segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

UM QUARTO DO SÉCULO

            Parte de nossas gerações viventes tivemos o privilégio de vivermos as passagens combinadas de um milênio para outro, terminar e iniciar um século e, agora já alcançamos um quarto do século novo, mas o que de novo fizemos neste novo período?

            As retrospectivas analíticas nos revelam terríveis continuações como a miséria, a violência, o desmatamento, a concentração da terra, a poluição do ar, a contaminação das águas, sem contar com o agravamento de duas coisas totalmente incontroláveis: a concentração da riqueza e a brutalidade das catástrofes naturais provocadas pelas ações artificiais humanas.

            Dentre todas as decadências capitalistas que podemos apresentar com longos parágrafos, é na impotência da política que se concentram as maiores fraquezas. Há pelo menos quarenta anos iniciamos a estratégia legalista de conquistar o poder por dentro da ordem, respeitando o estado de direito. Para que isso fosse possível, além de cativar os antigos inimigos, foi preciso mudar a linguagem radical; as formas de tratamento; anistiar os golpistas e torturadores do regime totalitário anterior e, garantir a ilusória defesa da incontrolável democracia representativa. As inflamáveis campanhas eleitorais firmaram-se na liberdade de constituir alianças com todas as bandeiras disponíveis no campo partidário e, no final de tudo, o respeito aos resultados sempre foi um princípio a respeitar. A voz das urnas veio a ser a voz da democracia, até que um dia, as forças de direita, cansadas de serem imitadas, pariram, talvez a principal novidade deste quarto de século: a nova extrema-direita, golpista e antidemocrática. E, tal qual um camponês descalço em um quintal varrido, que não encontra sequer um graveto para espantar um animal peçonhento, ficamos nós sem poder usar as mãos e nem os pés para enfrentar as ofensivas dessas parcelas negacionistas.  

            Qual é o diagnóstico político possível de ser feito? Se a estratégia conformista, baseada no mal menor não impediu que ressurgisse o mal maior, significa que algo na frágil muralha democrática foi mal construído. Talvez o equívoco esteja situado no campo, não do possível, mas da opção preferível imediata, como apontou o filósofo Aristóteles. “Pois o mal menor pode ser visto em comparação com o mal maior como um bem, uma vez que este mal menor é preferível ao maior, e tudo o que é preferível é bom".[1] O problema é que, o mal maior ao ser evitado na política não desaparece, ele se conserva e espera o momento para engolir o mal menor e punir todos os seus defensores.

            No aspecto político organizativo, de nosso lado não surgiu nenhuma inovação. Os partidos, as centrais sindicais e os movimentos populares, mais significativos já completam quatro décadas de idade. O cansaço e a fraqueza das ideias e argumentos, impedem que as táticas ofensivas sejam recriadas, como também as forças combativas sejam renovadas. Nos 25 anos deste século, pelo menos 16 deles foram governados pelas forças de esquerda e associadas. No entanto,  nesse período, o agronegócio fez uma revolução estrutural no campo brasileiro; as miliciais criaram um Estado paralelo nos territórios urbanos; o capital passou da hegemonia produtiva e financeira industrial para a forma especulativa intervencionista e controladora das taxas de juros e da dívida pública; a tecnologia nas comunicações evoluiu da máquina de datilografia para a inteligência artificial; as campanhas eleitorais deixaram para trás as pichações em muros, panfletagens massivas, debates radiofônicos e televisionados e avançaram para os disparos de mensagens com robôs; o telefone público do orelhão com fichas, foi superado pela rede social que coloca na palma de cada mão das pessoas de todas as classes um smartfone; os drones voam como vagalumes investigando e registrando qualquer movimento ou aglomeração etc. Enquanto nós ficamos repetindo conceitos como: trabalho de base; jornada de lutas; calendários de ações; pauta de reivindicação; audiência com o governo; doação de alimentos; desapropriação; créditos; eleição de parlamentares e tantas outras expressões que já não agitam as massas nem ofendem os capitalistas, eles, sem nada disso, mobilizam e mantém informados e esporadicamente mobilizados pelo menos 30% dos eleitores do país. Em síntese, (desculpe o trivial exemplo), enquanto os inimigos armam as jogadas, nós há anos repetimos a mesma tática de jogo, de cruzar bolas altas na área, sem nenhum centroavante para cabecear.

            Podemos concluir que no final desse quarto de século, nos deparamos com dois limites. O primeiro diz respeito à morte das reações espontâneas das massas. Se deixaram de reagir ou de se oferecerem para a luta, para daí surgirem os movimentos populares, que já não se vê surgir, é porque além da falta de convocações, algo de muito terrível foi feito contra o senso comum crítico no interior desses grandes contingentes populacionais. Teria o assistencialismo governamental corroído a noção dos direitos e acostumados os pobres cooptados a esperar que alguém ofereça soluções para os problemas. Voltemos à estratégia do preferível: não é oferecendo o mal menor para as massas famintas que se impede o mal maior de continuarem na miséria. Não estaria na hora de perceber que o Estado é inimigo dos trabalhadores, tanto quando reprime, quanto quando oferece míseros recursos por meio de políticas públicas e por qualquer desrespeito às normas ameaça interromper os benefícios?

 O segundo limite está sendo sustentado pela anulação daquilo que sempre se chamou de esquerda, e que, depois de ganhar eleições e governar, perdeu a natureza histórica tornando-se “situação”. Esse papel sempre reservado na história para as forças de direita. Qual é a diferença? Enquanto ser de esquerda é ser de luta, indo para a situação a ordem é conciliar, fazer acertos com a oposição. Ou não foi isso que aconteceu com as forças de direita neste quarto de século? Bastou perder as eleições e tornar-se oposição ao governo que, com a identificação de extrema-direita, passou a constituir um movimento de massas para lutar.    

Se tradicionalmente as revoltas populares foram direcionadas contra os patrões e as autoridades governamentais atuantes na estruturas estatais, com os avanços tecnológicos, o patronato deixou de ser um ente simbólico da exploração e, com as vitórias eleitorais, a esquerda, ao tornar-se situação, fez com que parte das massas entendesse que não há necessidade de lutar porque tudo lhes será dado, enquanto a outra parte, cooptada pelas seitas religiosas e também descontentes com a governabilidade por acreditar que todos os políticos são “farinha do mesmo saco”, se mantém na oposição, contestando e votando contra o governo.

Isso tudo é o que temos acumulado nesse primeiro quarto de século, mas o que devemos fazer para dinamizar o novo período que nos levará ao meio do século XXI? Para uns continua sendo a estratégia da governabilidade para criar leis que garantam a formação sólida de uma base econômica capaz de colocar o Brasil entre as grandes potências capitalistas. No entanto, essa posição “preferível” não avalia a veemência destrutiva do capital que, seguindo nesse ritmo em 2050, muito pouco poderá ser feito para salvar o planeta da barbárie.

Se quisermos uma representação do estado lastimável que politicamente vivemos neste final do primeiro quarto de século é que os capitalistas avançam na velocidade da luz e nós na velocidade da fumaça. Portanto, a questão é como barrá-los e derrotá-los para impedir que levem à frente a revolução liberal ainda inconclusa? Com as formas e práticas organizativas que temos não há esperança alguma que algo de novo venha a ser feito.

Podemos apontar que a estratégia pacifista levou ao saturamento do crescimento das lutas pela inoperância e repetição das táticas; insistir nela é um grande equívoco. Se com quase duas décadas de governo “progressista” não se conseguiu impor limite algum ao capital, é sinal que é preciso enfrentar os desafios com táticas insurrecionais, para isso precisamos de organizações corajosas, confiáveis e que se proponha a convocar e promover a desobediência civil contra todas as leis que cerceiam os direitos sociais.  

Apontamos que as estabilidades econômicas e políticas sonhadas não são aliadas das forças revolucionárias. Defender as transformações sociais com o crescimento da economia, arcabouço fiscal e aumento do salário-mínimo é sorrir sem dentadura para o capital. É na instabilidade que as forças se enfrentam e se renovam. O pacifismo e a defensiva favorecem as classes dominantes. Logo, não há mais bases nem militantes capazes para se fazer “trabalho de base” à moda antiga, é preciso apostar em convocações massivas para contestar a moral do direito de propriedade sem limite; enfrentar e destituir o direito de acumular capital e riqueza às custas da miséria e impor-se contra a ordem jurídica que legitima a sociedade desigual.

É evidente que a conjuntura muda quando mudam os métodos de atuação e, estes mudam quando as forças organizadas mudarem o comportamento. O excesso de respeito educou as organizações a se enquadrarem à ordem capitalista. É tempo de começar a exercitar as características da ordem socialista pondo em pauta a criação de novas formas de organização.

                                                                       Ademar Bogo



[1] Aristóteles. Ética a Nicômaco.

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