domingo, 7 de abril de 2024

O A FAVOR E O SEU CONTRÁRIO

                                              

      O filósofo holandês Benedictus Spinoza (1632-1667) destacou algo em sua obra Ética[1], que nos faz refletir sobre a política. “À medida que uma coisa pode destruir uma outra, elas são de natureza contrária, isto é, elas não podem estar no mesmo sujeito” (2016, p. 173).

            A natureza da coisa pode ser entendida como a sua essência que a caracteriza como sendo pertencente a um gênero ou a outro. Podemos citar aqui a ferrugem e o ferro, ocasionada pela oxidação que, para impedi-la é preciso obstruir o contato com o oxigênio. Portanto, as naturezas são contrárias, mas a ferrugem precisa do ferro para progredir e, este sabendo dos perigos da deterioração, deve evitar expor-se ao ar livre e a umidade.

            Com a ajuda de Spinoza, é possível ligarmos, de forma primária, a natureza do ferro e da ferrugem. Porém, ao falarmos de filosofia e de política, temos a necessidade de identificar a natureza da relação entre governo e partido político, pois, nessa relação é provável que uma coisa venha a destruir a outra.

            Nas últimas duas décadas, com a ascensão dos partidos da “velha esquerda” aos governos, surgiu no cenário político, uma nova força organizativa para ser gerida pelos representantes da classe trabalhadora e das massas populares. No entanto, a nova forma de poder, com todos os seus limites impeditivos, subsumiu ou abocanhou os partidos e os levou para dentro institucionalidade.

            Embora muitos justifiquem que um não se confunde com o outro, no concreto cotidiano, o governo passou a ser maior do que o partido ou o movimento que apoiou e ajudou a eleger o governante; logo, como se todos fossem engolidos e acomodados no mesmo estômago, se movem muito pouco e, lentamente, para não criar mal estar ao corpo que os engoliu, venha a vomitá-los e varrê-los para a sarjeta.

            Por que vivemos esta confusão de não sabermos posicionar-nos frente aos dilemas políticos tão cruciais? Se voltarmos as origens, veremos que partido de esquerda e governo, possuíam naturezas diferentes. O partido político, sendo constituído pela parte consciente da classe social, tem como função apresentar um programa de transformação da sociedade e, prontamente, deve indicar e organizar os meios para fazê-la. O governo, por sua vez, tem a responsabilidade de manter a sociedade dentro das normatizações estabelecidas pelo Estado.

            Sendo de naturezas diferentes, partidos de esquerda ou revolucionários, somente cumprem o seu papel, quando se propuserem a tomar o Estado para destruí-lo. Nesse caso, o primeiro fica maior que o segundo e, para manter a metáfora, engole-o, para, enquanto partido ser a referência na sociedade. Ao chegar a este ponto, o governo passará a ser uma atividade do partido.

            Esse princípio já foi denominado de “ditadura do proletariado”, depois veio a se conformar na estrutura do “Partido único”, com uma grande contradição, porque, nenhum desses formatos arriscou-se a subsumir dentro de si, o Estado e, os governos seguem sendo o modelo clássico da representação reduzida.

            Sem arroubos para cobrar a perfeição, é importante refletirmos que, na realidade brasileira atual, após termos passado por uma nova tentativa de golpe (frustrada pelas artimanhas militares, mas havia uma base popular significativa disposta a apoiá-los), é hora de pensarmos se estamos nos preparando para o retorno desse movimento?

Uma vitória eleitoral não pode ser confundida com uma derrota definitiva das forças contrárias. As vitórias significativas, desde a modernidade, são válidas quando a maioria da população de um país realizá-las e sustentá-las. Nesse sentido, podemos afirmar com todas as letras que, no Brasil contemporâneo, a natureza do governo destruiu a natureza dos partidos de esquerda e, esquerda sem partido não existe.

Muitos falam em retomar as lutas, o trabalho de base, a formação política etc., mas o lugar de onde falam, é de dentro da barriga da ordem, do Estado de direito, dos partidos engolidos e da espera das políticas públicas.

A história já nos deu muitas lições e, uma delas é que no socialismo, o partido, o Estado e o governo podem estar no mesmo corpo da ordem, no capitalismo não. Por mais próximos que os governantes estejam dos partidos e dos movimentos sociais, eles cumprem o ritual da governabilidade. A função das forças organizadas é lutar contra o capital que provoca a fome, a miséria, a exploração e demais injustiças, para isso precisamos manter a natureza de sermos organicamente contrários à ordem dominante.

É necessário estabelecer rompimentos se quisermos desarranjar a ordem capitalista. Para isto é necessário que o fedor da velha esquerda governista, por ser da mesma natureza, seja acoplado ao fedor da burguesia e, para escaparmos dessa pulsão de morte exaustiva, devemos partir em busca de ar puro e andarmos organizados na direção do vermelho do horizonte.

                                                           Ademar Bogo



[1] SPINOZA, Benedictus. Ética. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2016.

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