domingo, 28 de junho de 2020

PARA ALÉM DA BARBÁRIE


            Quando Rosa Luxemburgo em 1916 escreveu “O folheto Junius: a crise da socialdemocracia alemã” e reelaborou a tese de Engels, na qual havia afirmado que a sociedade capitalista se achava, na década que ocorreu a Comuna de Paris, diante de um dilema: “Avançar para o socialismo ou regredir para a barbárie”, tinha em mente o avanço do imperialismo no mundo por meio da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra, arraigada em   ideias nacionalistas, havia fascinado os próprios operários a entrarem nela ao lado das burguesias nacionais, levando a uma profunda crise os partidos operários da época.
            A certa altura da elaboração, Rosa Luxemburgo evidenciando o processo vindouro, destacou com clareza que, a avidez do capitalismo pela expansão imperialista, como expressão máxima do seu amadurecimento, seguia a tendência econômica de transformar o mundo e as nações, varrendo todos os métodos produtivos e sociais pré-capitalistas, subjugando todas as riquezas e convertendo as massas trabalhadoras em escravos assalariados.
            Para além de todas as catástrofes que a guerra estava provocando, basicamente destruindo algumas nações, o fator mais intrigante era a destruição da consciência da classe operária, convencida a morrer nos campos de batalha cada qual pela sua pátria. Era uma pena porque, a tradição havia formado o movimento operário com as melhores e mais educadas forças do socialismo internacional. Por isso Rosa concluiu o seu artigo dizendo que, a principal missão imediata do socialismo, era “libertar espiritualmente o proletariado da tutela da burguesia que se expressa através da influência da ideologia nacionalista”.
            A palavra de ordem assegurada por Rosa Luxemburgo, “Socialismo ou barbárie”, mais do que duas sentenças disjuntivas, era uma convocação a resistir e a superar o capitalismo; o que fora feito um ano depois pelos trabalhadores russos em 1917. No entanto, a barbárie a que Rosa se referia está muito aquém da que se abre sobre as nossas cabeças na atualidade. Na época da Primeira Guerra Mundial, as disputas se davam em favor da expansão imperialista do capital, para explorar os mercados em lugares ainda não explorados. De lá para cá, o capital cumpriu com os seus desígnios e fez, por meio das guerras, pela concorrência ou por convencimento das nações, de que a única saída de salvação do capitalismo era implantar a globalização. Com isso evitou um conflito armado universal e entregou ao mercado a responsabilidade de fazer as disputas locais e garantir a ordem mundial.
            Na atualidade já não há mais o que expandir, o capitalismo tornou-se um sistema universal. Para expandir-se terá de ir para fora do planeta, o que ainda é uma aposta, e também de nada vale explorar outros territórios, extraterrestres, se os consumidores de mercadorias continuam sendo os mesmos. Ainda não temos noção do que será a exploração do espaço, mas, sendo promissor e, não podendo a tecnologia dar conta de conduzir as formas de produção, a humanidade poderá ver tornar-se realidade a ingenuidade platônica que via dois mundos sobrepostos: sensível e inteligível. Nesse sentido é que poderá renascer a forma de trabalho escravo, deslocando para o mundo das ideias, parte das massas trabalhadoras, a outra alijada e sobrada do processo de exploração aqui na terra, entregue a barbárie e como medo dos novos traficantes de escravos, milícias e gangues, esconder-se-á como os primatas, em cavernas subterrâneas.
            A possibilidade de retrocesso do capitalismo é uma possibilidade evidenciada por Marx e Engels no “Manifesto do partido comunista”, de 1848, quando disseram, apesar do otimismo que alimentavam do processo para frente, pelo avanço das forças produtivas que, “De repente, a sociedade parece retroceder a um súbito estágio de barbárie; como se a fome ou uma guerra universal exterminasse todos os meios de subsistência, uma espécie de aniquilamento total da indústria e do comércio”.
            Por enquanto, o capitalismo cumpriu com o seu legado de ser um modo de produção, alienador e “coisificador”; incluem-se nisso, os indivíduos sociais que, como coisas, movem-se em busca da realização das trocas de si ou de suas forças, por salários ou penam  sustentados pela assistência governamental presos nos currais eleitorais.
            A destruição da classe operária e das organizações que Rosa Luxemburgo evidenciara em seu artigo, ocorreu pelo envolvimento ilusório dos trabalhadores como parte dos exércitos burgueses, destruindo com isso, a consciência, a tradição intelectual e a capacidade de defesa do socialismo. Vivenciamos agora, ambos os dilemas de forma ainda mais acentuada. Com a globalização e o modelo neoliberal tivemos a dispersão dos trabalhadores para novos ofícios que levou à inoperância a estrutura sindical, fazendo com que ela já não responda pelas massas trabalhadoras. Por outro lado, se não houve a cooptação das forças esquerda, para somarem-se aos exércitos em marcha para a guerra, essas forças marcharam unidas com as burguesias nacionais para as disputas institucionais, repetindo com a mesma tática a natureza do pensamento nacionalista do passado, de governar para os interesses internos, entregando novamente para o mercado a responsabilidade de substituir pela lei do valor o “internacionalismo proletário”.
            Podemos dizer que o entendimento estabelecido por Rosa Luxemburgo sobre o conceito de “barbárie”, está aquém do conteúdo que este conceito adquiriu ao longo do tempo, isto porque, se naquela ocasião o imperialismo ensanguentava o mundo, abrindo espaço para a expansão do capital e fazia dos trabalhadores das nações de estrutura pré- capitalistas escravos da ordem mundial, na atualidade o intento da invasão territorial já não goza de tanta dedicação e, no aspecto da exploração da força de trabalho, se o princípio do “exército de reserva” era algo fundamental para estabelecer a pressão dos desempregados sobre os trabalhadores empregados, o que vemos é a conversão a um grande “exército de desvalidos”, porque possuem uma mercadoria sem valor, pois já não interessa às forças produtivas do capital incluí-las no mercado de exploração.
            De outro modo, as funções do Estado também sofreu grandes transformações. Se na Primeira Guerra Mundial, o Estado cumpria o papel de ser a força dirigente do capital, impondo aos trabalhadores a ordem a ser respeitada e, fundamentalmente, induzindo-os a aceitar o processo de coisificação, era porque tinha algo a oferecer em troca, mesmo que fosse por meio da “esperança destrutiva” que garantia aos sobreviventes uma nação mais promissora. Na atualidade, nem o capital, nem o Estado têm mais nada a oferecer às “massas de força sem valor”; nesse sentido, também não terão como controlá-las.
            Por que então devemos pensar para “Além da barbárie”? Em dois sentidos. O primeiro sentido responde pela situação certa de “desgovernança”, em que as estruturas paralelas ao poder estatal público, como o tráfico, as milícias e as facções organizarão o próprio poder territorial, como já ocorre em muitas favelas.  Essas forças do “banditismo social”, tomarão conta de amplos territórios urbanos, oferecendo serviços e garantias privadas, em troca do pagamento de “impostos” e a colaboração individual por meio da “servidão voluntária”, que fará renascer as relações escravistas, ao obrigar os subordinados a realizarem tarefas e funções para os comandantes dos portões do submundo do crime, ou, do mundo sensível na visão de Platão.
            O segundo sentido deverá ser o socialismo. O capitalismo está situado entre o feudalismo e o socialismo. Os capitalistas sabem que não há como retroceder e, por outro lado, têm como ameaça a barbárie e a possibilidade da superação pelo fortalecimento do processo de transição socialista. No entanto, o socialismo significa: superação material, política e cultural do capitalismo. No entanto, se do ponto de vista material, as próprias forças produtivas encarregar-se-iam disso, do ponto de vista político não.
            A busca da transição socialista é também uma procura que deve ser feita pelas forças que têm interesse em fazer uma ruptura com o capitalismo. Caso não haja interesse, as mudanças para frente não acontecem,  a exemplo do que fizeram os partidos socialdemocratas da Europa no período da Primeira Guerra Mundial ou aqui e em outros países latino-americanos, a partir da década de 1980, que, embora não existindo guerra mundial, ocorreu o mesmo com o pacto da não ruptura, por meio da aceitação e a adoção da tática eleitoral.
            Ir “além da barbárie” ou retroceder, aprofundando-a, depende da disposição das novas forças políticas decidirem-se pela disposição de deixarem de ser reféns das velhas organizações que visam a governabilidade sistema vigente ao invés da construção do processo que leva à transição socialista. De algum modo, a derrota socialdemocrata alemã de 1919 ainda não foi superada, pelo simples fato das esquerdas mundiais, com raras exceções, insistirem em atuar conciliando-se com as classes dominantes.
            Com não se aprofunda a barbárie sem decadência, não se ascende ao socialismo, sem teoria, organização, decisão, lutas e consciência.
                                                                                              Ademar Bogo

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