber os dados mais superficiais como as medidas, o peso, a idade etc., e, em pouco tempo, o maravilhamento se dissolve, restando apenas uma lembrança, talvez uma fotografia e uma duradoura saudade. .

            Esse maravilhamento vimos revelar-se nos últimos dias nas eleições para presidente da República dos Estados Unidos da América. Uma boa parcela da humanidade está maravilhada com a derrota do “homem mais poderoso do mundo”, sem considerar que um pouco mais da metade dos eleitores daquele país escolheu outro homem, também poderoso para ocupar o lugar.

            Isto quer dizer que não valeu à pena? “Tudo vale à pena, quando a alma não é pequena”, nos disse Fernando Pessoa e, nesse caso é um valor para as almas pequenas. Vale pelo maravilhamento. Há épocas que precisamos um pouco de fantasia para não enlouquecer. Mas os negros e os imigrantes latinos que residem nos Estados Unidos, perceberão em curto prazo que eles estarão fora do governo e que a polícia branca continuará sendo branca e que o racismo que contribuiu para a derrota do presidente atual, continuará arraigado nas consciências pervertidas e intolerantes.

            Por outro lado, as populações periféricas do mundo, que também nos maravilhamos com “a pequenez da alma” sequestrada pela tática eleitoral, sentiremos que o maravilhamento confuso e momentâneo não converterá a brutalidade dos setores da extrema direita e seus adeptos em posições de bom senso. A razão para compreendermos essa posição é muito simples: o capitalismo em sua fase destrutiva precisa de sujeitos destrutivos para que o capital possa se reproduzir.

      Karl Marx, durante a sua vida não se cansou de revelar que, a personificação das formas sociais de poder se dá pela encarnação dessas mesmas formas em representantes humanos. Ou seja, para que as estruturas mortas tenham vida precisam de pessoas que as assumam como suas, é por isso que, a mercadoria, o dinheiro, o capital e a forma política estatal, existem e funcionam pelas próprias leis tendenciais assumidas por indivíduos que, na atualidade, por conta da decadência estrutural do capitalismo, representam também as posições de extrema direita.

            É esse processo de encarnação das formas: mercadoria, dinheiro e capital, que o maravilhamento das parcelas mais sofridas da humanidade não conseguem desmanchar com uma eleição. A destrutividade capitalista é tamanha que amedronta as classes dominantes e estende o seu medo para a classe média que facilmente percebe a linha divisória entre o conveniente e o nível mais baixo do padrão de vida.

            Nessa viagem para o futuro, em busca de assegurar os seus espaços, os indivíduos mais bem posicionados atacam e forcejam para descartar as parcelas da população que estão embaixo e que exigem direitos e respeito.

            As eleições, como o salto da baleia, mostram, mesmo que de relance, a divisão criada entre as populações. Em estudos passados foram revelados dados que mostravam as intenções da globalização e do neoliberalismo que era criar as condições para que 30% da população mundial tivesse acesso a todos os benefícios do capitalismo. Isso certamente não mudou. Apenas para que se legitime por meio da fantasiosa “democracia representativa”, tornou-se necessário buscar o apoio de mais 20% das populações, dispersas ou organizadas em seitas religiosas ou cooptadas pelas políticas assistenciais sustentadas pelos governos.

            Os sinais indicadores de que as populações em diversos países não estão apenas divididas, porque isso de algum modo sempre ocorreu, mas agora são também vistas como inimigas pelas classes dominantes. Essa postura de acirramento das tensões das forças de extrema direita para, quando perderem não deixarem governar, tem como objetivo manter uma porcentagem razoável da avaliação positiva para justificarem os ensaios de guerra civil, atuação livre das milícias, que se encarregarão da matança das massas incômodas ao capital.

            Nesse sentido, uma derrota eleitoral pode representar muita coisa, até mesmo o maravilhamento temporário e confuso para as populações exploradas e abandonadas; mas, acima de tudo, para as classes dominantes e forças auxiliares, pode mostrar que para se sustentarem precisarão estruturar ainda mais as forças paramilitares e intensificar a violência contra as massas opositoras, incômodas e excedentes no capitalismo decadente.

            Tudo isso nos mostra que a suposta tendência à moderação institucional não baixará a temperatura da polarização real; as forças de direita utilizarão como matéria política, o racismo, a discriminação, os preconceitos, a exclusão e o extermínio, isto porque, o capital após encarnar-se transfere o seu caráter inumano para o capitalista.

            A única forma de enfrentar a decadência é superá-la, para isso é preciso maravilhar-se conscientemente com o processo de transição socialista.

                                                                                  Ademar Bogo  

                                                                               Autor do livro: Moral da História 

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