domingo, 27 de outubro de 2019

INFORMAÇÃO E AFIRMAÇÃO


 
Há leituras que acompanham as análises de conjuntura que recuperam com certos deslizes a metodologia de Karl Marx, feita na Introdução à critica da economia política de 1857/58 e, adaptam àquele entendimento ao gosto do conteúdo das ideias que querem afirmar. Atribuem a Marx e não a Hegel a ideia de que o real é resultante do pensamento e não o contrário. O método que consiste elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira pela qual o pensamento se apropria do concreto e o reproduz como concreto pensado, é a conclusão de Marx. Isto ocorre porque o concreto, antes de ser concreto pensando é concreto real.
Talvez a confusão de tudo esteja um pouco acima, quando, no mesmo parágrafo Marx considerou que, “o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é a unidade do diverso”. As determinações não são das ideias, mas do próprio movimento do concreto.
É de suma importância, em qualquer análise, entender a expressão conceitual do “processo”. O real concreto existe independente das ideias. Mesmo não sendo compreendido, ele está lá. As ideias cumprem o papel de abstraírem do real concreto os aspectos que o constituem, por isso, descobre-se que o concreto é o que é por causa das múltiplas determinações ocorridas e, por meio do estudo tornam-se o concreto pensado.
Mas a realidade pode ser mudada? Pode. O filósofo Tcheco,  Karel Kosik ao escrever a “dialética do concreto” apontou para isso, ao dizer que “a realidade pode ser mudada de modo revolucionário... só na medida em que nós mesmos produzimos a realidade e na medida em que saibamos que a realidade é produzida por nós”. Deveríamos aqui fazer uma longa discussão para considerar se o “concreto” tem a mesma composição da “realidade”, mas não é o caso. Apenas digamos que o concreto é a representação de um composto todo estruturado que segue no processo de superações constantes, enquanto que, a realidade, sem deixar de representar também o real concreto, inclui também os aspectos transitórios e passageiros, como por exemplo, a colocação das forças, as reações populares contra as políticas governamentais etc., que, num momento seguinte se desfazem ou mudam de comportamento.
De acordo com esse entendimento, se o concreto é algo dado pela estrutura, cujo processo segue determinada ordem como é o caso das leis tendenciais do capitalismo, a relação entre capital e o Estado capitalista etc., a realidade pode ser produzida de acordo com as reações das forças políticas e sociais, quando o próprio movimento das contradições reúne necessidades, ideias e perspectivas.
Há um elemento que está subentendido na análise de Marx, que parece sempre escapar: o princípio da totalidade. Na medida em que um aspecto particular começa a ser visualizado e, sobre ele jogam-se todas as energias, os demais aspectos da composição do real concreto e da realidade em geral, quase sempre, com maior relevância, deixam de colaborar para que de fato haja uma ascensão em direção à superação, pelas múltiplas determinações do real concreto, ou seja, pelas mudanças estruturais na economia e no funcionamento do Estado capitalista.
Há quem queira insinuar que, o reforço das particularidades e não da totalidade, na política, fazem parte do jogo das táticas, mas que, no fundo, todos têm em mente os objetivos estratégicos e, portanto, é apenas uma questão de interpretação.
Sem ter vinculo algum com os propósitos aqui demonstrados, apelamos para a Filosofia da Linguagem e destacamos a distinção feita por Ludwig Wittgenstein, em relação à diferença entre a “informação” e a “afirmação”.  A pergunta formulada por ele diz tudo: Qual é pois a diferença entre a informação ou afirmação, “cinco lajotas” e o comando “cinco lajotas!”? Como podemos ver, tanto na formulação quanto na expressão das ideias, a intencionalidade das palavras faz toda a diferença. Aproveitando do apoio destas duas categorias, façamos uma relação com os aspectos conjunturais.
Primeiramente tomemos os limites da tática da “informação”. Tendo em vista que os governantes e estrategistas da direita, inverteram o princípio maquiavélico aplicando o mal a “conta-gotas” e as medidas do bem, “de uma só vez”, ou seja, raramente; as “notícias” sobre as maldades, emitidas, seja pela direita ou pela esquerda, não passam de informações que vão sendo recebidas e esquecidas. Por se tratar de um aspecto apenas da realidade, como por exemplo, a reforma da previdência, na medida em que ela foi aprovada, deixou de ser noticiada e outro tema, “a reforma administrativa” passou a ser noticiado. Logo, o impacto criado sobre a consciência de cada um é semelhante à informação passiva recebida por qualquer indivíduo desinteressado sobre a informação de “cinco lajotas”. 
Por outro lado, quando a notícia traz consigo uma ordem, como essa que solicita que alguém traga “cinco lajotas!”, expressa uma convocação para que se proceda uma ação. Podemos considerar que temos a necessidade concreta que, por meio da ideia, ou seja, da abstração, desperta uma reação e o indivíduo age porque a informação tornou-se uma  afirmação.
De pronto, poderíamos sugestionar que, transportada para a política bastaria afirmar algo, que teríamos uma reação imediata. Se considerarmos que o ajudante de pedreiro age quando ouve a ordem de “cinco lajotas!”, é porque ele está organizado para fazer aquela atividade indicada, mas, na política, o cidadão comum não está. Então a ordem cai no vazio. Por outro lado, temos uma segunda limitação que é de onde vem a voz ouvida. A ordem de “cinco lajotas!” emitida por alguém, fora do canteiro de obras, não causa reação alguma. E, uma terceira limitação, em se tratando de coletividades e não de indivíduos, nem todas as “ordens” motivam a todos; como esta de “cinco lajotas!”, somente mobiliza o servente, enquanto que os demais trabalhadores daquela obra, nada farão com a ordem dada.
De maneira geral, o que temos em nossa frente são alguns limites: primeiro, o recebimento de informação corriqueira que não desencadeia nenhuma reação organizativa. Segundo, a prática de contestar uma “afirmação” de cada vez  de acordo como aparecem e assim que elas deixam de ser informadas, caem no esquecimento. Terceiro, complementa a prática de pegar a afirmação em particular, a incapacidade de relacioná-la, pela antevisão do que virá pela frente nas políticas encadeadas, que o capital e o Estado impõem; dessa forma quem dita os temas a entrarem na conjuntura é a classe dominante. Em quarto lugar, as vozes que ordenam “cinco lajotas!” não são reconhecidas, porque não apontam uma sequência abrangente e estratégica de superação. Quinto, não tendo claro o que propor, misturam-se sentimentos de afeto e de saudade como motivações para o retorno ao que foi desconstruído.
O que significa a política do afeto e da saudade? Grosso modo é a reunião da maioria das forças em torno da reinvindicação “Lula livre”, apenas.  Sem desprezarmos a importância simbólica do que Lula representa, nas ideias que passeiam sobre o concreto estrutural e a realidade conjuntural é o desejo da volta ao governo neo-desenvolvimentista e, portanto, mais capitalismo. Não há um horizonte possível para o socialismo. A palavra de ordem, “Lula livre”, para além de ser uma ordem que atinge limitadamente a população, facilita para que a classe dominante, pela tática de impor uma medida de cada vez, reformule as políticas que deseja.
A falta de amplitude da visão estratégica leva a um desgaste e perda de esforços fundamentais, contabilizando, no calendário histórico, um novo bloco de derrotas das “insurreições sociais”. Para quem, pelo estudo conhece a História da insurreição alemã de 1919, facilmente perceberá que o que ocorreu no Equador e agora ocorre no Chile, só não se transformam em insurreições revolucionárias, porque não se constituiu a tempo o comando revolucionário com autoridade para emitirem a ordem correta. Quando essa onda chegar ao Brasil, lembremo-nos das palavras de Bertoldo Brecht: “É preciso assumir o comando”. Sem isto, os levantes são como o rio que transborda e logo tende a voltar a descansar no próprio leito.
                                                                      
                                                                     Ademar Bogo                                                                       
   
   

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