Há
momentos importantes na vida de um cidadão ou na história de um país, cujas
marcas ficam registradas para sempre. É o caso de um julgamento. Os olhos se
voltam para o tribunal para vislumbrarem o produto que sairá de lá, com o nome
de condenação ou absolvição, daí surgem as expressões, nos juízos particulares,
se os resultados foram justos ou injustos.
Aristóteles
foi um dos primeiros filósofos gregos a teorizar sobre a justiça. “Ora,
"justiça" e "injustiça" parecem ser termos ambíguos, mas,
como os seus diferentes significados se aproximam uns dos outros, a ambiguidade
escapa à atenção e não é evidente como, por comparação, nos casos em que os
significados se afastam muito um do outro (...)”.[1] Talvez esteja nisso a
chave para entendermos essa confusão, quando não sabemos discernir se o réu é
culpado ou inocente.
O
filósofo preocupa-se em situar a materialidade dos atos, mas, ao deparar-se com
os diversos significados para “um homem injusto” que, muitas vezes não
conseguimos localizar em que ponto está a sua culpa. Para facilitar o
entendimento, voltou-se Aristóteles para os comparativos do “homem sem lei” e,
o “homem respeitador da lei”. Acontece que entre o réu e a condenação, estão as
argumentações para prendê-lo ou soltá-lo das malhas da lei.
As
vezes as expectativas são maiores do que as evidências e com isso há
desequilíbrio na aplicação dos pesos e das medidas, por isso, os julgamentos as
vezes parecem ser justos, outras vezes injustos. As coisas se agravam ainda
mais quando adentramos para o campo dos desejos, também ambíguos, no sentido de
“fazer justiça” ou “fazer vingança”.
Entre
a justiça e a vingança não há parede divisória, apenas duas linhas paralelas, com
cores diferentes, marcam as satisfações e insatisfações. Satisfeitos com o
resultado do julgamento, nem sempre nutrimos o sentimento de justiça; haverá
ainda o seguimento de onde e como o réu cumprirá a sentença e progredirá no
cumprimento pena. Já que o cidadão não pode interferir nas decisões do juiz,
ele faz denúncias e exigências para que tudo seja cumprido nas piores condições
possíveis, com as mais perversas companhias, vistas como instrumentos da
vingança e acompanhada de todas as maledicências para que de tudo de ruim lhe
aconteça do lado de dentro das grades.
Assim
é a civilização: A lei acima de todos. No entanto, há situações que acima das
leis estão aqueles que as elaboram, isto porque, como um pai nunca imagina que
será punido pelo filho, supostamente, a criação de uma lei jamais se voltaria
contra o seu criador. Mas pode vir a ocorrer. Quando isso acontece, como a
ambiguidade entre o veneno e o antídoto: os fabricantes mudam a fórmula, um
fica sendo a doença e o outro o remédio. Por isso surgem os pedidos de anistia
que somente podem ser realizados com a aprovação de uma lei que anula os crimes
imputados por outras leis.
A
imunidade parlamentar é um exemplo de que há pessoas acima das leis que não
podem alcança-lo enquanto durar o seu mandato e, a impunibilidade do juiz que
faz a interpretação das leis segundo os seus interesses. Não há limites hermenêuticos,
mesmo quando os atos falam por si mesmos, há a possibilidade de assegurar aos
culpados uma mentirosa inocência.
Por
outro lado, a justiça e a política são acompanhadas da coragem e do medo. No
Brasil, logo após a abertura política de 1985, houve a campanha para presidente
da republica em 1989 e, o Partido dos Trabalhadores hegemonizou as mobilizações
com o slogan: “Sem medo de ser feliz”. Buscavam os seus ideólogos espantarem o
fantasma do comunismo que as forças responsáveis pela ditadura militar haviam
criado. Quando em 2002, aconteceu a primeira vitória eleitoral para governar o
país, a afirmação verbal foi: “A esperança venceu o medo”.
O
que chama a atenção não é o resultado alcançado, mas o “medo” que aparece nos
dois momentos históricos decisivos. Por isso, se justificava a intocabilidade
dos militares. Os ditadores e torturados responsáveis por centenas de mortes,
torturas, censuras, perseguições etc., vivem ainda ou morreram em suas casas,
com soldos e vantagens que se estendem para os seus familiares, privilégios que
nenhum trabalhador brasileiro possui.
Nesse
último onze de setembro de 2025, enquanto rememoramos os 52 anos da morte de
Salvador Allende, vítima do golpe militar chileno em 1973; no Brasil assistimos
à condenação de um grupo de golpistas que atentaram contra os resíduos de
democracia política em 8 de janeiro de 2023. É evidente que isto é muito pouco
em relação a tudo o que as lutas de resistência já passaram e sofreram, pela
violência praticada pelas intervenções militares contra elas. De algum modo, só
para citar alguns: Zumbi dos Palmares morto pelas forças oficiais em 20 de
novembro de 1695; Antônio Conselheiro e os mortos de Canudos em 1897; Carlos
Marighella (1969), Carlos Lamarca (1971) e todos os guerrilheiras e
guerrilheiras que organizados enfrentaram a ditadura militar de 1964, nesse dia
também foram lembrados.
O
pouco se torna muito quando se ampliam os resultados. Se algo de bom ocorreu com
a condenação dos golpistas, foi que “o medo venceu o medo”. Agora é possível
dizer que é possível. Mesmo que tudo continue como está, um passo adiante foi
dado, frente ao fantasma militar e o poder do imperialismo que, unidos, construíram
o que de pior pode existir contra uma nação para que ela seja soberana, que é o
medo de se insurgir.
Por
tudo isso, podemos dizer que houve julgamento, mas a justiça ainda não
aconteceu. O sofrimento dos povos originários massacrados; dos negros
escravizados e mortos; dos pobres e trabalhadores reprimidos, presos e torturados,
são todos crimes cometidos pelo braço jurídico e a mão armada dos Estado
brasileiro. Para que a justiça verdadeiramente seja feita, precisamos eliminar a
principal ambiguidade composta pela contradição entre explorador e explorado,
para isso é preciso que o próximo tribunal seja popular, instalado nos campos,
nas fábricas, nos serviços, praças, ruas e favelas para nele condenarmos, a
desigualdade social, a propriedade privada, a exploração do capital e o poder
centralizado do Estado. Nesse sentido, a luta não terminou, aliás, ela apenas
começou.
Ademar
Bogo
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