domingo, 4 de julho de 2021

DEMOCRACIA E DECADÊNCIA

               O historiador Eric Hobsbawm ao estabelecer o período, “A era das revoluções” (1789-1848), confirmou o que já havia declarado Karl Marx que a burguesia foi a primeira classe revolucionária da História e nos mostrou que, a certa altura da década de 1780  com a revolução foram retirados os grilhões do poder produtivo das sociedades humanas que daí em diante se tornaram capazes de multiplicação rápida, constante, de homens, mercadorias e serviços.

            Essa tese da “retirada dos grilhões produtivos” pelas revoluções, para muitos leitores do texto escrito na segunda metade do século vinte, passa como uma informação irrelevante, no entanto, se atualizarmos o seu entendimento veremos que aquele processo sedutor alcançou, no nosso tempo, um profundo esgotamento e os “grilhões” voltaram a cumprir as funções de aprisionamento das sociedades humanas.

            As duas revoluções, a industrial e a francesa, foram de fato realizações provocadas pelas forças burguesas e proletárias que vinham sendo oprimidas pelo poder feudal desde o século dez. A perseguição à burguesia se deu pelo simples fato de querer se formar entremeio as duas classes existentes: os senhores feudais e os servos, legitimadas pelo clero. Indiferente a tudo, a burguesia criou a si mesma e também ao proletariado para servir-se dele. Conduziu as duas revoluções à vitória, mas elas foram insuficiente e precisou-se de uma terceira insurreição mais ampla, para afirmar o capitalismo, denominada de “Revolução liberal”.

            Com a terceira revolução a burguesia pode afirmar-se verdadeiramente como força política hegemônica por toda a Europa. Com sua ascensão foi possível criar um poder centralizado no Estado capitalista, pondo fim ao poder dos senhores feudais; elaborar e impor o Direito Positivo suplantando o do Direito Natural e a afirmar a República. O primeiro prejuízo político dessas mudanças foi desaparecimento da “Democracia participativa” posta razoavelmente em prática em Atenas até o final do século quatro antes de cristo.

            Sem os “grilhões produtivos”, os burgueses, ocupados em produzir e comercializar, sem tempo de participarem cotidianamente da política criaram, juntamente com os três poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a forma de democracia representativa, com direito ao sufrágio universal apenas para os proprietários e, desse modo, nasceu a “Democracia Liberal” tida como a mais adequada para satisfazer os anseios dos cidadãos.

            Na atualidade fala-se da “democracia em crise”, mas pouco se aprofunda porque ela chegou a este ponto e se os processos eleitorais podem tirá-la dessa situação. Isso tem limitado o alcance das ações de protestos e enfrentamentos com as forças dominantes, pelo fato de serem atados os efeitos e não as causas da crise.

            Inicialmente, observando mais detalhadamente o movimento das contradições, percebemos que o modo de produção capitalista está em acelerada decadência, dessa forma, todas as demais invenções estão decaindo com ele. Sendo assim, como não se pode concertar um avião em queda livre, impedir que o capitalismo se deteriore com ações voltadas para a ordem democrática é praticamente impossível.

            Observando mais atentamente perceberemos que, se a democracia liberal está em crise é porque os criadores do liberalismo também estão. Aqui parece estar o ponto central do entendimento. Se a burguesia ao realizar as três revoluções deu-se conta de que deveria instituir uma estrutura de poder centralizado e fazê-la funcionar por meio de seus representantes, em grande medida de pequenos burgueses, enquanto isso eles ocupar-se-iam da indústria e do comércio  para acumularem capital.

            No entanto, se observarmos mais detalhadamente perceberemos que essa força burguesa produtiva começou a perder a sua hegemonia nas últimas décadas do século passado quando o capitali especulativo insurgiu-se como uma força incontrolável e, para além de dinamizar as relações financeiras seqüestrou também o Estado criado para dar garantia de funcionamento ao capital produtivo e, como haviam apontado Marx e Engels levá-lo por meio do comércio, das leis e da força militar certamente,  para todos os lugares do globo.

            A decadência do capitalismo causada por diversos fatores, impossíveis de serem comentados aqui, levou também à decadência a civilização e, enquanto o Estado oficial passou a ser controlado pelo capital especulativo, ao seu lado passaram a vigorar outras formas de poder, podemos chamá-las de “estado paralelo” ou “banditismo político”. Entram nessa composição, as forças regulares das milícias, do narcotráfico, das seitas religiosas, dos devastadores rurais e a grande parte dos meios de comunicação que, não satisfeitas com o controle social e territorial, decidiram atuar também por dentro da política estatal.

            Essa ligação é de fácil percepção, basta contar o número de deputados e senadores integrantes das bancadas do boi, da bala, dos Bancos, e da bíblia, eleitos nas últimas eleições e contabilizaremos quase 80% do total dos parlamentares. Ou seja, as forças do capital produtivo que no passado soltaram os grilhões impostos pelos senhores feudais, voltaram a ser aprisionadas pelo capital especulativo possuidor de força política dez vezes maior.

            Quando ouvimos falar que as forças de “centro direita” não conseguem achar um candidato para formar a “terceira via” para despolarizar a disputa entre Bolsonaro e Lula, e vemos que ela tarda a aparecer, é porque essa classe produtiva perdeu a disputa política com o capital especulativo e este se dirige por conta própria. Se burguesia produtiva criadora do Estado perdeu o poder sobre a criatura, a sua força política entrou em decadência. A solução restante, para não ficar de fora é tentar aliar-se com um dos lados para tentar sobreviver. Esse processo, talvez sem ser ainda consciente já vem ocorrendo desde o inicio deste século. Quando Lula, em 2002 convidou o empresário José de Alencar para ser o seu vice, de algum modo remontou a união das forças participantes das revoluções burguesas do passado, quando a burguesia reuniu-se com o proletariado e juntos asseguram as diversas vitórias.

            Essa união, neste século, foi rompida com o golpe institucional de 2016 e a coroação se deu em 2018 quando, junto com o banditismo político foi grande parte desta burguesia produtiva e também as forças armadas e o poder judiciário. Essa reunião de forças levou o estado paralelo para dentro do Estado oficial, dando força ao aprofundamento da barbárie social.

            Esse indicador do avanço do poder do capital especulativo e o banditismo político, mostrou-se presente nas eleições passada nos Estado Unidos da América, quando o presidente por pouco não se reelegeu, e o vencedor, logo início de seu governo, contradizendo os princípios do neoliberalismo, de posse da máquina de fabricar dólares, investiu pesadamente no setor produtivo. Isto não significa que o poder das milícias, grupos armados, narcopolítica, seitas etc. tenham sido derrotadas definitivamente. Se universalmente o capitalismo está em decadência, o próprio movimento interno das contradições, alimenta esses fenômenos destrutivos. 

            O grande problema do Brasil e também de outros países, é que a esquerda deste século encarnou o espírito da “esquerda jacobina” oriunda revolução francesa e, apesar de ser oposição aos girondinos, não quer destruir o capitalismo, mas sim edificá-lo. Sendo assim, a visão de todas as forças políticas em atuação é chegar ao governo e aparelhá-lo para os seus objetivos, porque ele de fato é o lugar de abrigo para quem quer usufruir do “poder representativo” praticando a democracia liberal.

            As diversas críticas já feitas, somadas aos fracassos governamentais, embora que, temporariamente as vitorias eleitorais aliviem certas tensões, para a grande maioria da população, a “democracia representativa” de natureza liberal não contribui com a luta pela emancipação política. As grandes massas não experimentam as mesmas sensações que experimenta a classe media, respeitada e preservada da repressão do Estado.

É democracia liberal é cômoda e confortável para setores privilegiados da sociedade.  Saber que na segunda-feira cedo as ruas estarão livres para, em 5 minutos deixar o filho na escola e de lá rumar para o trabalho que inicia pontualmente às 8 horas; no final da manhã ou do dia, retornar, pegar o filho na escola, ir para casa sem passar por nenhuma perturbação, no máximo uma blitz que só faz parar os carro de uma só marca. Para os trabalhadores das favelas, a mesma segunda-feira é diferente. Poderá não ter dormido à noite porque na madrugada as forças policiais arrombaram a porta e entraram, interrogaram, ameaçaram e dispararam tiros. Na ida e na vinda, as sacolas são revistadas e os filhos nem sempre voltam vivos da escola. Mas, a partir de 1985 com a aprovação do voto do analfabeto, ninguém é desprezado a participar da “festa” eleitoral que elege os representantes legitimadores da democracia liberal.

A superação disso tudo não acontece de imediato. Mas é preciso ter clareza que a salvação das forças do capital produtivo depende dos trabalhadores, não somente para produzir capital como também para que elas se mantenham no comando do Estado, com um nome vindo de suas fileiras ou das fileiras dos trabalhadores componentes de organizações da atual “esquerda jacobina” defensora da mesma democracia liberal.

Nesse sentido, o problema maior pode não estar no tipo de ações que se pratica, mas na utilidade dessas ações. Para que uma ação específica tenha um alcance estratégico é preciso que seja estabelecido o objetivo a ser alcançado em um certo período. Não existindo este objetivo, cada ação terá um fim em si mesma e nunca terá força para romper com as barreiras do imediato.

Se para os setores reformistas o socialismo não está na ordem do dia, para ser colocado com o objetivo estratégico, para o qual deveriam se voltar todas as ações e disputas, a decadência do capitalismo é muito presente. Devido isso, as tendências destrutivas são acompanhas da perda de capacidade de todas as forças que querem reconstruir o capitalismo. Por outro lado, quanto mais se acentuam as decadências, mais vigor ganham as forças da anti-política adeptas da violência e do crime institucionalizado. Não há luz no fim do túnel para quem não se apressar em passar por ele para encontrar o raiar do novo dia.

                                                                                              Ademar Bogo

 

 

    

Nenhum comentário:

Postar um comentário