domingo, 7 de junho de 2020

DEMOCRACIA SATISFATÓRIA



            Quando falamos em “Democracia”, vêm-nos de imediato a ideia da perfeição política que nos leva de volta à Grécia Antiga ou até Atenas, cinco séculos antes de Cristo. O “poder do povo” para Drácon e Sólon consistia a reunião da “assembleia do povo”, quando os cidadãos podiam expressar livremente aquilo que desejavam e, por ser um número significativo de pessoas, o lugar mais adequado para os encontros era na praça central da cidade. O número de participantes, no entanto, não era tão significativo; no governo de Cístenes chegou a seis mil pessoas, sendo que quinhentas participavam também da “Bulé” uma forma de conselho responsável para administrar a cidade.
            Vista por alto, ou na superficialidade, a “Democracia ateniense” para as culturas ocidentais passou a ser o espelho, principalmente, a partir da Idade Moderna e na estruturação das formas de governo no capitalismo. No entanto, se olharmos cuidadosamente veremos que menos de trinta por cento da população ateniense, tinha o direito a participar das decisões.
            Desde 510 a 404 a.C, tempo que durou a democracia ateniense, podiam participar das assembleias apenas os cidadãos acima de trinta anos e apenas os que eram proprietários. Ficavam de fora os jovens abaixo de trinta anos, os escravos, as mulheres e também os estrangeiros. É evidente que, se observarmos como era exercido o poder antes das reformas de Drácon e Sólon iremos nos convencer que, para aquela época, esses senhores promoveram uma revolução política.
            Os ideólogos da formação do Estado capitalista buscaram na experiência grega, os fundamentos para estabelecer a democracia representativa. Podemos encontrar relações diretas nos discursos dos iluministas e o próprio Immanuel Kant quando racionalizou o individualismo, dando à burguesia os fundamentos para ela mesma romper com o Direito Natural e produzir o seu próprio Direito. Para Kant, a “união civil” é a união entre todos os proprietários privados ou os possuidores de bens entre o povo. A propriedade, como elemento diferenciador, permaneceu como critério para a participação política e, no caso brasileiro, só veio a ser parcialmente retirado, em 1932 quando permitiu o direito de voto também para as mulheres, principalmente as viúvas que fossem proprietárias.
            A democracia, na contemporaneidade, é invocada sempre que aparece alguma ameaça de retrocesso institucional. As vozes dos que sempre tiveram voz surgem por primeiro e convocam o povo a se manifestar. Em épocas em que parte da elite dominante, das classes médias e das forças reformistas e progressistas não sentem que a democracia está em perigo, agem consensualmente para manter o “Estado de Direito”.
            No entanto, se colocarmos um grau maior na lente, podemos ler que, nas entrelinhas da democracia institucionaliza, há uma satisfação dos interesses para os mesmos trinta por cento da população, conforme funcionava a democracia na Antiga Grécia.
            A democracia, na visão liberal e pequeno burguesa é, principalmente, a garantia da liberdade, que se manifesta por meio do funcionamento do mercado aonde também funciona o livre consumo; das garantias individuais que asseguram o direito de posse; da permissão de realizar eventos festivos; do direito à informação inclusive com a presença de uma imprensa livre; da constância na realização dos concursos públicos; da presença do capital internacional com as devidas honras aos investimentos privados; da universidade pública e, sem prolongarmos muito, da presença “na festa da democracia” quando todos são chamados a votar e a eleger dentre os candidatos oferecidos para serem verdadeiros representantes.
            É evidente que isto é satisfatório para quem de fato não possui problemas de acesso à escola, ao atendimento à saúde, não depende do transporte público, mora em lugares privilegiados com ruas asfaltadas e iluminadas etc. Para estes é preciso que o Estado invista mais em segurança e que os efetivos policiais estejam nas ruas para constrangerem as iniciativas criminais. Ocorre que há uma outra parte da sociedade, que não tem direito à “democracia satisfatória”, a não ser quando é chamada a participar das eleições, porque o voto legitima a presença e também a ausência daquela democracia.
            Para essa grande parte da sociedade, no cotidiano, aquilo que é feito com “ordem judicial” contra a criminalidade elitista, para as populações pobres, essa ordem está na sola dos coturnos dos policias, que arrombam as portas ou, no impulso das balas, que furam as paredes e atingem os indivíduos de qualquer idade e os matam. Ou ainda, para os trabalhadores que são revistados na ida e na volta ao trabalho ou para aqueles que arriscam organizar mobilizações reinvindicatórias, as forças policiais sempre estiveram do lado contrário e, por isso, o totalitarismo como regime de governo, funciona o tempo todo.
            Para a maioria das populações periféricas existem apenas dois e não três poderes na república: o poder policial e o poder das milícias armadas.
            Nesse sentido, é importante que nesses períodos como o que estamos vivendo, quando a “democracia satisfatória” de coloração liberal, está ameaçada pelos próprios defensores, que as cabeças conscientes refletiam e ajudem a pensar que a maioria da população nasce e morre sem nunca ter experimentado o que é o gosto de usufruir verdadeiramente da liberdade. E, considerar também que, o toque de recolher, quando não é imposto pelas armas apresenta-se na falta de condições que impedem de ir e vir, porque, a essas populações até o sagrado valor de troca lhes é negado.
            Para além disso, é fundamental que se perceba que a “democracia satisfatória” que garante o prazer de viver em sociedade, para a minoria da população, é  enganosa e frágil como uma rede de pesca que um simples esforço do tubarão descontente pode rompê-la. A ordem que satisfaz é aquela que favorece a classe dominante e, sempre que essa ordem representa qualquer empecilho para que os interesses sejam realizados, ela mesma se compromete a desrespeitar a lei que sempre usou para coagir a maioria da população.
            Acima de tudo, é importante compreender que essa burguesia que conhecemos, já foi vista na sua origem, por Karl Marx, como uma força altamente dinâmica e despudorada. Ela é assim porque criou a si mesma na estranhas do feudalismo nas transações dos primeiros comerciantes; depois criou o proletariado para o uso próprio. Para afirmar-se realizou três revoluções: a industrial, a política simbolizada na Revolução Francesa e, a liberal, no final da primeira metade do século dezenove. E ainda, criou o Estado capitalista, o Direito positivo e a moral que legitima a exploração do trabalho e considera que a riqueza é fruto das benções divinas. Enfrentar uma criatura com essa genética, apenas com o voto, é como tentar matar um rinoceronte com um garfo.
            Por outro lado, devemos intuir que as mudanças sociais não ocorrem sempre para frente, há momentos em que os retrocessos colocam em risco a própria sobrevivência das espécies; esses momentos estão se repetindo cada vez mais próximos um dos outros.
            As mudanças para frente, neste estágio do desenvolvimento do capitalismo, exigem, além da pressa, o entendimento dos conceitos, para que não sejam repetidas as mesmas ilusões passadas e, acima de tudo, ter clareza do que queremos edificar como substituir para a “democracia satisfatória”. Nunca estivemos tão perto de temos um mundo a ganhar ou um mundo a perder. A escolha é urgente.
                                                                                   Ademar Bogo

           
             

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