domingo, 3 de novembro de 2019

ALERTAS CONCEITUAIS


                O italiano Antônio Gramsci, em tempos de crise, sempre volta ao recinto político para, com suas reflexões, questionar os rumos dos processos. Sua criatividade intelectual é admirável no sentido de reformular e colocar “alertas conceituais” em ordem mais abrangente.
            Um primeiro alerta é o de que na política a classe se estabelece por meio de duas formas: dominante e dirigente. Quando essas duas formas não andam juntas é porque, dentro da classe desfez-se o consenso. Nesse caso, se a classe dominante perdeu o consenso, deixa de ser “dirigente”, mas não deixa de ser “dominante”. Neste caso, para manter-se no poder utiliza ou se prepara para utilizar forças e medidas repressivas.
            Esse desfazimento de consenso há algum tempo que viemos presenciando no Brasil e em alguns países vizinhos. O neoliberalismo, como modelo de economia política em sua fase superior, para satisfazer os interesses do capital ataca os direitos sociais, a burocracia estatal e a soberania nacional. No entanto, o governo atual fez a inversão das expectativas de classe da elite e da classe média, em busca de resultados rápidos, levou à frustração e a quebra do consenso entre eles. Nesse sentido o governo antes tido como a expressão do ajuntamento das forças para composição da hegemonia política, está sendo deixado a mercê da possível fúria das revoltas populares como ocorre nos países vizinhos. Os capitalistas agarram-se às exigências rentistas para assim exercerem em particular a “dominação econômica” e o governo, agarra-se às ameaças de reinventar o Ato Institucional número 5 e piorar a lei contra o terrorismo para manter-se no poder por meio da coerção política.
            Há, no entanto, um segundo alerta que Gramsci oferece na forma de conceitos classificadores das sociedades “ocidentais” e “orientais” e que, para cada uma delas estimou que haveria a “contrariedade” na aplicação das táticas de ação, denominadas de “guerra de posição” e “guerra de movimento”.
            Segundo Gramsci, as “sociedades ocidentais”, portanto, europeias haviam alcançado um certo patamar de “equilíbrio” entre a sociedade civil e o Estado. Diante desse equilíbrio as lutas girariam em torno dos aparelhos privados de hegemonia, pois a direção política seria constituída por consenso. Essa caracterização indicaria que, para esses países a tática a ser empregada seria a “guerra de posição”, compreendida como processo de conquistas progressivas no interior da sociedade civil.
            De outro modo, as “sociedades orientais”, por não terem alcançado ainda o desenvolvimento da sociedade civil, o Estado praticamente responsabiliza-se por tudo. As lutas tenderiam a ser de explosão repentinas e, nesse caso, a tática correspondente a essa reação poderia ser chamada de “guerra de movimento”, cujo principal objetivo é conquistar o poder por intermédio do confronto.
            A questão incômoda, dispensando os critérios geográficos, nos cobra a descobrir em que tipo de sociedade, juntamente com os demais países latino-americanos nos enquadramos? A resposta teórica poderia fazer algum sentido, mas o próprio Gramsci indica em seu texto, “Maquiavel, a política e o Estado Moderno”, que, na política, além das guerras de movimento e de posição, existem outras formas. Portanto, o alerta indica que, para qualquer tipo de sociedade, há que escolher as diferentes formas de luta. Ele próprio citou o exemplo da Índia onde Gandhi utilizara três “tipos de guerra”, transmutando-se de uma para outro: de movimento, posição e subterrânea.
            O que vemos nas reações desencadeadas em diversos países é a utilização da “tática de movimento” que, por ocasião das injustiças governamentais, carentes de capacidade e consenso para garantirem a “direção política”, a população reage explosivamente. Não chegam ser reações estratégicas devido à pouca clareza dos objetivos estruturais que se fazem ausentes.
            Para compreendermos qual será o desfecho desses processos vizinhos devemos observar o terceiro alerta que Gramsci nos proporciona, que é o da organização política. Então diz ele: “Estabelecido o princípio de que existem dirigidos e dirigentes, governantes e governados, verifica-se que os “partidos” são até agora o modo mais adequado para aperfeiçoar os dirigentes e a capacidade de direção...”. Por que? Segundo o mesmo, a política é a ação permanente e dá origem a organizações permanentes.
            Gramsci então nos coloca dois dilemas, que obrigatoriamente devem ser resolvidos ou não se romperá a posição de dominação assemelhada, presente em todo o continente. O primeiro é que na contemporaneidade, na medida em que a institucionalidade passou a ser o espaço para a construção dos consensos políticos, no máximo encontramos ali duas posições denominadas de situação e oposição e, por causa disso, os partidos, em geral, foram aniquilados, existem apenas como siglas. Alguns se assemelham às antigas facções que se apresentam como a parte que luta contra o todo.
            O segundo dilema situa-se nas reações populares; elas não são permanentes e, portanto, não conseguem constituir expressões políticas. Por que não conseguem? Porque não há a estrutura partidária permanente. Esse vácuo que separa as mobilizações dos resultados, se deve, em grande medida, à falta de organismos, conforme disse Gramsci, de “aparelhos privados” para que de fato se possa valorizar as ações políticas.
            Para que isso aconteça, talvez devêssemos acrescentar um quarto alerta que dependeria de responder a pergunta sobre: que objetivo queremos alcançar com as lutas políticas de “posição” e de “movimento”? Se é para reavivar o capitalismo, os esforços empregados estão na direção correta, basta repeti-los como veio sendo: na organização de mobilizações, disputas eleitorais e governos progressistas. Caso o objetivo vise a superação do capitalismo, os esforços devem ser maiores, mais conscientes e mais organizados.
            A espontaneidade nas reações populares é fundamental para iniciar um processo de transformação, mas elas, ao mesmo tempo em que amedrontam também morrem, porque já nascem com os limites de baixa expectativa de vida, por isso é que, mesmo sem consenso e com governos com baixa popularidade, a classe dominante quase sempre continua com dominante. Só há um caminho: a organização.
                                                                                  Ademar Bogo  

Nenhum comentário:

Postar um comentário