domingo, 31 de maio de 2020

A VOLTA DO BODE


                                                                       
            O “bode expiatório”, essa figura lendária e religiosa criada para dar vazão à “expiação”, quando a cerimônia se realizava com a presença de dois bodes. Um deles era sacrificado, mas o outro após receber a carga pecaminosa era levado e abandonado no deserto para que lá sumisse.
            O filósofo francês René Girard (1923-2015) quando escreveu sobre “O bode expiatório e Deus” mostrou-nos que a relação entre o social e o religioso está na origem da sociedade e que a relação direta com os mitos é, em todas as épocas, uma necessidade individual e também coletiva. Ou seja, para que a sociedade funcione e se mantenha unida, ela precisa criar inimigos comuns, porque, do contrário, o “desejo de imitação” entre indivíduos, leva à multiplicação dos conflitos particulares.
            A maneira tradicional de extravasar o “desejo de imitação” é contaminar propositalmente outros indivíduos com potencial de enfrentarem o mesmo opositor que passa a ser o mesmo inimigo de uma coletividade, composta por indivíduos invejosos que se reúnem a uma massa que sequer sabe por que escolheu aquele inimigo para lutar contra?
            A tradição dos sacrifícios oferecidos para as divindades vem desde os primórdios das religiões. As fraquezas humanas sempre foram grandes demais para assumi-las sem nenhuma justificativa. Sempre houve que culpar alguém para diminuir o peso da culpa. Assim foi com a cobra que tentou Eva para que comesse a maçã e com o próprio filho de Deus que, linchado em praça pública teve a inocência reconhecida só depois da morte. Na idade Média, a Inquisição serviu como instrumento de satisfação da eliminação principalmente de mulheres e, na Idade Moderna, a adoção da forma de produção escravista, os anseios e ressentimentos foram direcionados contra as raças, índia e negra, nas três Américas, justificadas pelas revoltas que foram na totalidade massacradas. No século XX o racismo adotou a forma de nazismo, incentivando o ódio e o desejo de vingança contra judeus, principalmente.
            O que poucas vezes nos damos conta é de que, em todos os tempos, as verdadeiras causas para os sacrifícios, não estão localizadas no sagrado, mas na crise civilizatória. O sagrado é apenas uma mediação para que o desejo político se realize. É o momento, em cada tempo histórico, que o “desejo da imitação” faz a política subir aos altares e, lá de cima, anuncia quem deve ser o “bode expiatório” da cerimônia.
            O “desejo imitador” na História da humanidade move as forças dominantes por dois sentidos: o primeiro, quando visa apropriar-se do sucesso do outro. As guerras geralmente são declaradas por interesses econômicos contra indivíduos bem sucedidos ou que possuam aquilo que o declarante deseja. O segundo sentido é a constituição de um mito que lidere, por meio de fantasias arrogantes, a reunião de forças em torno de um inimigo comum para sacrificá-lo.
            No Brasil, o bozonazismo surgiu como a ilusão unificadora das forças dominantes que produziu a alienação da pobreza religiosa e da classe média vingativa em torno mito da corrupção na política. É evidente que esta engenharia política, não surgiu da cabeça do “mito”, isto porque, o mito é sempre uma criação humana, ele não pensa, apenas age, segundo os desejos que os seus criadores incutem nele.
            Para tanto, seguindo o roteiro comum, o primeiro passo da investida “purificadora” foi escolher os “dois bodes” (como prega o livro do Levítico), um para ser sacrificado, o outro para ser enviado ao deserto carregando os pecados dos capitalistas. 
             O sacrifício primeiro, orientado pelo imperialismo, fixou-se no combate ao projeto político denunciado como “Foro de São Paulo”, demonstrando nitidamente que o “mito brasileiro” era parte de uma invenção, para derrotar as articulações de esquerda na América na Latina. Mas, para justificar os sacrifícios dos governos progressistas, havia que se criar um consenso em torno da corrupção governamental e, os governos mal posicionados caíram gradativamente.
            Para que esse sacrifício ocorresse, precisou que houvesse um movimento aglutinador das forças “invejosas” e interesseiras, tradicionalmente conhecidas como, empresas; meios de comunicação; poder judiciário; capital especulativo; partidos políticos, tidos como de centro; setores militares e igrejas neopentecostais e setores de outras, para consagrarem a realização do sacrifício.
            Sacrificado um dos bodes, o outro foi enviado ao deserto, e eis então que, o despreparo para lidar com os “desejos imitadores” e as circunstâncias históricas colocaram o bode a pegar o caminho de casa. Desacostumados a lidar com períodos históricos sem oposição, os criadores juntamente com os apoiadores do mito, desconheciam que as contradições continuariam a existir dentro das próprias fileiras. De imediato vimos o desacordo entre os meios de comunicação, depois entre os próprios aliados, iniciando pelos governadores, ministros e, por fim, entre os próprios poderes. De outro lado, as circunstâncias históricas, inicialmente despercebidas, por meio da pandemia inusitada, fez crescer o deserto aonde o bode expiatório havia sido abandonado, colocando-o novamente próximo de casa, mostrando que os pecados, como a corrupção e a crise econômica tinham ficado no mesmo lugar.
            A situação, embora pareça indefinida, permite que se faça uma leitura antecipada do conteúdo das páginas ainda não abertas do livro, cujo nome poderia ser: “A vingança do bode”. Os motivos para realizar esta leitura antecipada nos vêm dos aspectos seguintes.
            Em primeiro lugar, para que um grupo com diferentes desejos se mantenha coeso, precisa de que haja uma liderança capaz de cativar e despertar os ânimos a favor das imaginações elaboradas. O mito, além de ser frágil na preparação, envergonha a coletividade com as suas atitudes. Em segundo lugar, para que o bode enviado ao deserto permaneça lá, é preciso que as justificativas sejam sustentáveis, mas pandemia  que estendeu o deserto, está mostrando que o maior culpado pelo agravamento da crise é o governo central e, como o “outro bode” (forças de esquerda) já foi sacrificado, não há quem culpar. Em terceiro lugar, uma coalizão de forças somente se mantém, se houver ganhos permanentes. Na medida que o governo federal nada tem a oferecer, a não ser armas, os aliados começam a deixar o barco. Em quarto lugar, o contágio que arrebanhava as pessoas por meio de informações mentirosas, na medida em que se revelam os culpados, os indivíduos alienados começam a se dar conta que, o nazismo que prega a pureza e a superioridade da raça branca, simbolizada pelo copo de leite branco, atinge violentamente a grande maioria dos devotos do movimento pentecostal composto por descendentes de negros e pobres brasileiros. De modo que, o bode voltou do deserto, trazendo de volta para os seus sacrificadores todos os seus pecados.
            Por fim, segundo Freud, “um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo”. Qual? Todos os estímulos que animaram esse movimento vocacional ao totalitarismo, já foram debelados pela própria conduta dos lançadores de mentiras. Faltam palavras para formular ideias, e as que se pode ouvir são vaticínios, xingamentos e palavrões.
            E os resquícios exacerbados do neonazismo? A isso também podemos responder com as sábias palavras de Freud: “Um grupo é um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um senhor”. Com a queda do senhor, o rebanho se dispersa. Cabe às forças conscientes impedir que ele venha a se reunir novamente.
                                                                                              Ademar Bogo

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