domingo, 26 de maio de 2019

SUPERAR A CRUELDADE REFINADA

            O tempo presente está sendo marcado pela incoerência do capital produtivo contra si e contra todos, principalmente quando relega à própria sorte cerca de quatro bilhões de seres humanos no mundo, por não querer mais explorá-los no trabalho e, cruelmente, fazê-los aceitar a situação pelo sentido interesseiro que dá à própria História.
 Em tudo vemos a necessidade de explicação e, por isso, agimos como faziam os primeiros filósofos que formulavam perguntas tão simples que chegavam a repetir as dúvidas das crianças: de onde vem o vento? Por que as pedras não se reproduzem? Do que são feitas as ideias?
            Embora vivamos em tempos mais complexos e envoltos pelo manto das informações silenciosas, nos interrogamos: por que apesar de tanta tecnologia há fome e miséria no mundo? Por que há desemprego e as economias não crescem para voltar a ter mercado para a força de trabalho? Por que os governantes falam em reformas e nada melhora? Ao invés de abrirem novas universidades cortam as verbas daquelas já existentes? E, em nome da segurança, liberam o acesso as armas de fogo?
            Como os antigos gregos, buscamos respostas na Filosofia. Ela nos mostra, para dar um exemplo, como fez o francês Michel Foucault, ao dizer que existe uma “genealogia da história” e se o “genealogista” ao estudá-la tivesse o cuidado de ouvir e não só de falar, perceberia que por detrás das coisas estudadas existe algo completamente diferente do que é. Esse algo possui uma essência construída a partir de figuras que antes de serem feitas eram totalmente estranhas, imaginações que vieram a ser o que não deveriam ser.
            Não é difícil entender esse raciocínio se tomarmos como exemplo a nossa própria experiência, quando dizemos: “se eu tivesse feito aquilo, hoje seria diferente”. Logo, a nossa História pessoal foi feita sobre figurações opostas ao que queríamos que fosse. Assim é a História do país; somente sabemos o que é e poderia ter sido, quando escutamos a História. Eis então o dilema: a História passada não pode ser mudada e a que virá, será feita guiada pelas imaginações estranhas que temos, e farão acontecer algo diferente do que deveria ser.
            O filósofo Nietzsche nos explica que a “genealogia da moral”, tem uma História que se diferencia das outras histórias, mas todas elas dizem o que não são. Por isso, a causa da gênese de cada coisa, utilidade e inserção em um sistema é diferente daquilo que vemos e existe. Isso ainda é pouco, pior é a crueldade do “princípio genealógico” quando se manifesta para nos mostrar que a História da civilização nada mais é que um processo de domesticação do animal humano. Por isso é que, barbárie e civilização; violência e ordem; progresso e devastação etc., não se opõem, ao contrário, se complementam. É assim que chegamos a determinados resultados históricos não imaginados.
            Nietzsche cultivou a visão de que a crueldade perpassa toda a História. Não significa que ela acontece sempre da mesma forma. O tempo faz com que ela passe por “refinamentos”. Significa que, se no passado remoto ela se apresentou como brutalidade e ignorância, no presente ela pode ser mais branda e manifestar-se também na forma de “violência espiritual”.
É certo que a humanidade jamais funcionou sem o cheiro de sangue e tortura. Mas o grau de refinamento da crueldade acontece pelo envolvimento da “espiritualização” que tende para a sublimação do sofrimento. Nesse sentido, a “docilização” humana e a aceitação de uma causa moral ou política imposta, tem grande possibilidade de ser alcançada por meio da religião. Sentencia Nietzsche que os homens das épocas de corrupção são espirituosos e caluniadores, eles sabem que tudo o que é bem dito é acreditado. Podemos acrescentar, tanto nas redes sociais, quanto no púlpito das igrejas.
            O que tudo isso tem a ver com o tempo presente? É que sem entendermos a crueldade que está por trás dos fatos históricos, não conseguiremos entender o comportamento político e religioso dos indivíduos e nem mesmo o porque acontecem determinados fenômenos políticos.
            É no processo histórico que se tenta domesticar o animal humano para que ele caiba dentro da “jaula” sociedade, imaginada pelas elites dominantes que, para realizarem tais feitos usam como instrumentos de crueldade, o retorno do cheiro de sangue e da tortura pelo assalto aos direitos sociais; as mentiras espiritualizadas por meio das pregações de certas religiões; as mentiras virtuais compartilhadas e a culpa individualizada eximindo o sistema.
            Dessa forma, o desempregado, em nome dos “tempos difíceis”, aceita a sua cruz; o jovem compreende que a sua vez ainda não chegou e, o eleitor e a eleitora alienados acreditam que na próxima eleição acertarão votando no melhor. E assim todos esperam mansamente sem perceberem que a crueldade, para exigir mais sacrifícios, vai sendo refinada a cada instante.
            O que nos cobra o tempo presente não é apenas uma intervenção na História atual, mas descobrir qual é o sentido consciente que queremos dar à História a ser feita, tomando como referência o grau de crueldade a ser superado, começando pelo ataque a todas as formas de alienação.  
                                                                                                        Ademar Bogo  

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