domingo, 30 de agosto de 2020

MANSIDÃO E BRUTALIDADE

                O italiano Antônio Gramsci, vivido na primeira metade do século vinte, elaborou e discorreu mesmo na cadeia, sobre diversos temas que, vez em quando ressurgem atualizados como este da “Espontaneidade e direção consciente”.

            Para ele “a espontaneidade pura não existe”, isto porque, ela não funciona como na mecânica. No entanto, sendo o movimento espontâneo uma característica das classes subalternas, o problema maior que ele traz em si é a falta de uma “direção consciente”. Há muitíssimas formas de direção encarnadas na espontaneidade das massas, mas nenhuma delas ultrapassa o nível da “ciência popular”, ou se quisermos do “senso comum”; e é essa concepção de mundo que, segundo Gramsci, se opõe ao marxismo.

            Essa forma de fazer política equipara-se ao nível da visão histórica do folclore e da feitiçaria convertidas em “ciência política”; hoje podemos dizer ela se reduziu                                                   às mensagens escritas nas redes sociais. Isto também, segundo Gramsci é uma “teratologia”, ou seja,  uma especialidade médica que estuda as anomalias da gravidez. Mas a palavra nos inspira a convertê-la em “teatrologia intelectual”, que seria o estudo da performance teatral dos contextos conjunturais. Podemos citar como exemplo, a oscilação para cima que teve ultimamente a aprovação do governo. E o que faz a “teatrologia intelectual” contrária? Estuda o por que dessa performance de direita das massas? A resposta é curta. Porque não existe espontaneidade consciente. Para que haja consciência de massa de esquerda e, mais ainda, revolucionária, precisa existir uma ou várias direções conscientes e revolucionárias que estejam vinculadas, por ideias, propostas, objetivos, ações etc., e não apenas programas assistenciais como aqueles que sustentaram o “lulismo”, até o dia que o neo-fascismo ofereceu mais em dinheiro. 

            Diante disso é possível dizer que, estando as direções “folclóricas”  no nível do senso comum, enquanto as reações espontâneas de descontentamento não acontecem, as mesmas direções tidas como “conscientes” ficam inoperante, pois, não sabem o que fazer senão “teatralizar” por meio de eventos políticos, mas que, pela repetição, tornam-se folclóricos e  ficam cada vez menos atrativos, como é o caso das eleições. No passado elas empolgavam as massas porque havia alguma recompensa imediata; agora, com as proibições de doações, os currais eleitorais foram transferidos para o sistema virtual, no qual o esforço reside no movimento dos contrários da informação: afirmar e desmentir.

            A espera da espontaneidade, sem uma direção consciente e capaz de orientar as massas, é o mesmo que parar e esperar pela própria morte. Um exemplo bastante ilustrativo pode ser rememorado através das mobilizações de 2013 que ocorreram no Brasil. É verdade que, infladas pela mídia de direita e dirigida pelas redes sociais e grupos neofascistas, conseguiram afastar os partidos e os movimentos organizados dos postos de comando. É uma lição a ser aprendida. A espontaneidade contribui para ambos os lados, direta e esquerda, quando uma direção consciente se vincula, desde que as reações apontem para recompensas ainda maiores daquelas imaginadas pela “ciência popular”.

            Nisso, parece que,os “artistas da teatralização” que se utilizam das ideias de Gramsci para fortalecer a concepção da “revolução pacífica”, pela via eleitoral, esquecem de, como ele, fazerem a distinção  entre elementos puramente “ideológicos” e elementos da “ação prática”, entre a sustentação da espontaneidade como “método” de transformação histórica, e os politiqueiros que sustentam a espontaneidade como forma de fazer política no nível do senso comum.

            Para os marxistas, em toda a História do capitalismo, as crises econômicas são inevitáveis. Elas são criadas no próprio movimento de ascensão do capital e, por isso, ninguém pode evitá-las. A orientação materialista histórica sempre foi para que as forças revolucionárias estejam preparadas para estes momentos de acasos.

            No intrigante momento em que vivemos, no qual confluem para o mesmo lugar, a mansidão das massas e a brutalidade das autoridades governamentais, as forças de oposição encontram-se alijadas do processo. Por quê?  Só há um processo que alimenta em si o movimento dialético de afirmação e desgaste. Não existe outro processo em vias de avolumar-se para estabelecer um enfrentamento entre os elementos contrários no movimento da totalidade da política. Ou seja, se há contradições elas estão polarizadas no próprio governo e não entre o governo e uma reação contrária de esquerda.

            Confiando no desgaste político do governo, devido ao uso de métodos que prezam pela “brutalidade vingativa”, e o descaso pela vida, as forças de esquerda apoiam a agenda “humanitária”, como foi o caso da ajuda emergencial, no entanto, cruza os braços em termos e não se move para elevar o nível de consciência e organização das massas, que ainda guardam nos recantos da memória, a dinâmica da troca assistencial do coronelismo, com um agravante, de que, se antes as práticas coronelistas controlavam as massas em redutos locais, agora, essa base ampliou-se para um controle coronelista federal.

            Iludem-se aqueles que, pelo PT ter governado por 13 anos o país, que isso seja, na memória social coletiva, um “patrimônio histórico” indestrutível. Esquecer de considerar que esse patrimônio foi construído sobre os ombros frágil de, um agora idoso líder chamado Lula, próximo a sair de cena, fará cair o patamar da aceitação de outros indivíduos que não sejam da elite coronelista ou representante dela, é desconsiderar o movimento dialético para trás.

            A brutalidade coronelística nunca deixou de ser um método eficiente de fazer política no Brasil. Por intermédio da memória da figura paterna enérgica que se estendeu para o poder judiciário, vinculado a coação jurídica e policial sobre os grandes contingentes populacionais empobrecidos e perseguidos cotidianamente, a voz de uma autoridade forte, cria um sentimento dúbio que mistura temor e admiração. Foi assim que os militares voltaram ao governo, não apenas por seus méritos, mas também por conivência das forças de esquerda que confiaram no Estado, no emprego e nos programas assistenciais, como eixos da condução política. Estes são os mesmos eixos utilizados pelos capitalistas e malfeitores que hoje governam o país.

            Sendo assim, ao tirar de alguém as mediações daquilo que ele sabe fazer, torna-se inútil. Na família ninguém gosta de pais inúteis, assim como as massas não gostam de inúteis na política. É o que vemos acontecendo com as esquerdas fora do governo, estão ficando cada vez mais inutilizadas e, dento dos governos, concorrem para saber quem é mais eficiente no embelezamento do capitalismo. Ou seja, aonde foi colocada a perspectiva de transformação social?

            Por fim, mansidão e truculência na política e na vida social, não deveriam, mas podem não ser contraditórias e sim complementares. Culturalmente, o patriarcalismo impôs o poder paterno; o machismo o poder do macho; o capital o poder de exploração; o Estado o poder das leis; a religião o poder moral; o racismo o poder do branco e, o coronelismo, o poder político. E os defensores da política do senso comum querem desmanchar tudo isso com as esparsas disputas eleitorais?

            Conscientemente devemos acreditar que, a espontaneidade que virá pela onda de reação das massas, não será favorável às esquerdas se elas não assumirem agora uma posição que aponte para a superação do sistema que gera a miséria, a fome, a doença, o analfabetismo, o autoritarismo, o fascismo, o racismo, a exploração e a dominação capitalista. Emprego e política pública são oferecimentos do descaramento daqueles que querem manter a ordem manejando o Estado, por meio das disputas eleitorais. Faz parte da capacidade de uma elite de esquerda que se profissionalizou alimentando as ideias do senso comum. Essas ideias e essas forças devem desaparecer, se o marxismo voltar a ser a verdadeira ciência dos movimentos revolucionários a serem com ela construído.  

                                                                       Ademar Bogo

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