domingo, 26 de janeiro de 2025

TUDO OU NADA

            Estão na ordem dia as manchetes com o nome do novo presidente dos Estados Unidos Donald Trump, com imagens quase sempre acompanhadas de cores demoníacas. E não é pouca coisa; as medidas tomadas recentemente atingem, desde a mais alta contradição bélica mundial com ameaças de sanções e invasões, até o último ser transgênero, preso, desidentificado,   humilhado mais do que um imigrante ilegal, algemado e deportado para o seu país.

            A ameaça e perda real de direitos poderia ser atribuída a um regime totalitário, como geralmente é feito com acusações a um presidente tido como ditador, por ter sido reeleito por diversas vezes. No entanto, apesar das más impressões, tudo corre sobre os trilhos da mais sólida democracia, incontestada, pois a parte que vinha acostumando-se a contestar os resultados, desta vez ganhou as eleições.

            Pronto, sem muitos detalhes, vamos à questão: por qual razão um regime democrático em determinados períodos históricos obriga-se a tomar medidas que são fortemente identificadas com as de um regime totalitário? Será que a democracia no capitalismo não possui a mesma essência que o totalitarismo?   

            É importante refletir e refrear os instintos para não cair na armadilha da responsabilização de um só bandido, por toda a violência do mundo ou, pelo inverso, simplesmente esperar que um democrata, desta vez mais jovem, venha despertar os anseios identitários como ocorreu no tempo de Barack Obama e reavivados na frustrada tentativa da correligionária de Kamala Harris. O que está ocorrendo nos Estados Unidos, não é a simples troca de presidente, mas o envelhecimento das garras da águia, que veio perdendo ao longo dos tempos, o vigor do voo sobre o mundo; por isso, para alimentar-se obriga-se a ser ainda mais violenta e, apesar dos atos com requinte de crueldade serem atribuídos ao presidente, a maioria da população de lá aplaude e aprova com satisfação.

Para não tomarmos como surpresa, Marx ao tratar das crises em geral do capitalismo, já fazia essas constatações: “Da mesma forma, também na sociedade desenvolvida as coisas se apresentam na superfície como mundo de mercadorias imediatamente existente. Mas essa própria superfície aponta para além de si mesma, para as relações econômicas que são postas como relações de produção. Por isso, a articulação interna da produção constitui a segunda seção; sua síntese no Estado, a terceira; a relação internacional, a quarta; o mercado mundial, a conclusão, em que a produção é posta como totalidade, assim como cada um de seus momentos; na qual, porém, todas as contradições simultaneamente entram em processo.”[1] Então, não é disso que se trata?

Na medida que outras economias ascenderam com a capacidade de disputar a hegemonia produtiva, comercial e ter influência política mundial, parte das contradições principais avolumaram-se e levaram para dentro do coração do império, alguns sérios limites e ele começou a perder vigor. Mas o principal da contradição está relacionado com a tecnologia. Bem comparado o mesmo paradoxo que se formou na passagem superação da fotográfica em preto e branco para o sistema digital com cores e maior qualidade, pode ser empegado no caso do parque industrial, da matriz energética e a competitividade comercial mundial dos Estado Unidos. Ao anunciar que o petróleo será a fonte energética principal; que os acordos climáticos não serão respeitados e que os imigrantes em massa serão deportados, as medidas evidenciam que há um processo recessivo em andamento; a indústria, além de envelhecida está obsoleta e a capacidade de inserção da força-de-trabalho, com mais de 4% de desempregados, está esgotada.  

Até o momento as políticas de enfrentamento com os opositores mundiais deram-se por meio de sanções, enfrentamentos bélicos unilaterais e no fortalecimento de big tech para infestarem o mundo com disfarces e mentiras. Já se pode afirmar que a principal liderança hoje dos Estados Unidos é apenas no mercado da informação. Não é pouca coisa, mas terão elas a capacidade de enfrentar e superar a simultaneidade das contradições, como por exemplo a energia suficiente para manter as plataformas ligadas?

De nossa parte não basta olhar com ceticismo para o poder decadente do imperialismo, é preciso perguntar, se na convalescência das crises, o que ele exigirá de nós? Será o total controle do petróleo? A taxação elevada sobre produtos de exportação para impedir a produção? A abertura ainda maior para o capital imperialista concluir o ciclo das privatizações? O impedimento de relacionamento comercial com a China? A entrega do governo para os negacionistas? Etc.

Quando Lenin em 1916 publicou o livro: Imperialismo, fase superior do capitalismo, dentre os diversos temas, tratou da acumulação da produção; do papel do capital financeiro e da exportação do capital; mas não podia prever o comportamento, nem tampouco os maus tratos oferecidos pelos países centrais, contra a “importação” de força-de-trabalho, oferecida pelos “novos bárbaros”, produzidos pelo próprio império, nos países periféricos historicamente explorados.

Esta fase superior do imperialismo comandada pelo capital destrutivo, ainda não alcançou o máximo patamar. Ela evolui para o biocídio e o humanocídio indiscriminados, bem como, acelera o progresso rumo à exaustão das reservas minerais, da água doce e da temperatura suportável, simplesmente para saber em qual língua será declarado aquilo que as religiões chamam de “juízo final”. Por isso, o mal-estar estomacal do império, que o faz vomitar em baciadas os imigrantes inservíveis para o grau de exploração que será obrigado implementar, ainda é cedo para saber tudo o que ainda virá. Mas isto já vinha sendo feito, em parte pelos governos anteriores, que sem filmagem das algemas e das correntes nos pés extraditavam imigrantes, financiavam o terrorismo sionista e enviavam armas para a Ucrânia.

Portanto, chegamos ao ponto conclusivo. Já se disse com diferentes formas e em diversos momentos e lugares, que o imperialismo é o “inimigo da humanidade”, e o é, não porque a explora e a trata mal, mas também porque tem nas mãos elevadas chances de exterminá-la. Quando vemos a desesperada corrida para encontrar condições de habitar outros planetas, os avisos de que a elite capitalista nos envia, é que ela já se prepara para sair fora da terra. Isso significa dizer que, enquanto a humanidade assiste aos preparativos do seu próprio extermínio, eles investem livremente em transporte extraterrestre. Por isso, nessa fase do imperialismo, nunca foi tão imperativa a sentença do, “Tudo ou nada”.

Convencer-nos de que o imperialismo é verdadeiramente o inimigo, significa dizer que precisamos começar a responder a altura cada ato ofensivo praticado contra qualquer povo em qualquer parte do mundo, ou para qualquer repatriamento de imigrantes, deveremos atacar e repatriar os investimentos em busca de que cada país retome o controle de todas as suas riquezas e alcance a verdadeira soberania. “Tudo ou nada” representa um programa de ação a favor do controle total dos territórios e povos e não se deixar arrastar pacificamente para a barbárie.

A ideia de invadir o império como fizeram os bárbaros, no longo período de lutas e tentativas como ocorreu ao tomarem a sede do Império Romano no ano de 476 d.C., com o muro do México e elevado controle tecnológico etc., parece ser inviável. Mas não há necessidade de fazermos isto, pois a expansão do capital imperialista, fez a vulnerabilidade do império vir até nós e já alcança os degraus de nossas portas. Por isso, se o governo de cada país deixar de mendicância, prostração e oferecimento de subsídios para o capital externo; impedir que as forças armadas e policiais locais defendam os investimentos imperialistas e não ataquem o povo; nós, por meio de mobilizações, nacionais e internacionais combinadas, faremos a expropriação desse patrimônio todo e o nacionalizaremos. Dessa forma, o império ruirá diante de nossos olhos e pés.

Tudo ou nada, é tudo, ou nada! Não há mais o que esperar do capitalismo.

                                                                                   Ademar Bogo          



[1] MARX, Karl. Grundrisse.  São Paulo: Boitempo, 2011, p. 254

domingo, 19 de janeiro de 2025

OS MUNDOS SENSÍVEL E INTELIGÍVEL

 

     O filósofo Leandro Konder com sua intuição fantástica expressou um dia que: “Caso alguém possuísse toda a água do mundo teria em suas mãos o destino de todos os homens”.[1] Em nome do tratamento da água, as empresas já controlam grandes mananciais, fazendo bilhões de pessoas no mundo terem como único acesso a água pela torneira da cozinha de suas casas. Se essas mesmas empresas tomassem a decisão de colocarem um produto alucinógeno atingiriam num só período, pelo menos, a metade da população mundial. No Brasil 84,9% das pessoas dependem das empresas controladoras do abastecimento de água nas cidades. Este é o mundo sensível em que conhecemos.

            De modo semelhante se substituíssemos no enunciado acima e, ao invés de água colocássemos o substantivo da “tecnologia digital”, chegaríamos á mesma conclusão: “Caso alguém vier a controlar a tecnologia digital do mundo, terá o destino de todas as pessoas em suas mãos”. No entanto, há uma diferença entre as duas comparações, se na primeira as pessoas ainda podem recorrer a algumas alternativas, como o de aparar a água das chuvas, na segunda não há possibilidade alguma, pois a virtualidade já se coloca como um espírito superior que entra em cada cérebro por meio de um aparelho digital ou monitora os movimentos pessoais através da captação de imagens, calor corporal, íris dos olhos, chip implantado no corpo etc. Este é o mundo inteligível que ainda não conhecemos.

Quando retornamos os textos iniciais do materialismo histórico, encontramos bons indicadores para entendermos os sentidos das transformações. Marx, nos seus manuscritos já havia percebido: “Que a vida física e mental do homem interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza”.[2]  Na sequência vamos encontrar a importância do trabalho como capacidade objetiva de transformação das naturezas orgânicas e inorgânicas, por isso, transformamos e nos transformamos.

Se a Revolução Industrial do século XVIII empenhou-se em extrair da natureza a matéria prima para produzir mercadorias, na atualidade com a continuação daquela revolução, com requintes tecnológicos eletrônicos e virtuais, a matéria prima é a própria natureza humana o objeto de transformação é o seu próprio modo de ser e de pensar.

Se por um lado não devemos, em nome dos elevados riscos, incorrer no negacionismo de posicionar-nos contra os avanços tecnológicos, reproduzindo o amedrontamento das destruições metodológicas do passado, por outro, devemos encarar com naturalidade toda a evolução. Se o Homo sapiens inventou o machado de pedra, todos os objetos cortantes desde a serra até a gilete e, mais recentemente os bisturis manuseados por robôs para precisarem ainda mais as intervenções cirúrgicas, descendem daquela descoberta da pedra cortante. O mesmo ocorre com a escrita. Para guardar informações, desde o início as pessoas descobriram que não tinham capacidade mental para guardarem na memória muitas informações ao mesmo tempo, por isso, os registros serviam de arquivos e documentos. Há poucas décadas a mudança praticamente ontológica veio para ampliar o potencial humano, a máquina de datilografia foi superada pelo computador e a memória deste último se aproximou muito do que faz o cérebro humano; com um simples toque é exposto em uma tela tudo o que foi informado a qualquer tempo anterior. Nessa mesma continuação temos agora o desafio de aprendermos a lidar com esse instrumento de trabalho que é a “Inteligência artificial”.

Há, porém, um terceiro lado desse triângulo que é o poder de controle tecnológico cada vez mais concentrado, pois, diferentemente da água que possui lagos e fontes esse situa-se no espaço e o controle se dá, no mínimo, por satélites. Por isso não podemos ver a tecnologia virtual como “ciência aplicada” apenas. Sob o comando de poucos controladores capitalistas ela é dominação geopolítica; espionagem econômica, militar e social; exacerbação de divergências e formação de consensos instantâneos sobre temas, leis e posicionamentos coletivos. Em síntese, as pessoas serão teleguiadas pelos algoritmos e aceitarão as soluções para as necessidades pessoais acessando aplicativos criados por esse mundo inteligível.

Todas as pessoas do mundo deixarão, muito em breve, de serem anônimas. Os dados pessoais, características físicas, impressões digitais etc., estarão no Banco de dados de comum acesso. Aparentemente poderíamos nos dar por satisfeitos, pois, chegamos ao ponto de constituirmos uma verdadeira “comunidade universal”, sem divisas nacionais nem impedimentos para os relacionamentos. Nos aspectos dos controles, o próprio e propalado “livre-arbítrio” poderá ser limitado, ao pesquisar o algoritmo convencerá o cliente a mudar de opção. Se houvesse o mesmo interesse muitas operações criminosas poderiam ser abortadas antes de ocorrerem, bastaria um simples envio de um robô programado para enfrentar o mundo do crime.

Evidentemente que se levarmos em conta tudo o que já se disse sobre o assunto da tecnologia virtual, ficaríamos meses alinhando as contribuições e os perigos. Não vem ao caso, o que importa é fixarmos o nosso debate em torno da materialidade de algumas contradições e perceber que, assim como, embora já tenhamos acesso ás cirurgias robotizadas, o bisturi manual, a gilete e o machado, como instrumentos de corte, não foram aposentados. Isso é para entendermos que, embora a violência possa ser combatida com drones e robôs, as armas brancas e de fogo continuarão sendo utilizadas, isto porque, o coronel que controlava, no passado, o açude da água, em certos lugares ainda continua, em outros, evoluiu para o monopólio da empresa de abastecimento. O mesmo ocorre com a violência, o matador de aluguel ainda permanece, mas ganhou ainda maior expressão, a milicia do crime com a organização do poder paralelo. A inteligência artificial terá interesse em combater o crime organizado?

Uma segunda preocupação se reporta à política. Diante de tamanhas e generalizadas interferências qual será de fato a importância do poder político? Quem de fato tomará as decisões, serão os governantes ou proprietários das big tech que infestarão as redes sociais de informações mentirosas, fazendo os mandatários das nações a assumirem que voltam atrás, anulando decisões que jamais tomaram, como ocorreu recentemente com a normativa das transações no Pix. Qual será portanto, o papel dos partidos políticos e do próprio Estado com os seus órgãos de informação obsoletos preparados apenas para fixarem comunistas?

Num terceiro bloco de complexidades teremos a política econômica. Sabemos que desde a origem o capital foi ampliando as suas formas, passou de produtivo, para financeiro, depois para especulativo e, agora, talvez estejamos entrando em outra forma que ainda deverá ser nomeada de “capital inteligível” que é este da reprodução e acumulação através da informação, das chantagens e mentiras produzidas. Como enfrentar imaterialidade capitalista, ausente fisicamente do território ou nação nos quais provoca os ataques?

Por fim, sem desprezar as demais complexidades que se formarão na educação, comércio, cultura etc., as futuras gerações terão de enfrentar o problema do controle extraterrestre. O que estamos vendo são pequenos sinais principiados pela instalação de satélites, inalcançáveis com mobilizações de massa, mas a possibilidade de criar cidades e indústrias no espaço, iniciando pela exploração de minérios em outros planetas, veremos de fato o mundo ser dividido em dois: sensível e inteligível, como intuiu Platão há mais de trezentos anos antes de Cristo que, em certos aspectos misturam a ideia com a forma e, em outros, apenas as ideias, pois, tendo os seus proprietários ido morar no espaço, impõem de cima para baixo, os interesses desses poucos  selecionados capitalistas.

É nesse sentido que vimos a questão da violência acima. Se no mundo sensível redutos populacionais ou regiões desérticas não forem úteis ao capital, não haverá interesse em promover interferências, com isso, os aterros sanitários com lixo espacial poderão ser criados em campos abertos ou simplesmente jogados nas águas dos oceanos.

É na ampliação do entendimento dessa última fronteira tecnológica que devemos concentrar os estudos e os debates. Seguindo o princípio de que “quem controlar a tecnologia da inteligência artificial controlará a humanidade” é que a luta pelo socialismo se torna ainda mais urgente. Precisamos romper com o comodismo e os acomodados que estão preocupados apenas com a interferência das big tech nas eleições presidenciais de 2026, esquecendo todo o comprometimento do futuro. Precisamos agir antes que os capitalistas criem suas moradas no mundo inteligível, pois se, sobre a terra já é difícil alcançá-los, muito menos será se mudarem para outro planeta.

É tempo de reação e não de amedrontamento. É no controle dos instrumentos de trabalho, formados com elevadas tecnologias e do capital, que reside o poder e não simplesmente no interior do Estado. São as necessidades materiais e não as satisfações virtuais que mobilizam as pessoas. No entanto, vence quem tiver a capacidade de invertê-las como prioridade.

                                                                                   Ademar Bogo                        



[1] KONDER, Leandro. O marxismo na batalha das ideias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 118.

[2] MARX, Karl. Manuscritos econômicos e filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 85

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

UM QUARTO DO SÉCULO

            Parte de nossas gerações viventes tivemos o privilégio de vivermos as passagens combinadas de um milênio para outro, terminar e iniciar um século e, agora já alcançamos um quarto do século novo, mas o que de novo fizemos neste novo período?

            As retrospectivas analíticas nos revelam terríveis continuações como a miséria, a violência, o desmatamento, a concentração da terra, a poluição do ar, a contaminação das águas, sem contar com o agravamento de duas coisas totalmente incontroláveis: a concentração da riqueza e a brutalidade das catástrofes naturais provocadas pelas ações artificiais humanas.

            Dentre todas as decadências capitalistas que podemos apresentar com longos parágrafos, é na impotência da política que se concentram as maiores fraquezas. Há pelo menos quarenta anos iniciamos a estratégia legalista de conquistar o poder por dentro da ordem, respeitando o estado de direito. Para que isso fosse possível, além de cativar os antigos inimigos, foi preciso mudar a linguagem radical; as formas de tratamento; anistiar os golpistas e torturadores do regime totalitário anterior e, garantir a ilusória defesa da incontrolável democracia representativa. As inflamáveis campanhas eleitorais firmaram-se na liberdade de constituir alianças com todas as bandeiras disponíveis no campo partidário e, no final de tudo, o respeito aos resultados sempre foi um princípio a respeitar. A voz das urnas veio a ser a voz da democracia, até que um dia, as forças de direita, cansadas de serem imitadas, pariram, talvez a principal novidade deste quarto de século: a nova extrema-direita, golpista e antidemocrática. E, tal qual um camponês descalço em um quintal varrido, que não encontra sequer um graveto para espantar um animal peçonhento, ficamos nós sem poder usar as mãos e nem os pés para enfrentar as ofensivas dessas parcelas negacionistas.  

            Qual é o diagnóstico político possível de ser feito? Se a estratégia conformista, baseada no mal menor não impediu que ressurgisse o mal maior, significa que algo na frágil muralha democrática foi mal construído. Talvez o equívoco esteja situado no campo, não do possível, mas da opção preferível imediata, como apontou o filósofo Aristóteles. “Pois o mal menor pode ser visto em comparação com o mal maior como um bem, uma vez que este mal menor é preferível ao maior, e tudo o que é preferível é bom".[1] O problema é que, o mal maior ao ser evitado na política não desaparece, ele se conserva e espera o momento para engolir o mal menor e punir todos os seus defensores.

            No aspecto político organizativo, de nosso lado não surgiu nenhuma inovação. Os partidos, as centrais sindicais e os movimentos populares, mais significativos já completam quatro décadas de idade. O cansaço e a fraqueza das ideias e argumentos, impedem que as táticas ofensivas sejam recriadas, como também as forças combativas sejam renovadas. Nos 25 anos deste século, pelo menos 16 deles foram governados pelas forças de esquerda e associadas. No entanto,  nesse período, o agronegócio fez uma revolução estrutural no campo brasileiro; as miliciais criaram um Estado paralelo nos territórios urbanos; o capital passou da hegemonia produtiva e financeira industrial para a forma especulativa intervencionista e controladora das taxas de juros e da dívida pública; a tecnologia nas comunicações evoluiu da máquina de datilografia para a inteligência artificial; as campanhas eleitorais deixaram para trás as pichações em muros, panfletagens massivas, debates radiofônicos e televisionados e avançaram para os disparos de mensagens com robôs; o telefone público do orelhão com fichas, foi superado pela rede social que coloca na palma de cada mão das pessoas de todas as classes um smartfone; os drones voam como vagalumes investigando e registrando qualquer movimento ou aglomeração etc. Enquanto nós ficamos repetindo conceitos como: trabalho de base; jornada de lutas; calendários de ações; pauta de reivindicação; audiência com o governo; doação de alimentos; desapropriação; créditos; eleição de parlamentares e tantas outras expressões que já não agitam as massas nem ofendem os capitalistas, eles, sem nada disso, mobilizam e mantém informados e esporadicamente mobilizados pelo menos 30% dos eleitores do país. Em síntese, (desculpe o trivial exemplo), enquanto os inimigos armam as jogadas, nós há anos repetimos a mesma tática de jogo, de cruzar bolas altas na área, sem nenhum centroavante para cabecear.

            Podemos concluir que no final desse quarto de século, nos deparamos com dois limites. O primeiro diz respeito à morte das reações espontâneas das massas. Se deixaram de reagir ou de se oferecerem para a luta, para daí surgirem os movimentos populares, que já não se vê surgir, é porque além da falta de convocações, algo de muito terrível foi feito contra o senso comum crítico no interior desses grandes contingentes populacionais. Teria o assistencialismo governamental corroído a noção dos direitos e acostumados os pobres cooptados a esperar que alguém ofereça soluções para os problemas. Voltemos à estratégia do preferível: não é oferecendo o mal menor para as massas famintas que se impede o mal maior de continuarem na miséria. Não estaria na hora de perceber que o Estado é inimigo dos trabalhadores, tanto quando reprime, quanto quando oferece míseros recursos por meio de políticas públicas e por qualquer desrespeito às normas ameaça interromper os benefícios?

 O segundo limite está sendo sustentado pela anulação daquilo que sempre se chamou de esquerda, e que, depois de ganhar eleições e governar, perdeu a natureza histórica tornando-se “situação”. Esse papel sempre reservado na história para as forças de direita. Qual é a diferença? Enquanto ser de esquerda é ser de luta, indo para a situação a ordem é conciliar, fazer acertos com a oposição. Ou não foi isso que aconteceu com as forças de direita neste quarto de século? Bastou perder as eleições e tornar-se oposição ao governo que, com a identificação de extrema-direita, passou a constituir um movimento de massas para lutar.    

Se tradicionalmente as revoltas populares foram direcionadas contra os patrões e as autoridades governamentais atuantes na estruturas estatais, com os avanços tecnológicos, o patronato deixou de ser um ente simbólico da exploração e, com as vitórias eleitorais, a esquerda, ao tornar-se situação, fez com que parte das massas entendesse que não há necessidade de lutar porque tudo lhes será dado, enquanto a outra parte, cooptada pelas seitas religiosas e também descontentes com a governabilidade por acreditar que todos os políticos são “farinha do mesmo saco”, se mantém na oposição, contestando e votando contra o governo.

Isso tudo é o que temos acumulado nesse primeiro quarto de século, mas o que devemos fazer para dinamizar o novo período que nos levará ao meio do século XXI? Para uns continua sendo a estratégia da governabilidade para criar leis que garantam a formação sólida de uma base econômica capaz de colocar o Brasil entre as grandes potências capitalistas. No entanto, essa posição “preferível” não avalia a veemência destrutiva do capital que, seguindo nesse ritmo em 2050, muito pouco poderá ser feito para salvar o planeta da barbárie.

Se quisermos uma representação do estado lastimável que politicamente vivemos neste final do primeiro quarto de século é que os capitalistas avançam na velocidade da luz e nós na velocidade da fumaça. Portanto, a questão é como barrá-los e derrotá-los para impedir que levem à frente a revolução liberal ainda inconclusa? Com as formas e práticas organizativas que temos não há esperança alguma que algo de novo venha a ser feito.

Podemos apontar que a estratégia pacifista levou ao saturamento do crescimento das lutas pela inoperância e repetição das táticas; insistir nela é um grande equívoco. Se com quase duas décadas de governo “progressista” não se conseguiu impor limite algum ao capital, é sinal que é preciso enfrentar os desafios com táticas insurrecionais, para isso precisamos de organizações corajosas, confiáveis e que se proponha a convocar e promover a desobediência civil contra todas as leis que cerceiam os direitos sociais.  

Apontamos que as estabilidades econômicas e políticas sonhadas não são aliadas das forças revolucionárias. Defender as transformações sociais com o crescimento da economia, arcabouço fiscal e aumento do salário-mínimo é sorrir sem dentadura para o capital. É na instabilidade que as forças se enfrentam e se renovam. O pacifismo e a defensiva favorecem as classes dominantes. Logo, não há mais bases nem militantes capazes para se fazer “trabalho de base” à moda antiga, é preciso apostar em convocações massivas para contestar a moral do direito de propriedade sem limite; enfrentar e destituir o direito de acumular capital e riqueza às custas da miséria e impor-se contra a ordem jurídica que legitima a sociedade desigual.

É evidente que a conjuntura muda quando mudam os métodos de atuação e, estes mudam quando as forças organizadas mudarem o comportamento. O excesso de respeito educou as organizações a se enquadrarem à ordem capitalista. É tempo de começar a exercitar as características da ordem socialista pondo em pauta a criação de novas formas de organização.

                                                                       Ademar Bogo



[1] Aristóteles. Ética a Nicômaco.