domingo, 23 de agosto de 2020

CRISE OU DERROTA DA RAZÃO


            O filósofo holandês Baruch Spinoza (1632-1677), ao tratar “A servidão Humana ou a força dos afetos”, procurou dar atenção à razão, mostrando que, “quem vive sob a condução da razão se esforça, tanto quanto pode, por retribuir com amor ou generosidade, o ódio, a ira, o desprezo  etc., de um outro para com ele”.

            Do ponto de vista da bondade, o filósofo nos mostrar que, quem se conduz racionalmente se esforça para não ser atingido pelos afetos contrários, e poderíamos chamá-los de “irracionais”. Esse entendimento, de forma simplória, nos apresenta um retrato da civilização contemporânea, que nos levaria associar as duas denominações: “crise da razão” ou “derrota da razão”.

            O período mais intenso do embate sobre a razão ocorreu deu na modernidade. Os acertos feitos por Immanuel Kant pareciam ter pacificado o conflito entre os racionalistas e os empiristas, mas, na medida em que a ciência e a tecnologia ganharam expressão no âmbito da civilização capitalista, o próprio emprego da razão, ao penetrar em todos os espaços, serviu mais à competição e a concorrência do que aos cuidados e a formação da consciência social, trazendo para os dias atuais, ondas de reações, irracionais, imorais e anti-sociais.

            Na contramão do que pensou Spinoza, a civilização capitalista construiu relações que tornou vencedores aqueles que não se conduzem puramente pela razão, mas sim, pela alienação. Portanto, aqueles que deveriam retribuir generosidade para os outros que agem com ódio, ira e desprezo, encontram-se exprimidos entre as paredes do senso comum cooptado e a exaltação da tecnologia.  

            A superação repentina pela globalização das relações estruturadas, orientadas pelas ideias bibliográficas, formadas pelas diferentes concepções conservadoras, progressistas e revolucionárias, trouxe enormes dificuldades para o aprofundamento do conhecimento. As redes sociais hoje manobram, como diria o filósofo Hegel, os “espíritos”, fazendo que o tempos de trabalho e de estudo sejam engolidos por um só tempo,  o da superficialidade da informação.

            O pensamento crítico, de reflexões profundas, diante das multidões mal informadas, mas seguras de que “estão por dentro”, desfez-se das categorias estruturantes das análises e voltou-se para esclarecer os efeitos, em grande medida, fantasiados pela ideologia das classes dominantes que atuam criando ondas de hegemonia por meio de conceitos que visam alimentar a falsa guerra do bom contra o mal.

            Dominada pela “democracia representativa”, a humanidade, sob o domínio das redes sociais e da própria mídia tradicional, passou a acreditar no oposto de que essa suposta conquista se opõe ao “totalitarismo”. Aristóteles, na Antiga Grécia já havia igualado as duas formas de governo como sendo a mesma coisa, “o governo de um” e “o governo de um grupo”.

            A crise ou a derrota da razão levou ao domínio das forças políticas e sociais obrigando-as a se colocarem diante do mesmo comando, formado pelo capital produtivo, mas, principalmente pelo capital especulativo. São esses dois senhores que, atordoados pelas sequentes crises, manejam as servidões, em parte impositiva e, em maior parte voluntária.

            Diante dos avanços tecnológicos, nos encontramos atordoados pelo dilema do “quefazer”. Aparentemente revivemos os tempos do início da revolução industrial inglesa, quando os operários, ao verem os empregos sendo suprimidos pela presença das máquinas, sem sucesso, optaram por destruí-las. Nosso dilema é ainda maior porque a intervenção tecnológica não desarruma apenas o mundo do trabalho, mas também a ordem das organizações e a capacidade das ideias para enfrentar a alienação cultural dominante.

            É uma “engenharia do caos” como disse Giuliano da Empoli, que cria e manobra as circunstâncias de fazer com que o mal venha para o bem. Ou não é? O que está ocorrendo no Brasil hoje é o espelho de que as perversidades e ofensas são relevadas quando se dá a recompensa. A mais de uma centena de mortos na pandemia, não abalou, pelo contrário, melhorou a aprovação do governo, isto porque, a ajuda emergencial para uma massa sem consciência critica, leva a compreender que, sem o pior presidente seria ainda pior viver neste malfadado tempo.

            As saídas? Muitos são que as procuram sem ainda chegar ao ponto da reação. Muitos outros não procuram porque seguem com a agenda posta pelos senhores da ordem dominante. No entanto, é importante, antes de qualquer coisa, voltar-se para o entendimento da razão contemporânea, como fizeram Marx e Engels em 1845, quando interpretaram “A ideologia alemã” e estabeleceram ali os fundamentos do Materialismo Histórico. Isto porque, não haverá mudanças sociais revolucionárias, sem que as forças sociais se tornem revolucionárias e, uma revolução só ocorre quando houver consciência de sua condução.

            A derrota do capitalismo virá também, se houver no mesmo movimento a derrota do espiritualismo, do moralismo e do ilusionismo. O resgate da razão permitirá a correta orientação das ações desencadeadas pelas forças que suplantarão o capital e o Estado. A nova ordem afirmar-se-á pelas diversas negações que hoje afirmam a servidão.

                                                                                                   Ademar Bogo

           

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