domingo, 6 de setembro de 2020

ESTADOLATRIA

            O filósofo Antônio Gramsci, cunhou este conceito de “estadolatria”, para explicar o comportamento de grupos sociais, que se colocam a favor do Estado o qual abriga o “governo dos funcionários” que, se por um lado aparenta ser uma opção necessária, jamais pode tornar-se um fanatismo prático e teórico.

            O Estado representado pelo “governo dos funcionários” tornou-se o invólucro da forma política que, tanto as forças de esquerda ou as de direita, no comando de seus partidos políticos, tentam romper, penetrar nele e governar de dentro para fora. A “estadolatria”  tornou-se um sonho de consumo a ser alcançado por aqueles que compreendem ser a política a arte de reunir forças para pintar a “ordem democrática”, com as cores de  suas crenças, sem mexer nas estruturas do sistema de dominação.

            Nas crises econômicas e sociais as cores e as crenças enquadram-se na institucionalidade para dar forma ao Arco-Íris, como ocorreu no passado, quando Noé saiu da Arca depois do dilúvio e entregou a Jeová os animais salvos. Recebeu em troca, como aprovação do que havia feito o arco de cores que tocava o céu e a terra. Apesar de todas as mortes, a ordem moral divina foi continuada, mas, os animas em busca de alimentos, penaram por um longo tempo, sem nenhuma orientação, guiados apenas pelos instintos naturais, até que a terra enxuta refez as paisagens e ofereceu o novo alimento.

            A pandemia do Covid-19 é o novo dilúvio. Os humanos como animais recolhem-se em suas arcas e alimentam-se com aquilo que “noé” lhes oferece. No, entanto, alto se vê todas as cores movendo-se para formar o “arco-íris” que virá para “moralizar a ordem”, com as forças partidárias que, por unanimidade concordam com a “estadolatria” e que o “governo dos funcionários” deve transformar o auxílio emergencial em auxílio permanente, até que a terra arrasada pela doença refaça a vegetação para que “os rebanhos” imunizados, possam encontrar formas de subsistência. Quanto a isso há total concordância, o único ponto discordante é se o auxílio deve ser de R$ 600,00 ou 300,00 reais.

            A “estadolatria” é tão dominadora que antes mesmo do dilúvio estar amenizado, “Noé”, agora encarnado pelas forças partidárias, libera os “animais políticos”, como diria Aristóteles, para que saiam das “arcas” e sigam para as urnas para confirmarem a harmonia da velha divindade da “ordem democrática burguesa”, com o povo faminto, tornando assim, o “direito ao voto”, a ação mais radical que se poderia desferir para contestar o poder do capital e o projeto neoliberal. Sendo assim, conforme o filósofo Hegel, o Estado, como o “espírito absoluto”, entra com R$ 300, 00 reais e, as forças de esquerda oferecem os pobres, como Noé ofereceu os animais salvos, para afirmar a tática eleitoral, suprassumo de processos políticos cooptadores e sequestradores do senso crítico.

            As evidências de que a política contestatória perdeu o conteúdo é indiscutível. As várias décadas da “estadolatria” fez com que, no âmbito das disputas políticas, as confrontações ficassem presas ao sim e ao não: “menos Estado”, “privatizações”; “liberação para compra de armas” etc., e, nada de buscar alternativas para a superação do capitalismo.

            A “estadolatria” fez esquecer os conceitos válidos produzidos pela ciência política que levou ao triunfo as revoluções em países, tidos na teoria de Gramsci, como tipos “Orientais” e “Ocidentais”; as primeiras caracterizadas por realidades econômicas e sociais, incipientes ou “gelatinosas” como foi o caso da Rússia e da China; as segundas, lastreadas por fundamentos mais estruturados.  Nestes países também foram confrontados os dois conceitos de guerra de “posição” e de “movimento”, quando, a primeira, devido à existência de sociedades menos organizadas, com classes sociais menos estruturadas, foi a forma escolhida pelos países que pensaram em um processo de decisão rápida, ou de tomada pela força o poder do Estado.

            Por outro lado, os países de estrutura mais consistente, os “Ocidentais”, segundo Gramsci, teriam que impulsionar outro processo político denominado de “guerra de movimento”. Nesse as forças irão conquistando posições e,  aos poucos chegarão ao triunfo. Essas duas formulações induzem a pensar também, nas formas organizativas, ou mais propriamente, partidárias. Para a “guerra de posição”, necessita-se de um “partido de quadros” e, para a “guerra de movimento”, que vai acumulando forças e ganhando espaço dentro das estruturas sociais, a referência é para a organização do “partido de massas”.

            Diante do processo de globalização, das economias nas últimas décadas, a centralização e comando da política, pelos capitais produtivos e especulativos, que se lançam sobre os territórios tolhendo as soberanias nacionais, em termos de conceitos, somos “sociedades Ocidentais” ou ao contrário, “sociedades Orientais”? E se somos, uma ou outra, que forma de organização precisamos estruturar para fazermos os processos apontarem para a superação do capitalismo?

            Todas as análises nos levam ao entendimento de que, o uso das tecnologias interfere violentamente nas formas produtivas e desmancham a ordem tradicional iniciada na Revolução Industrial. As classes trabalhadoras que anteriormente se formavam, conscientizavam e agiam reunidas no mesmo local de trabalho, foram dispersadas e, os processos de produção, circulação, troca e consumo tendem a se dar por meio da informalidade, na qual o  indivíduo sobrepõe-se à coletividade. Nesse sentido, embora pareça confuso, os avanços tecnológicos não fizeram as sociedades avançar para o tipo “Ocidental”, pelo contrário, do ponto de vista social e político, fizeram-nas regredir para as sociedades de tipo “Oriental”, com características acentuadas de propensão à barbárie.

            Parece então que, se os processos “noelinos” de entregar os pobres para serem atendidos pelas políticas emergências, como os animais que desceram da arca, famintos e sem consciência esperaram que a natureza rebrotasse, enquanto o chefe recebia o Arco-Íris e o reconhecia como a aliança institucional, política e moral feita, não é o suficiente para mudar a correlação de forças, nem tampouco conseguirá mudar os rumos da política.

            Temos duas indicações de sociedades de tipo “Oriental” que nos mostram a necessidade de organizarmos o “Partido de quadros”, ou se quisermos de militantes conscientes, para conduzirmos em cada país o processo de superação do capitalismo, que foram as mobilizações na Grécia de 2013 e as do Chile em 2019; ambas acomodadas depois de um tempo de ações e resistência, por falta de um partido consciente que pudesse encaminhar os esforços para o desfecho vitorioso.

            A juventude, trabalhadores e intelectuais teremos que escolher entre, assistir o velho Noé representar, por meio da malfadada democracia representativa, que reduz a vontade da maioria ao poder de um grupo, deixando ao povo a única saída do voto, ou superar o “velho” líder e a velha forma de reunir cores para formar o Arco-Íris que encanta, mas não suplanta.

                                                                                                                 Ademar Bogo

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