domingo, 10 de janeiro de 2021

A VOLTA DA REVOLTA DA VACINA

    Tivemos no Brasil, no ano de 1904, uma revolta significativa no Rio de Janeiro contra a obrigatoriedade da vacina responsável para combater a varíola e a febre amarela. Em grande medida essa resistência ocorreu porque o governo de Rodrigues Alves preocupado com a epidemia ordenou que a limpeza púbica removesse inclusive as moradias desordenadas e, a população mais pobre fosse obrigada a retirar-se das proximidades do centro da cidade. Insuflada por políticos, imprensa e militares que tinham como objetivo empreender um golpe de Estado, essa população mobilizou-se contra a vacina e, entre os dias 10 a 16 de novembro promoveu grandes mobilizações, tendo como vitória a mudança da lei, que tornou a vacina não obrigatória.

            Essa intervenção contra a população mostra, desde sempre, que Estado no capitalismo tem a função primordial de ser coercitivo. Segundo Max Weber o Estado funciona como uma comunidade legitima que reinvindica o monopólio da força para usá-la em um determinado território; sendo assim, ele é a única fonte do Direito que pode fazer uso da violência para sustentar a ordem social formada por homens que dominam outros homens.

Por mais que a civilização tenha evoluído, as velhas diretrizes filosóficas e sociológicas permanecem válidas. Auguste Conte, criador do positivismo é uma referência remanescente sustentada por dois fundamentos estruturantes, “dinâmico e estático” em vistas de funcionalizar o Estado e a economia, cuja simplificação converteu-se no comprometimento do lema: “ordem e progresso”, parâmetros que enraizaram o liberalismo como o espírito movimentador do capital, encharcado de crises constantes, mas exigente com a estabilidade.

            A estabilidade beneficia os burgueses e a classe média, por fazer fluir e realizar os seus interesses na ordem social “harmonizada”. Evidentemente, junto com a ordem vem o progresso favorecedor da acumulação da renda e da riqueza. Por outro lado, a instabilidade, pode ser impulsionada pelos dois lados. Quando provocada pelas massas populares, a classe dominante exige a intervenção do Estado e se empenha em produzir novas leis coercitivas; quando impulsionada pela própria classe dominante ela exige a colaboração do estado e põe abaixo todas as leis que garantam os direitos sociais. Isso mostra que o Estado nunca está a favor das grandes massas exploradas.

            Conhecemos um tradicional tipo de instabilidade política criado pelas lutas sociais. De um dia para outro a classe dominante sente-se pressionada e, imediatamente recorre ao Estado para que ele atue no sentido de reparar a ordem. Nesse sentido, costumeiramente, no capitalismo, a manutenção da ordem, na ótica dominante, é fazer o Estado agir contra os pobres mobilizados e organizados para que não coloquem em risco a propriedade privada. Diante disso, as expressões intelectuais de natureza socialista consideram que o Estado é tão inimigo dos trabalhadores quanto o capital e, ambos, cada qual segundo as circunstâncias, precisam ser superados.

            Por outro lado, em situações adversas, mesmo que temporárias, quando a ordem está sendo ameaçada pela própria classe dominante e sua auxiliar, a classe média, as massas populares e trabalhadoras em geral, passam a perder os direitos, antes garantidos e a desordem instalada traz, não apenas insegurança aos mais pobres, como também, aumenta a possibilidade de aniquilamento e extermínio de grandes contingentes populacionais. Nesses momentos, somente a mobilização e a reorganização coletiva podem obrigar os governantes restabelecer a ordem, impedir o acesso aos privilégios dos mais abastados e assegurar as garantias de vida e saúde dos mais pobres.

            Toda essa introdução é para compreendermos o imbróglio que enfrentaremos em relação à vacinação contra o Covid -19, em nosso caso, propositalmente em atraso, indicando que, no ano de 2021, não serão atendidas todas as pessoas do país, principalmente se for oficializado o agravante de tornar a vacina uma mercadoria vendida nas clinicas particulares como está sendo a venda dos testes de contaminação.

Em primeiro lugar é preciso deixar claro que a vacina é de extrema importância para toda a população, mas, principalmente para as massas populares e trabalhadoras que estão em situação de vulnerabilidade social. Por isso, a luta é para que a vacina seja gratuita e chegue a todos os lugares e em tempo igual também nos interiores do país.

            Em segundo lugar, a vacina como um bem de uso social não pode ser transformada em uma mercadoria, isto porque, sendo uma necessidade coletiva ela deve ser garantida pelos recursos públicos e, a iniciativa privada deve ser proibida de transformar a doença em um grande negócio; poderá colaborar se se dispuser distribuir e aplicar a vacina gratuitamente para a população em geral, por isso, a vacina não pode ser paga por nenhum cidadão e, para o acesso, todos devem seguir e respeitar as faixas de prioridade.

            A justificativa da primeira hipótese é que, se a vacina for pública e a sua aplicação for feita segundo os critérios de faixas, descartam-se os critérios de classe e de condição social para recebê-la, logo, a pressão para que a vacinação seja massiva e aplicada no mais curto espaço de tempo possível, virá de todos os segmentos sociais que acreditam ser o imunizante a forma mais eficiente de enfrentar e debelar a pandemia.

            A negação da justificativa para a venda da vacina por intermédio da iniciativa privada, apega-se à negação de direitos, principalmente para as massas populares pobres, significará liberar que o Estado se comprometa em garantir a vida dos mais abastados e, principalmente, dessa parcela governista que se nega usar máscara e não respeita as normas de isolamento. Essa postura desordenadora, anti-social, anti-humanitária, anti-ética e de consciência pseudo fascista, buscará imunizar-se nas clinicas particulares e alavancará o movimento de protesto contra o distanciamento físico, atraindo para essa prática as pessoas ingênuas e indefesas. Como o governo federal é adepto do não cumprimento de medidas protetoras, não coagirá nem reprimirá essas iniciativas, tornando-se conivente com a desordem e com a política direcionada para a continuação do extermínio da população. Com um agravante, essa parcela ignorante e desvairada, adepta da política do armamento da população que, não sendo coagida, passará a fazer uso também dessa alternativa para intimidar a reação da popular contra o governo e a mercantilização da vacina.

            Na medida em que a política de vacinação do governo se demonstrar inócua, retardada e insuficiente e o Estado não assegurar as garantias de vida da população mais pobre, por estar assegurando a vacinação da classe dominante nas clinicas particulares, a reação deve ser em defesa da vacinação pública ao mesmo tempo que se lute para impedir que ela seja oferecida como mercadoria.

            A revolta da vacina, agora a favor da sua aplicação, agirá contra as clinicas privadas, obrigando-as a prestarem serviço voluntário e seguirem as prioridades da imunização estabelecida pelo poder público. Se já de início o governo liberar para iniciativa privada para comercializar a vacina, grande parte da população, principalmente a mais pobre, ficará sem ser imunizada ou será muito tardiamente, fazendo com que a tragédia da contaminação eleve também as estatísticas das mortes causadas pelo Covid-19.

                O ano começa com esse desafio de obrigar o governo e o Estado a intervirem e coagirem a desordem que favorece os privilegiados. A vacina deve ser urgente, massiva, gratuita e ser controlada e distribuída pelo poder público. Ao contrário de 1904, as grandes massas hoje são favoráveis à vacina e, junto com a defesa da mesma, devemos incluir a defesa dos direitos sociais, a volta do auxílio emergencial e todas as políticas públicas que favoreçam os trabalhadores e populações mais pobres.

                                                                                                             Ademar Bogo

Nenhum comentário:

Postar um comentário