O
filósofo Leandro Konder com sua intuição fantástica expressou um dia que: “Caso
alguém possuísse toda a água do mundo teria em suas mãos o destino de todos os
homens”.[1] Em nome do tratamento da
água, as empresas já controlam grandes mananciais, fazendo bilhões de pessoas
no mundo terem como único acesso a água pela torneira da cozinha de suas casas.
Se essas mesmas empresas tomassem a decisão de colocarem um produto alucinógeno
atingiriam num só período, pelo menos, a metade da população mundial. No Brasil
84,9% das pessoas dependem das empresas controladoras do abastecimento de água
nas cidades. Este é o mundo sensível em que conhecemos.
De modo semelhante se
substituíssemos no enunciado acima e, ao invés de água colocássemos o
substantivo da “tecnologia digital”, chegaríamos á mesma conclusão: “Caso
alguém vier a controlar a tecnologia digital do mundo, terá o destino de todas
as pessoas em suas mãos”. No entanto, há uma diferença entre as duas
comparações, se na primeira as pessoas ainda podem recorrer a algumas
alternativas, como o de aparar a água das chuvas, na segunda não há
possibilidade alguma, pois a virtualidade já se coloca como um espírito
superior que entra em cada cérebro por meio de um aparelho digital ou monitora
os movimentos pessoais através da captação de imagens, calor corporal, íris dos
olhos, chip implantado no corpo etc. Este é o mundo inteligível que ainda não
conhecemos.
Quando
retornamos os textos iniciais do materialismo histórico, encontramos bons indicadores
para entendermos os sentidos das transformações. Marx, nos seus manuscritos já
havia percebido: “Que a vida física e mental do homem interconectada com a
natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo
mesma, pois o homem é uma parte da natureza”.[2] Na sequência vamos encontrar a importância do
trabalho como capacidade objetiva de transformação das naturezas orgânicas e
inorgânicas, por isso, transformamos e nos transformamos.
Se
a Revolução Industrial do século XVIII empenhou-se em extrair da natureza a
matéria prima para produzir mercadorias, na atualidade com a continuação
daquela revolução, com requintes tecnológicos eletrônicos e virtuais, a matéria
prima é a própria natureza humana o objeto de transformação é o seu próprio
modo de ser e de pensar.
Se
por um lado não devemos, em nome dos elevados riscos, incorrer no negacionismo
de posicionar-nos contra os avanços tecnológicos, reproduzindo o amedrontamento
das destruições metodológicas do passado, por outro, devemos encarar com
naturalidade toda a evolução. Se o Homo sapiens inventou o machado de pedra,
todos os objetos cortantes desde a serra até a gilete e, mais recentemente os
bisturis manuseados por robôs para precisarem ainda mais as intervenções cirúrgicas,
descendem daquela descoberta da pedra cortante. O mesmo ocorre com a escrita.
Para guardar informações, desde o início as pessoas descobriram que não tinham capacidade
mental para guardarem na memória muitas informações ao mesmo tempo, por isso,
os registros serviam de arquivos e documentos. Há poucas décadas a mudança praticamente
ontológica veio para ampliar o potencial humano, a máquina de datilografia foi
superada pelo computador e a memória deste último se aproximou muito do que faz
o cérebro humano; com um simples toque é exposto em uma tela tudo o que foi
informado a qualquer tempo anterior. Nessa mesma continuação temos agora o
desafio de aprendermos a lidar com esse instrumento de trabalho que é a “Inteligência
artificial”.
Há,
porém, um terceiro lado desse triângulo que é o poder de controle tecnológico
cada vez mais concentrado, pois, diferentemente da água que possui lagos e
fontes esse situa-se no espaço e o controle se dá, no mínimo, por satélites.
Por isso não podemos ver a tecnologia virtual como “ciência aplicada” apenas. Sob
o comando de poucos controladores capitalistas ela é dominação geopolítica;
espionagem econômica, militar e social; exacerbação de divergências e formação
de consensos instantâneos sobre temas, leis e posicionamentos coletivos. Em
síntese, as pessoas serão teleguiadas pelos algoritmos e aceitarão as soluções
para as necessidades pessoais acessando aplicativos criados por esse mundo
inteligível.
Todas
as pessoas do mundo deixarão, muito em breve, de serem anônimas. Os dados pessoais,
características físicas, impressões digitais etc., estarão no Banco de dados de
comum acesso. Aparentemente poderíamos nos dar por satisfeitos, pois, chegamos
ao ponto de constituirmos uma verdadeira “comunidade universal”, sem divisas nacionais
nem impedimentos para os relacionamentos. Nos aspectos dos controles, o próprio
e propalado “livre-arbítrio” poderá ser limitado, ao pesquisar o algoritmo
convencerá o cliente a mudar de opção. Se houvesse o mesmo interesse muitas
operações criminosas poderiam ser abortadas antes de ocorrerem, bastaria um
simples envio de um robô programado para enfrentar o mundo do crime.
Evidentemente
que se levarmos em conta tudo o que já se disse sobre o assunto da tecnologia
virtual, ficaríamos meses alinhando as contribuições e os perigos. Não vem ao
caso, o que importa é fixarmos o nosso debate em torno da materialidade de
algumas contradições e perceber que, assim como, embora já tenhamos acesso ás
cirurgias robotizadas, o bisturi manual, a gilete e o machado, como
instrumentos de corte, não foram aposentados. Isso é para entendermos que,
embora a violência possa ser combatida com drones e robôs, as armas brancas e
de fogo continuarão sendo utilizadas, isto porque, o coronel que controlava, no
passado, o açude da água, em certos lugares ainda continua, em outros, evoluiu
para o monopólio da empresa de abastecimento. O mesmo ocorre com a violência, o
matador de aluguel ainda permanece, mas ganhou ainda maior expressão, a milicia
do crime com a organização do poder paralelo. A inteligência artificial terá
interesse em combater o crime organizado?
Uma
segunda preocupação se reporta à política. Diante de tamanhas e generalizadas
interferências qual será de fato a importância do poder político? Quem de fato
tomará as decisões, serão os governantes ou proprietários das big tech que
infestarão as redes sociais de informações mentirosas, fazendo os mandatários
das nações a assumirem que voltam atrás, anulando decisões que jamais tomaram,
como ocorreu recentemente com a normativa das transações no Pix. Qual será portanto,
o papel dos partidos políticos e do próprio Estado com os seus órgãos de
informação obsoletos preparados apenas para fixarem comunistas?
Num
terceiro bloco de complexidades teremos a política econômica. Sabemos que desde
a origem o capital foi ampliando as suas formas, passou de produtivo, para
financeiro, depois para especulativo e, agora, talvez estejamos entrando em
outra forma que ainda deverá ser nomeada de “capital inteligível” que é este da
reprodução e acumulação através da informação, das chantagens e mentiras
produzidas. Como enfrentar imaterialidade capitalista, ausente fisicamente do
território ou nação nos quais provoca os ataques?
Por
fim, sem desprezar as demais complexidades que se formarão na educação,
comércio, cultura etc., as futuras gerações terão de enfrentar o problema do
controle extraterrestre. O que estamos vendo são pequenos sinais principiados
pela instalação de satélites, inalcançáveis com mobilizações de massa, mas a
possibilidade de criar cidades e indústrias no espaço, iniciando pela
exploração de minérios em outros planetas, veremos de fato o mundo ser dividido
em dois: sensível e inteligível, como intuiu Platão há mais de trezentos anos
antes de Cristo que, em certos aspectos misturam a ideia com a forma e, em
outros, apenas as ideias, pois, tendo os seus proprietários ido morar no
espaço, impõem de cima para baixo, os interesses desses poucos selecionados capitalistas.
É
nesse sentido que vimos a questão da violência acima. Se no mundo sensível
redutos populacionais ou regiões desérticas não forem úteis ao capital, não
haverá interesse em promover interferências, com isso, os aterros sanitários
com lixo espacial poderão ser criados em campos abertos ou simplesmente jogados
nas águas dos oceanos.
É
na ampliação do entendimento dessa última fronteira tecnológica que devemos
concentrar os estudos e os debates. Seguindo o princípio de que “quem controlar
a tecnologia da inteligência artificial controlará a humanidade” é que a luta
pelo socialismo se torna ainda mais urgente. Precisamos romper com o comodismo
e os acomodados que estão preocupados apenas com a interferência das big tech
nas eleições presidenciais de 2026, esquecendo todo o comprometimento do futuro.
Precisamos agir antes que os capitalistas criem suas moradas no mundo inteligível,
pois se, sobre a terra já é difícil alcançá-los, muito menos será se mudarem
para outro planeta.
É
tempo de reação e não de amedrontamento. É no controle dos instrumentos de
trabalho, formados com elevadas tecnologias e do capital, que reside o poder e
não simplesmente no interior do Estado. São as necessidades materiais e não as
satisfações virtuais que mobilizam as pessoas. No entanto, vence quem tiver a
capacidade de invertê-las como prioridade.
Ademar
Bogo
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