domingo, 24 de maio de 2020

RIVALIDADE E INIMIZADE



            Em 1921, quando Sigmund Freud escreveu o artigo, “Psicologia das massas e análise do eu”, desejava refletir sobre o fenômeno do nazifascismo que, posteriormente, ele mesmo como descendente de judeus, também seria vítima das perseguições do mesmo.
            Freud, baseado em estudos de Le Bon, explicou o fenômeno do seguinte modo: um indivíduo inicia, na infância, as suas relações pessoais com os pais, irmãos, amigos, médico e passa a ser influenciado por eles. Na vida social, na medida em que passa a existir a convivência com um grupo, forma-se também uma consciência coletiva que leva cada membro pensar e agir diferentemente de como pensaria e agiria se estivesse sozinho. Essa unidade de pensamento e ação acontece porque há algo no grupo que une a todos e isso ocorre porque os “fenômenos inconscientes” desempenham papel preponderante sobre a vida orgânica e também psíquica de qualquer pessoa.
            Sendo que, ao inserir-se em um grupo o indivíduo passa a desenvolver um sentimento de poder invencível, ao “perder” a sua personalidade consciente começa a obedecer as sugestões de alguém, por isso, tem a sensação de fazer desaparecer as noções de impossibilidade. As motivações são excitadas por estímulos excessivos de uma liderança que faz o grupo acreditar que o improvável não existe.
            Ao discorrer sobre os princípios éticos de um grupo Freud considera que, quando os indivíduos se reúnem podem surgir reações de duas maneiras: na primeira, todas as suas inibições individuais desaparecem e manifestam-se os instintos cruéis e destrutivos, como se os seus membros vivessem em uma época primitiva; na segunda, podem ocorrer realizações de abnegação, desprendimento e devoção ideal. Mas, acima de tudo, os grupos não pretendem a verdade, exigem a presença de ilusões e não podem passar sem elas; “são quase tão intensamente influenciados tanto pelo que é falso quanto pelo que é verdadeiro”, por isso, um grupo “é um rebanho obediente, que nunca poderia viver sem um senhor” que, como líder goza de um poder misterioso e irresistível assegurando o seu prestígio e credibilidade pelas ideias fanáticas que emite.
            A relação entre o líder e as massas é imprescindível porque, enquanto o primeiro precisa da força para fazer valer as suas ideias, as massas precisam de autorização para agir e é nessa transmissão de estímulos que a “rivalidade” se torna “inimizade” irreconciliável.
Na política, na última década estamos vivenciando esse fenômeno também no Brasil. Ao ser despertado e incentivado pelos interesses capitalistas o desejo perverso de cada um, o “líder” captou e transformou em sentimento de ódio a força de uma facção que chegou ao governo e agora, precisa manter em evidência os inimigos para que o grupo sinta a satisfação de estar agindo.
            Na medida em que a rivalidade, pela presença do princípio dialético da unidade e luta dos contrários existe (como era até a ascensão do grupo de estrutura perversa), a competição é tida como natural; as disputas e o desejo de vitória, se não se ocorrem pela cordialidade não destroem  as partes que se enfrentam. No entanto, quando o ódio permeia as relações de confronto, os rivais são vistos como inimigos e, então, entra em ação o princípio da lógica formal, que prega a “exclusão do terceiro” elemento; ou seja, o grupo e o líder formam uma unidade, intolerantes com a oposição que, como o “terceiro elemento”, oportunamente deve ser eliminado fisicamente. Aí está a justificativa para o armamento da população e a ameaças constantes sustentadas por uma linguagem desaforada e desbocada.  
            Mas é importante compreender que essa relação não é espontânea e sim propositalmente construída. Por isso, a mensagem precisa ter uma linguagem ofensiva que comece por ferir a moral do outro por meio da ofensa e da diminuição de sua importância. Nessa linha a mentira aparece como a força ideológica do obscurecimento do real, expondo uma “verdade” fantasiosa que sempre justifica o erro e transfere a culpa para o “terceiro excluído” que pretendem eliminá-lo, depois ou durante o processo de eliminação das entidades e instituições.
            A política gerida por meio de instintos violentos, somente pode alimentar-se pela existência de grupos que se constituam como facções que precisam de inimigos para instigar a irracionalidade da ação. Freud nos assegura que, o indivíduo no grupo desse tipo, está sujeito à redução da sua capacidade mental. O seu cérebro é o estímulo coletivo.
            Esse fenômeno da capacidade mental reduzida, na medida em que está submetida à emoção e aos desejos punitivos, acelera as atividades grupais, no caso, das facções políticas e seitas religiosas, de acordo como foram pensadas pelo poder manipulador identificado como imperialismo endeusado pelo líder.
Essas forças superiores consciente de que o capitalismo entraria em crise prolongada e, sabendo que as forças de repressão e os governos desaparelhados pelo modelo neoliberal não imporiam a ordem, apelaram por resgatar a “psicologia das massas”  já experimentado pelo nazismo, para induzir parcelas da sociedade, compostas por indivíduos tomados pelas “pulsões de morte” para colocá-las na linha de frente das disputas. Estudiosos identificaram os sujeitos dessa reação, como “classes médias”, porque, por natureza já alimentam sentimentos de rejeição, preconceitos e atitudes egoístas. Para além de que os seus representantes estão em todos os poderes e postos de comando na sociedade.
            Para evitar uma reação organizada das forças contrárias, a estratégia foi de cooptar, desmoralizar e criminalizar lideranças que pudessem motivar a desinibição das massas, despertando nelas, por meio de estímulos positivos, um enfrentamento direto com a perspectiva de superação do capitalismo.
            A estratégia de estrutura perversa continua em vigor. Há alguns fatores que podemos  identificar que custam a se dissolver, como: a) ainda não se desfez totalmente a unidade inicial dos agrupamentos: empresariais, midiáticos, religiosos, político partidário, militar e também jurídico que hegemonizaram essa ofensiva; b) a militância de esquerda “desagrupada” das massas e, carente de lideranças, por tê-las contido em candidatos para a única batalha das disputas eleitorais. Sem lideranças não há incentivo para que as massas enfrentem as práticas neonazistas e agarrem a ideia do impeachment; c) por sua vez a crise econômica ainda não despertou os instintos incontroláveis de sobrevivência que farão as massas, por necessidade e, mesmo sem lideranças superarem espontaneamente a inibição coletiva d) o capital especulativo ainda encontra espaço para acumulação.  
            Por outro lado, as fragilidades do projeto neofascista, são bastante evidentes que poderão, se não houver um freio brusco, enfraquecê-lo muito rapidamente. Podemos destacar: a) a revelação de que a escolha de lideranças sem idoneidade foi equivocada e  possui mais defeitos do que aquelas as quais se propuseram  destruir. Ou seja, o mito como criatura vira-se contra o próprio criador e pode devorá-lo; b) os erros grosseiros na política econômica, que maltratam as massas que deveriam engrossar o contingente de defesa da vontade do líder; c) a escolha e reprodução de inimigos “indestrutíveis”, como os veículos de comunicação tradicionais; governadores bem posicionados e ex-aliados com admiração, bem como algumas esferas do poder judiciário; d) o armamento intencional de setores da população, que podem rejeitar as ordens da liderança perversa, quando esta nada mais tiver a oferecer e, como diz a letra do Hino da Internacional, na sua quinta estrofe; “Logo verá que essas balas, são para os nossos generais”.
            Em síntese, a crise conjuntural, pela primeira vez após o golpe de 1964, chega ao ponto mais critico e tenderá a forçar encaminhamentos nas próximas semanas, com duas perspectivas: a) um novo golpe de Estado, iniciando pelo ataque aos poderes Legislativo e Judiciário, tendo um alto custo para as forças armadas e, b) a aceleração do desgaste, político e moral do governo que será cada vez mais agravado pelo prolongamento da pandemia. Nenhuma das duas soluções trará alívio à depressão econômica, mas a vitória da primeira alternativa poderá satisfazer o desejo sanguinário das facções e milícias que anseiam por eliminar fisicamente inimigos, escancarando o instinto de perversão ainda não mostrado. Neste caso, as forças democráticas teremos de escolher, entre a morte pelas balas e pelo coronavírus ou a liberdade. É preciso mobilizar-se para salvar a dignidade do povo.
                                                                                              Ademar Bogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário