domingo, 24 de janeiro de 2021

OBRIGATORIEDADE E LUTA

        Vivemos em uma sociedade em permanente conflito entre a obrigatoriedade e o desrespeito. Se a primeira nos coage o segundo nos tenta a agirmos inversamente. Há, no entanto, pelo menos duas linhas de obrigações coercitivas: as que constam em leis e, as recomendações das normas morais.

            Freud ao tratar da civilização percebeu que há pessoas defensoras da mesma e outras que a hostilizam porque precisam renunciar aos próprios instintos em respeito às proibições postas. O raciocínio do autor de “O futuro de uma ilusão” sugere a imaginar que, se cada indivíduo pudesse tomar a mulher que quisesse como objeto sexual; matar sem hesitação o rival ou qualquer pessoa que se colocasse no caminho que leva à pessoa amada, e se, também se pudesse tomar qualquer dos pertences de outro sem pedir licença, que sucessão de satisfações seria a vida!

             Por outro lado, se assim ocorre-se de imediato perceberíamos que todas as pessoas com as quais convivemos teriam os mesmos desejos e poderiam fazer conosco o mesmo feito por nós e, viver seria algo muito perigoso como já foi no passado quando a humanidade ainda vivia no “estado de natureza” e lá imperava a “guerra de todos contra todos”, conforme descreveu Thomas Hobbes.

            O filósofo Aristóteles não ignorou o tema da obrigatoriedade, mas a sua argumentação se ateve à classe dos “atos justos”; eles sempre estão em consonância com alguma virtude e também prescritos pelas leis. Aqui nos deparamos com mais uma restrição aos instintos, isto porque, não basta seguir a prescrição da lei, mas considerar que, se ela “não permite expressamente, ela proíbe”.

            Aristóteles ilustra a sua explicação com o suicídio. Poderíamos cada um de nós pensarmos dessa forma: ‘a lei pode me proibir de matar o meu semelhante, mas não pode proibir que eu mate a mim mesmo.’ A resposta já foi dada acima: se a lei não autoriza, mesmo sem expressar por escrito, ela proíbe. O raciocínio é bastante simples: se alguém viola a lei, causa voluntariamente um crime, porque ele conhece tanto a pessoa quanto o instrumento usado para causar o dano a outrem e por isso age injustamente.O mesmo princípio da voluntariedade é usado para avaliar um indivíduo que conhece a si mesmo, mas se apunhala atentando contra a própria vida. Como a lei não permite a prática desse ato, o sujeito age injustamente.

            Poderíamos argumentar: ‘mas o indivíduo é livre e pode fazer de sua vida o que bem quiser.’ Se assim argumentássemos estaríamos deixando de lado o principal elemento da análise. Qualquer indivíduo faz parte de uma coletividade e, mesmo querendo retirar-se dela, apunhalando-se, não age apenas contra si, mas também contra a sua comunidade. Quando isso ocorria na sociedade ateniense, sem a aprovação da lei e o consentimento da comunidade, o suicida deveria ser punido com a perda dos direitos civis. Esse princípio foi trazido para os códigos contemporâneos, conforme vemos no art. 12 do Código Civil brasileiro, quando diz que o morto poderá sofrer violação aos direitos à sua personalidade: “à honra, “à privacidade, à imagem”.

            Já temos o suficiente para relacionar a rejeição à vacina contra a obrigatoriedade de tomá-la. O desrespeito às medidas de segurança que levam o indivíduo a se expor e a contrair a Covid-19, significa, no primeiro aspecto, à prática de atos injustos pela contrariedade das orientações emitidas pelas autoridades da saúde. Conhecendo a si e ao vírus, o indivíduo também atenta contra si, como se fizesse uso de um punhal para tirar a própria vida; considerando que o indivíduo é membro de uma coletividade e convive com ela, comete outros atos injustos: atenta contra a coletividade, podendo repassar o vírus ou vir a ocupar um leito no hospital que poderia ser utilizado por outro paciente vitimado por outra doença e, eleva os gastos com o atendimento no sistema de saúde com uma enfermidade que poderia ter sido evitada.

            O negacionismo em relação à pandemia do coronavírus e a rejeição pela vacina, expressam o grau de ignorância existente na civilização capitalista e, representam, junto com outras, tentativas para destruí-la. Os atentados partem de cidadãos comuns como também de autoridades governamentais. Agem movidos pelos instintos e fazem a sociedade retroceder, não para o “estado de natureza”, mas para a barbárie que também se guia pela violência e a “guerra de todos contra todos”.

            A perda dos direitos civis do suicida defendida por Aristóteles, combinada com a “perda dos direitos do morto”, constante do Código Civil brasileiro, devem ser consideradas para alertar os vivos, que os direitos individuais do cidadão não garantem a liberdade de atentar contra a vida alheia e, se a lei não obriga a todos a tomar a vacina, ela também não permite expressamente a não tomá-la, logo, ela proíbe de não tomar, portanto, todos os cidadãos que vivem em sociedade são obrigados a tomá-la.

            Qualquer suicida, seja por qualquer motivo, atenta contra a sociedade. Primeiro, ele é parte desse coletivo que o incluiu quando nasceu, logo, ao se retirar, por um ato egoísta, comete uma injustiça. Por outro lado, considerando o número de habitantes, a sociedade e o Estado investiram em infra-estrutura e em políticas públicas, no caso da saúde no Sistema Único de Saúde para atender a todos. Nesse sentido, o negacionista ao negar a realidade para esconder a verdade, comete dois crimes: o primeiro de suicídio por atentar contra a própria vida e, o segundo, por vir contrair a doença, é também um homicida, por contaminar propositalmente mais de uma centena de pessoas e muitas delas evoluem para óbito.

            A civilização guiada pela ciência e orientada pelas leis constitucionais, juntamente com as normas morais, por mais que as contradições agravem os conflitos e destruam os laços fraternais na convivência social, precisa se impor sobre as reações negacionistas e destrutivas, empregando medidas que restrinjam as vontades e controlem os instintos dos suicidas e dos homicidas, impingindo a eles, ainda vivos, as medidas da violação dos direitos do morto inerentes à sua personalidade – direito à honra, à privacidade, à imagem e, podemos acrescentar à liberdade de fequentar lugares aonde circulam pessoas; ao direito de serem atendidos gratuitamente no SUS caso contraiam o vírus e precisem de atendimento após o termino da vacinação; o direito a tirarem passaporte para evitar que circulem em comunidades formadas por outras culturas não negacionistas; o direito de matricularem-se em escolas e universidades para assistirem aulas presenciais; mas, principalmente, impedir que governem o país pois, como se movem por instintos e não por consciência; os princípios éticos são ignorados e tudo o que aponta para  o bem-comum é desconsiderado.  

            O divisionismo negacionista buscou no vácuo do enfraquecimento da luta de classes, misturar os sujeitos para obscurecer as contradições econômicas, sociais e políticas e, como isso a minoria dominante adestra parcelas das massas populares e as põem a seu favor.

            O caminho é a recolocação no cenário mundial do objetivo da superação do capitalismo somente alcançado se na utopia do horizonte também for colocada para ser construída a transição para o socialismo, caso contrário, as disputas pontuais servem apenas para que os capitalistas ganhem tempo e rebaixem ainda mais os níveis de entendimento, do bom senso e da combatividade dos trabalhadores. Só a luta salva os bons avanços civilizatórios.

                                                                                  Ademar Bogo

                                               Autor do livro: Organização política e política de quadros.

                 

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