Parte de nossas gerações viventes tivemos o privilégio de vivermos as passagens combinadas de um milênio para outro, terminar e iniciar um século e, agora já alcançamos um quarto do século novo, mas o que de novo fizemos neste novo período?
As retrospectivas analíticas nos
revelam terríveis continuações como a miséria, a violência, o desmatamento, a concentração
da terra, a poluição do ar, a contaminação das águas, sem contar com o
agravamento de duas coisas totalmente incontroláveis: a concentração da riqueza
e a brutalidade das catástrofes naturais provocadas pelas ações artificiais
humanas.
Dentre todas as decadências capitalistas
que podemos apresentar com longos parágrafos, é na impotência da política que
se concentram as maiores fraquezas. Há pelo menos quarenta anos iniciamos a
estratégia legalista de conquistar o poder por dentro da ordem, respeitando o
estado de direito. Para que isso fosse possível, além de cativar os antigos
inimigos, foi preciso mudar a linguagem radical; as formas de tratamento;
anistiar os golpistas e torturadores do regime totalitário anterior e, garantir
a ilusória defesa da incontrolável democracia representativa. As inflamáveis
campanhas eleitorais firmaram-se na liberdade de constituir alianças com todas
as bandeiras disponíveis no campo partidário e, no final de tudo, o respeito
aos resultados sempre foi um princípio a respeitar. A voz das urnas veio a ser
a voz da democracia, até que um dia, as forças de direita, cansadas de serem
imitadas, pariram, talvez a principal novidade deste quarto de século: a nova
extrema-direita, golpista e antidemocrática. E, tal qual um camponês descalço
em um quintal varrido, que não encontra sequer um graveto para espantar um
animal peçonhento, ficamos nós sem poder usar as mãos e nem os pés para
enfrentar as ofensivas dessas parcelas negacionistas.
Qual é o diagnóstico político
possível de ser feito? Se a estratégia conformista, baseada no mal menor não
impediu que ressurgisse o mal maior, significa que algo na frágil muralha
democrática foi mal construído. Talvez o equívoco esteja situado no campo, não
do possível, mas da opção preferível imediata, como apontou o filósofo
Aristóteles. “Pois o mal menor pode ser visto em comparação com o mal maior
como um bem, uma vez que este mal menor é preferível ao maior, e tudo o que é
preferível é bom".[1] O problema é que, o mal
maior ao ser evitado na política não desaparece, ele se conserva e espera o
momento para engolir o mal menor e punir todos os seus defensores.
No aspecto político organizativo, de
nosso lado não surgiu nenhuma inovação. Os partidos, as centrais sindicais e os
movimentos populares, mais significativos já completam quatro décadas de idade.
O cansaço e a fraqueza das ideias e argumentos, impedem que as táticas
ofensivas sejam recriadas, como também as forças combativas sejam renovadas. Nos
25 anos deste século, pelo menos 16 deles foram governados pelas forças de
esquerda e associadas. No entanto, nesse
período, o agronegócio fez uma revolução estrutural no campo brasileiro; as
miliciais criaram um Estado paralelo nos territórios urbanos; o capital passou
da hegemonia produtiva e financeira industrial para a forma especulativa
intervencionista e controladora das taxas de juros e da dívida pública; a
tecnologia nas comunicações evoluiu da máquina de datilografia para a
inteligência artificial; as campanhas eleitorais deixaram para trás as
pichações em muros, panfletagens massivas, debates radiofônicos e televisionados
e avançaram para os disparos de mensagens com robôs; o telefone público do
orelhão com fichas, foi superado pela rede social que coloca na palma de cada
mão das pessoas de todas as classes um smartfone; os drones voam como vagalumes
investigando e registrando qualquer movimento ou aglomeração etc. Enquanto nós
ficamos repetindo conceitos como: trabalho de base; jornada de lutas;
calendários de ações; pauta de reivindicação; audiência com o governo; doação
de alimentos; desapropriação; créditos; eleição de parlamentares e tantas
outras expressões que já não agitam as massas nem ofendem os capitalistas, eles,
sem nada disso, mobilizam e mantém informados e esporadicamente mobilizados
pelo menos 30% dos eleitores do país. Em síntese, (desculpe o trivial exemplo),
enquanto os inimigos armam as jogadas, nós há anos repetimos a mesma tática de
jogo, de cruzar bolas altas na área, sem nenhum centroavante para cabecear.
Podemos concluir que no final desse
quarto de século, nos deparamos com dois limites. O primeiro diz respeito à
morte das reações espontâneas das massas. Se deixaram de reagir ou de se
oferecerem para a luta, para daí surgirem os movimentos populares, que já não
se vê surgir, é porque além da falta de convocações, algo de muito terrível foi
feito contra o senso comum crítico no interior desses grandes contingentes
populacionais. Teria o assistencialismo governamental corroído a noção dos
direitos e acostumados os pobres cooptados a esperar que alguém ofereça
soluções para os problemas. Voltemos à estratégia do preferível: não é
oferecendo o mal menor para as massas famintas que se impede o mal maior de
continuarem na miséria. Não estaria na hora de perceber que o Estado é inimigo
dos trabalhadores, tanto quando reprime, quanto quando oferece míseros recursos
por meio de políticas públicas e por qualquer desrespeito às normas ameaça interromper
os benefícios?
O segundo limite está sendo sustentado pela anulação
daquilo que sempre se chamou de esquerda, e que, depois de ganhar eleições e
governar, perdeu a natureza histórica tornando-se “situação”. Esse papel sempre
reservado na história para as forças de direita. Qual é a diferença? Enquanto ser
de esquerda é ser de luta, indo para a situação a ordem é conciliar, fazer
acertos com a oposição. Ou não foi isso que aconteceu com as forças de direita
neste quarto de século? Bastou perder as eleições e tornar-se oposição ao
governo que, com a identificação de extrema-direita, passou a constituir um movimento
de massas para lutar.
Se
tradicionalmente as revoltas populares foram direcionadas contra os patrões e
as autoridades governamentais atuantes na estruturas estatais, com os avanços
tecnológicos, o patronato deixou de ser um ente simbólico da exploração e, com
as vitórias eleitorais, a esquerda, ao tornar-se situação, fez com que parte
das massas entendesse que não há necessidade de lutar porque tudo lhes será
dado, enquanto a outra parte, cooptada pelas seitas religiosas e também
descontentes com a governabilidade por acreditar que todos os políticos são “farinha
do mesmo saco”, se mantém na oposição, contestando e votando contra o governo.
Isso
tudo é o que temos acumulado nesse primeiro quarto de século, mas o que devemos
fazer para dinamizar o novo período que nos levará ao meio do século XXI? Para
uns continua sendo a estratégia da governabilidade para criar leis que garantam
a formação sólida de uma base econômica capaz de colocar o Brasil entre as
grandes potências capitalistas. No entanto, essa posição “preferível” não
avalia a veemência destrutiva do capital que, seguindo nesse ritmo em 2050,
muito pouco poderá ser feito para salvar o planeta da barbárie.
Se
quisermos uma representação do estado lastimável que politicamente vivemos
neste final do primeiro quarto de século é que os capitalistas avançam na
velocidade da luz e nós na velocidade da fumaça. Portanto, a questão é como barrá-los
e derrotá-los para impedir que levem à frente a revolução liberal ainda inconclusa?
Com as formas e práticas organizativas que temos não há esperança alguma que
algo de novo venha a ser feito.
Podemos
apontar que a estratégia pacifista levou ao saturamento do crescimento das
lutas pela inoperância e repetição das táticas; insistir nela é um grande equívoco.
Se com quase duas décadas de governo “progressista” não se conseguiu impor
limite algum ao capital, é sinal que é preciso enfrentar os desafios com
táticas insurrecionais, para isso precisamos de organizações corajosas,
confiáveis e que se proponha a convocar e promover a desobediência civil contra
todas as leis que cerceiam os direitos sociais.
Apontamos
que as estabilidades econômicas e políticas sonhadas não são aliadas das forças
revolucionárias. Defender as transformações sociais com o crescimento da
economia, arcabouço fiscal e aumento do salário-mínimo é sorrir sem dentadura
para o capital. É na instabilidade que as forças se enfrentam e se renovam. O
pacifismo e a defensiva favorecem as classes dominantes. Logo, não há mais
bases nem militantes capazes para se fazer “trabalho de base” à moda antiga, é
preciso apostar em convocações massivas para contestar a moral do direito de
propriedade sem limite; enfrentar e destituir o direito de acumular capital e
riqueza às custas da miséria e impor-se contra a ordem jurídica que legitima a
sociedade desigual.
É
evidente que a conjuntura muda quando mudam os métodos de atuação e, estes
mudam quando as forças organizadas mudarem o comportamento. O excesso de
respeito educou as organizações a se enquadrarem à ordem capitalista. É tempo
de começar a exercitar as características da ordem socialista pondo em pauta a
criação de novas formas de organização.
Ademar
Bogo
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