domingo, 3 de janeiro de 2021

DESFAZER-SE DAS TROUXAS


E eis que findamos a segunda década do século 21. Elas representam a sequência de um processo político iniciado nas duas décadas finais do século 20, quando as lutas sociais e políticas ganharam forma e conteúdo próprio, deixando para trás: o regime totalitário, implantado pelo golpe militar de 1964, as experiências dos partidos comunistas e os métodos de confronto por meio da luta armada para ingressar e sustentar o processo que durou quatro décadas centrado nas lutas reinvindicatórias e nas disputas eleitorais.   

            O feito histórico de unificar todas as forças sindicais, populares, religiosas, estudantis, artística, intelectuais e partidárias para lutar contra a ditadura militar, eleger democraticamente o presidente da república e escrever a nova Constituição Federal, garantiu a superação dos limites das formas anteriores de fazer política e inovou no envolvimento das massas como sujeito coletivo, em busca das garantias, vistas como “direitos sociais”.

            O acerto na aplicação das táticas reinvindicatórias durante os últimos quarenta anos é indiscutível; no entanto, aquilo que parecia ser a maior das virtudes, com o tempo veio a ser o grande defeito. Quem viveu na década de 1980 tem na lembrança que, naquela época praticamente tudo convergia para o institucional com as exigências voltadas para a aplicação das leis existentes ou para serem elaboradas novas leis, dentre elas a própria Constituição Federal. As massas sensíveis às demandas conjunturais atendiam as convocações e se somavam às grandes mobilizações. As categorias específicas assumiam tarefas de enfrentamento por meio da realização de greves, ocupações de terra, no campo e na cidade; saques coletivos na região nordeste que era afetada pela seca; lutas por educação, saúde etc. As ações fluíam coordenadas ou espontaneamente. Grupos localizados, movimentos, sindicatos e entidades em geral, em busca de solução dos problemas sociais, rumavam na mesma direção de encerrá-las nas mesas de negociações com os patrões, governadores, autoridades e instituições estatais.

            O fortalecimento da estratégia da “ação para a negociação” para garantir os resultados, incentivava novas mobilizações com um número ainda maior de integrantes. Esse aprendizado tático de “atacar e negociar” forjou a consciência dos dirigentes de todas as organizações de natureza sindical, popular e partidária, que retomaram de comum acordo o clássico princípio do “contrato social” firmado entre o Estado e as forças sociais mobilizadas.

            A estratégia da “ação para a negociação” cumpria duas funções: a primeira levava a ação a um desfecho quase sempre vitorioso e, a segunda, legitimava a existência do movimento ou entidade organizadora de cada ação. Por outro lado, respeitando o princípio contratualista, os proprietários privados das fábricas e das terras, os governantes e o próprio Estado, também ganhavam reconhecimento e afirmação superior por receberem as forças que reinvindicavam soluções, isto porque, as audiências fluíam segundo os critérios jurídicos e políticos da ordem dominante.

O uso das forças policiais e a inoperância dos governantes reconhecidos como representantes das classes dominantes, despertou, já no início da década de 1980, a motivação das forças sociais mobilizadas a tomar os governos, na ilusão de que os “contratos” pudessem ser firmados entre as duas partes, com um grau mais acentuado de amizade e tolerância. Esse parâmetro complementador da estratégia reinvindicatória, perpassou as quatro décadas unificando os objetivos das ações sindicais, populares e partidárias. O discurso da “moralização da administração pública”, o “fortalecimento do estado mediante o combate ao neoliberalismo” e a “participação ativa nas eleições em todos os níveis” atrelou-se ao discurso da “distribuição de renda”, do “emprego”, “moradia”, “educação pública de qualidade” etc. Ou seja, a identidade e a complementariedade das proposições, populares, sindicais e partidárias, adequaram as reações ao limite da ordem capitalista à mesma perspectiva programática do modelo desenvolvimentista capaz de, ao mesmo tempo, beneficiar os mais ricos, garantindo-lhes os tradicionais privilégios e lucros, como também os mais pobres, por meio das políticas públicas.

            Conscientes devemos estar desse processo que durou quatro décadas, numa ascensão, em grande medida, sustentada pela pressão social reinvindicatória que levou à vitória a estratégia respeitosa do limite da legalidade, por isso não contribuiu para que os trabalhadores cumprissem com o papel histórico, como foi o papel da burguesia na transição para o capitalismo quando impulsionou as revoluções: industrial, francesa e liberais na Europa, para afirmar o sistema e o Estado capitalista.

            Em fim, após quatro décadas é hora de observar que a relação histórica descrita pelo filósofo Hegel entre o “senhor e o escravo” não foi superada nos meandros da política, isto porque, da existência de um depende a existência e o reconhecimento do outro. Considerando que em certos momentos os escravos puderam elevar a pressão sobre o senhor, a concordância em manter a estrutura de dominação permaneceu a mesma. Os senhores mantiveram a supremacia colocando-se a favor e alguns aspectos contra a ordem, para impor as medidas coercitivas de controle das forças organizadas e das massas populares.

            Para que os trabalhadores cumpram com o seu papel histórico, considerando o processo construído em quatro décadas, firmado basicamente sobre a estratégia da negociação com tendência à institucionalização das relações políticas, é preciso, como disse Mao Tse-tung em 1944, para os integrantes do partido, “que nos desfaçamos de todas as trouxas”. Segundo ele, “para conquistar novas vitórias devemos apelar para que os quadros se desembarecem das trouxas e ponham a máquina a andar. “Desembararçar-se das trouxas” significa libertar o espírito daquilo que o atravanca”.

            As “trouxas” podem ser entendidas como sendo as coisas desnecessárias ou pouco úteis trazidas ao longo do tempo, mas que impedem os movimentos ou as tomadas de decisões por causa do peso que elas acarretam. A título de apreciação vejamos algumas, pois, se levamos a sério, em quarenta anos de práticas corretas e equivocadas, há muitas coisas desnecessárias que precisamos deixar para trás.

            Se levarmos em conta que nos últimos quarenta anos a sociedade capitalista se polarizou nos extremos formando duas minorias: os capitalistas e os trabalhadores categorizados conforme preza a tradição, veremos que, no meio dos dois pólos está a grande maioria da população, desorganizada e deserdada das formas tradicionais sindicais e dos movimentos populares renomados. É importante compreender que a força de ação e de transformação está fora dessas formas que implementaram o princípio da “democracia representativa parlamentar” também na representação social e de classe. As entidades tradicionais burocratizadas tornaram-se redutos corporativos e se ocupam em carregar suas próprias trouxas, sem considerar ou considerando apenas para fins eleitorais, os grandes contingentes de massa inutilizados e vinculados à política oficial pelos créditos emergenciais e bolsas que garantem a eleição e reeleição dos governantes, isto porque, para as massas necessitadas, o benefício é um favor que deve ser retribuído com o voto e o último que beneficia ganha o seu respeito.

            Por outro lado, a militância mais consciente formada durante as últimas quatro décadas, principalmente, a mais recente que chegou a ser denominada de “lutadores e lutadoras do povo” não está ligada oficialmente a nenhum partido político, mas os carregam como sendo velhas trouxas, seguindo e assumindo para si as agendas alienadoras dos mesmos, seja no que diz respeito ao calendário eleitoral; na defesa das pautas que remetem à rotina parlamentar; na reprodução dos discursos extraídos das disputas nos julgamentos tendenciosos do poder judiciário ou nas disputas polarizadas na eleição do presidente do Congresso Nacional, como está ocorrendo, como se fossem os dilemas mais expressivos da sociedade.

            Desfazer-se das trouxas, não deverá significar jogar tudo fora para ficar apenas com a roupa do corpo, mas é importante considerar aquilo que não deixa pôr a “máquina da luta de classes” para andar, e que, por causa da “trouxa” gastamos toda a energia para fazer discursos sem sujeitos organizados. Vamos a um exemplo: com o fim do crédito emergencial os partidos e a militância acoplada, ao invés de propor mobilizar e organizar os necessitados, procura costurar pelo alto, para obrigar o governo a voltar a garantir o auxílio. Essa prática das bolsas, abonos e auxílios etc., têm servido desde a década de 1990 para eleger e reeleger presidentes da república. Logo, a “trouxa” do auxílio oferecido e negociado entre os poderes executivo e legislativo, deu ao governo, no início da pandemia, credibilidade e aprovação. Desse modo, quem supostamente se coloca contra a reeleição do atual presidente, mas por outro lado insiste em manter o auxílio por meio de acordos no Congresso Nacional sem que haja o mínimo de esforço para organizar os necessitados, não estaria colaborativamente em campanha para reelegê-lo?

            É nesse sentido que as novas gerações de militantes precisam decidir se assume para si as “trouxas’ do processo anterior ou iniciam uma nova história. Quais são as trouxas do processo anterior? Vejamos algumas: a) partidos políticos institucionalizados que miram os governos e agem para afirmar o Estado e o capital e tornam reféns de suas táticas a militância social;b) a estratégica da “ação para a negociação” sem uma perspectiva política para enfraquecer e derrotar os inimigos que ao dificultarem as conquistas esvaziam e derrotam os movimentos; c) atrelar-se aos governos e ao Estado com o objetivo de garantir a auto sustentação econômica e, por meio do  dinheiro público garantir o funcionamento das estruturas burocráticas; d) considerar que as plataformas de governo como sendo o programa estratégico de superação do capitalismo quando na verdade todos os governos estão a serviço da ordem capitalista; e) confiar que a formação das frentes amplas ultrapassam os limites da imposição impostos pelo “Estado de direito” e se o Estado capitalista for governado por pessoas amigas ele pode ser útil aos trabalhadores.

Essas trouxas começarão a ficar pelo caminho, no momento em que a revindincação for substituída pela imposição e a democracia representativa for substituída pela presença da democracia popular.     

                                                                                                                    Ademar Bogo

                                                                                                        Autor do livro: Organização                                                                                                                              politica e politica de quadros.

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