domingo, 3 de novembro de 2024

OS DOIS OLHOS DO LIBERALISMO

            Desde os jacobinos franceses do século XVIII, quando surgiram os conceitos, da esquerda não foi formulado para aceitar a governabilidade da direita, mas para se opor, contestar e radicalizar a revolução de 1789, com medidas impulsionadoras das reformas sociais; a abolição dos privilégios; a implementação do princípio da igualdade socioeconômica e a soberania popular. Isso e outras coisas mais, foram implementar entre maio de 1793 a julho de 1794, quando o “terror” marcou a História da Revolução Francesa. No entanto, a incapacidade de conduzir o processo para a democracia direta e as diversas indecisões no comando do governo, permitiu que todos os dirigentes fossem arrastados pelas ruas e decapitados na guilhotina em praça pública.

            Se a tradição modificou, em parte, o conteúdo, não transcendeu o significado original do conceito. Girondinos e Jacobinos, apesar de todas as divergências eram membros de um único Clube, formado para defender a revolução e o liberalismo capitalista. Portanto, a mesma cabeça apenas com os olhos estrábicos, um voltado para a esquerda e o outro para a direita. De lá para cá, houve épocas que aquela denominação erroneamente foi associada às práticas revolucionárias, socialistas e comunistas, quando, na verdade, esquerda queria dizer apenas, oposição, discordância de rumo dos anseios liberais, o que veio a se confirmar mais adiante.

Se no século XX nunca a humanidade avançou tanto na realização das revoluções anticapitalistas, no século XXI, regrediu tanto ao ponto de, sob o manto do neoliberalismo, ao invés de inovar e colocar as tarefas possíveis de serem implementadas a favor das rupturas, reduziu os anseios até chegar aos governos e governar “para todos”. Renegando as características revolucionárias e a própria linguagem, em nome da democracia passaram a defender o estado democrático de direito, legitimador da sociedade desigual.

            Já no início do século XXI, de um momento para outro, surgiu um segundo olhar, quando reergueu-se a mesma e velha cabeça liberal, com o olho esquerdo virado para o centro e o outro para a direita, ambos interessados a comandar o mesmo sistema, no interior da mesma ordem e do mesmo Estado. A explicação dialética para esse movimento dos contrários, instalados no mesmo crânio, com as mesmas ideias liberais, representando, pela democracia representativa todas as forças reunidas nos repetidos e respeitosos processos eleitorais. No entanto, enquanto o olho à direita veio evoluindo, ano após ano, para mais, chegou ao ponto máximo do giro de 180 graus em que se encontra a extrema-direita; do mesmo modo ocorreu com as forças contrárias, ao invés de deslocar o olhar para o lado esquerdo, dirigiu-se do centro para a direita e foi ficando menos e cada vez menos esquerda, ao ponto de desaparecer. O que restou foi um só corpo, com uma cabeça liberal e, os dois olhos obliquamente voltados para a mesma direção.

Esse olhar torto das forças de esquerda, perdeu gradualmente o contato com as cores proletárias. O vermelho da consciência partidária, passou a se acostumar com a companhia de matizes multicores, representantes do asco ideológico do passado. As ofensivas populares foram empurradas para a defensiva, levando à comprovação de que, quando radicalidade e a agressividade saem da política, começa-se, respeitosamente, a tratar a ordem constitucional e os inimigos dentro dela, com cortesia administrativa.

            O abandono das causas mobilizadoras em troca de espaço institucional, criou a governabilidade assistencialista, permissiva e respeitosa aos limites impostos pela ordem. Para quem antes brigava pela elevação do orçamento da saúde e da educação, agora, no governo, obriga-se, comportadamente, a formular arcabouços e respeitar o teto de gastos para, como os velhos jacobinos, evitar agredir os princípios liberais da acumulação do capital.

            Sem paixões vingativas, é importante considerar que a causa dos problemas da subordinação à instrumentalização institucional, não está apenas no governo prostrado diante dos preceitos liberais, nem nas circunstâncias que o obrigaram a aliar-se com certas forças pútridas, mas no partido político e nos movimentos, sindical e popular que entraram junto na governabilidade, deixando de lado as tarefas ofensivas contra o capital e o Estado capitalista. Foi com essas forças em luta que, em 2002, dezessete anos depois do fim da ditadura militar, derrotamos as forças de direita no governo. Por que então as coisas estão virando no seu contrário? Pelo simples fato de que, quem tinha não tem mais as massas mobilizadas.

            Se as bandeiras históricas de luta foram subsumidas pelas vitórias eleitorais e as tornaram irrealizáveis, substituí-las agora por demandas catastróficas como é o caso do aquecimento global e, empenhar todos os esforços no plantio de árvores ou oferecer alimentos orgânicos, fora da luta de classes, representará, colocar-se ainda mais na defensiva. Foi o negacionismo de esquerda de abandonar as referências estratégicas, como o socialismo, a insurreição popular e a revolução que permitiu espaço para a demonização do comunismo e a prostração diante das ofensivas da extrema-direita.

As massas não migraram para o outro lado, continuam com os mesmos anseios e desejos de justiça, combate ao imobilismo e a formalismo da política. Não será o medo das tragédias climáticas que despertará a indignação, mas a coragem de liderar a desobediência civil contra aquilo que acontece nas proximidades dos trajetos cotidianos, onde os olhares alcançam. A consciência política somente se forma na medida que a organização partidária serve para provocar conflitos. Partidos legalistas, defensores da ordem, enforcam-se com a própria linha conciliatória.

A carência da organização política que tenha como estratégia o socialismo é o grande dilema para recriar as lutas de massa. Na medida que a finalidade estiver estabelecida, será possível avaliar a importância de cada tática, desse modo, a governabilidade, no capitalismo, pode ser uma possibilidade temporária de ascensão das forças, mas nunca o recurso definitivo.  Recorrer às forças de direita, como estão fazendo, para enfrentar a extrema-direita é tão perigoso quanto apagar fogo com gasolina. Trabalhar para encontrar um óculos retificador do estrabismo do liberalismo, foi o maior engano que as forças de esquerda puderam cometer.

Os dois olhos do liberalismo devem ser cegados pela força das lutas revolucionárias. Quando isto ocorrer, teremos um só olhar, aquele que nunca perde de vista o horizonte socialista.

                                                          

                                                                                   Ademar Bogo

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